Publicado originalmente em 14 de fevereiro de 2020
A decisão da semana passada da União Democrata Cristã (CDU) e do Partido Liberal Democrático (FDP), no estado da Turíngia, de colaborar com o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD) na escolha do governador expõe o estado imundo da política alemã. Setenta e cinco anos após o colapso do Terceiro Reich, um partido liderado por apologistas de Hitler e nazistas abertos é aceito pela elite dominante como um legítimo parceiro político.
A ascensão da direita política na Alemanha durante a década passada tem sido uma das histórias menos cobertas na mídia internacional. Mas depois dos acontecimentos na Turíngia, até o New York Times reconheceu o ressurgimento do fascismo alemão como uma força política significativa que não pode ser ignorada. Em um artigo em sua edição de 7 de fevereiro, o Times escreveu:
Às vezes, é preciso um terremoto para revelar o que está abaixo da superfície.
No estado da Turíngia, no leste da Alemanha, nesta semana, uma eleição regional exibiu o estado desastroso do centro político da Alemanha – e quão longe o país está do consenso antifascista que proclama manter.
A República de Weimar, a primeira experiência de curta duração da democracia na Alemanha até seu fim pelos nazistas, tornou-se um ponto de referência popular na atual Alemanha.
O Times reconheceu que a colaboração da CDU e do FDP com a AfD “quebrou um tabu que existe na política alemã desde o final da era nazista. O Sr. Kemmerich [do FDP] se tornou o primeiro político alemão do alto escalão desde a Segunda Guerra Mundial a ser eleito com votos de um partido de extrema direita.”
A decisão da CDU e do FDP de colaborar com a AfD, o Times continuou,
é especialmente preocupante na Turíngia, onde a AfD não é apenas o segundo partido mais forte do parlamento regional, mas também é mais extremo do que em qualquer outro estado. Lá, o chefe da AfD, Björn Höcke, é o líder de um movimento linha dura dentro do partido conhecido como “Der Flügel” – A Asa. Em um livro de 2018, ele alertou sobre a “esperada morte da nação através da substituição da população”. No ano passado, um tribunal decidiu que ele poderia ser legalmente chamado de fascista.
O Times concluiu:
Para a extrema direita, esta semana foi um grande sucesso. Os líderes da AfD há muito tempo previam – e esperavam – uma convergência entre partidos centristas e conservadores. Na quarta-feira, quando cumprimentou o recém-eleito governador da Turíngia, o Sr. Höcke sorriu. A cena lembrou muitos alemães de uma foto famosa de 1933, na qual Adolf Hitler cumprimenta Paul von Hindenburg, presidente da Alemanha na época.
A Alemanha em 2020 não é a Alemanha em 1933. Mas a política alemã mudou nos últimos anos de uma maneira perturbadora. Os centristas e a extrema direita compartilham pontos de discussão sobre imigração. Eles compartilham o que percebem como um inimigo comum na esquerda. E agora, pela primeira vez em décadas, eles até compartilham um governador.
Os leitores do Times, que tinham lido ou ouvido muito pouco na mídia sobre a existência de um sério renascimento neonazista na Alemanha, podem ser levados a acreditar que os eventos na Turíngia são um desenvolvimento repentino e imprevisto.
Esse está longe de ser o caso. Os eventos confirmam as persistentes advertências dos trotskistas alemães do Sozialistische Gleichheitspartei (SGP – Partido Socialista pela Igualdade), publicados em vários artigos no World Socialist Web Site. As manobras políticas na Turíngia – o mesmo estado que desempenhou um papel importante no crescimento do hitlerismo – são o resultado de uma conspiração política de mais de cinco anos envolvendo todos os principais partidos do establishment político alemão para incentivar e legitimar ativamente o crescimento de um movimento político neonazista.
O uso da palavra “conspiração” na explicação do crescimento da AfD é inteiramente apropriado. A principal diferença entre a AfD e os nazistas das décadas de 1920 e 1930 é que essa organização fascista moderna não se baseia em um movimento de massas. Surginda de um racha na CDU e no FDP no início de 2013, uma grande proporção de membros da AfD foi recrutada diretamente do aparato estatal – sobretudo militar, judiciário e policial. A maioria de seus membros fazia parte de outro partido do establishment. Por exemplo:
• O presidente honorário da AfD, Alexander Gauland, que glorifica a Wehrmacht e descreve Hitler e os nazistas como meramente “merda de pássaros em mais de 1.000 anos de história alemã de sucesso”, fez parte do alto escalão da CDU por 40 anos.
• Guido Reil, que é um dos principais deputados da AfD no Parlamento Europeu, é membro do sindicato industrial IG BCE e foi membro do Partido Social-Democrata (SPD) por 26 anos antes de ingressar na AfD em 2016.
• Georg Pazderski, Presidente da AfD Berlin, é um ex-oficial do exército que serviu na sede da OTAN, incluindo no Comando Central dos Estados Unidos na Base da Força Aérea de MacDill em Tampa e no Comando da Força Conjunta Aliada de Lisboa.
Em seus esforços para promover o crescimento da AfD, a classe dominante foi confrontada com um problema fundamental. Os fascistas são odiados pela esmagadora maioria da população.
Quando a AfD entrou no Bundestag (parlamento federal) em setembro de 2017 com apenas 12,6% dos votos, houve massivos protestos espontâneos em todo o país. Após os distúrbios fascistas em Chemnitz em setembro de 2018, nos quais a AfD desempenhou um papel central, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas. Somente em Berlim, 250 mil pessoas protestaram em 13 de outubro de 2018. Massivos protestos espontâneos contra o racismo e a violência fascista também ocorreram após o ataque terrorista à sinagoga em Halle em outubro passado e, mais recentemente, após a eleição de Kemmerich na Turíngia.
Diante da enorme hostilidade popular, a elevação da AfD para posições de poder tem dependido da cumplicidade dos principais partidos alemães. O mecanismo decisivo para alavancar a influência da AfD tem sido o governo federal da Grande Coalizão dos Democratas Cristãos e Socialdemocratas.
Após as eleições de 2017, todos os partidos do Bundestag passaram mais de seis meses a portas fechadas elaborando a estrutura para um novo governo. Nesse processo, foram alcançados acordos de longo alcance, particularmente no que se refere à completa remilitarização da Alemanha, enormes ataques aos direitos sociais e democráticos e cooperação sistemática com a AfD.
No final de novembro de 2017, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier convidou os então presidentes da AfD Alexander Gauland e Alice Weidel para uma reunião conjunta em sua residência oficial, o Palácio Bellevue. A reunião está documentada em fotos da Assessoria de Imprensa Federal. Quando a Grande Coalizão chegou ao poder em março de 2018, adotou muitas das políticas de extrema direita e integrou rapidamente a AfD ao sistema político.
O SPD desempenhou um papel fundamental nesse processo. Como consequência da decisão do SPD de governar em conjunto com a CDU, a AfD – embora tenha recebido o apoio de um oitavo de todos os eleitores – tornou-se o partido oficial da oposição. Isso aumentou enormemente a presença parlamentar e midiática da AfD. Gauland e companhia conseguiram espalhar sua sujeira fascista na mídia no início de todas as sessões do Bundestag e no horário nobre. Os notórios extremistas de direita têm sido levados ao topo de importantes comissões parlamentares com o apoio do SPD.
A acomodação da AfD, a justificativa do nazismo e a luta contra a esquerda socialista – duas questões centrais da AfD – são um componente essencial do arsenal da Grande Coalizão. Em 2018, o relatório do governo da Grande Coalizão, elaborado pelo Departamento Federal para a Proteção da Constituição [Verfassungsschutz], como é chamado o serviço secreto da Alemanha, citou o SGP como um “objeto de vigilância” por causa de sua oposição intransigente à AfD e ao militarismo imperialista e de sua defesa de um programa socialista anticapitalista.
A AfD e “A Asa” são mencionados com simpatia pelo Verfassungsschutz como “vítimas” de supostos “extremistas de esquerda”. É amplamente sabido que as redes terroristas de direita se estendem profundamente no exército, na polícia e nos serviços secretos. Elas mantêm listas de mortes com dezenas de milhares de alvos. Suas atividades são amplamente ignoradas pelo estado alemão, mesmo após o assassinato do proeminente político da CDU, Walter Lübcke, em 2 de junho de 2019. Suspeita-se amplamente que Lübcke tenha sido assassinado por causa de suas críticas à AfD. Em poucas semanas, a mídia deixou de noticiar o assassinato de um importante político alemão.
O partido A Esquerda [Die Linke] – que depende do sucesso do PSD – está reagindo aos desenvolvimentos na Turíngia com mais uma covarde guinada à direita. Não está apenas cortejando a CDU, mas também indicando que está preparado para colaborar com a AfD.
Há outro elemento crítico na ascensão da AfD e na legitimação deliberada da política neofascista na Alemanha. A fim de superar a resistência da população ao renascimento do militarismo e do autoritarismo, há um esforço entre os acadêmicos alemães de criar uma nova narrativa histórica baseada em um feroz anti-Marxismo, na banalização dos crimes nazistas e na reabilitação de Hitler.
O papel central nesse processo insidioso foi desempenhado pela administração da Universidade Humboldt, em Berlim, que forneceu um apoio institucional irrestrito ao professor Jörg Baberowski, chefe do Departamento de Estudos da Europa do Leste. Baberowski é notório por suas alegações mentirosas de que “Hitler não era cruel” e que o Führer não queria saber nada sobre Auschwitz e o extermínio em massa dos judeus.
A presidente da universidade, Sabine Kunst, ex-funcionária do SPD, declarou que as críticas a Baberowski são “inaceitáveis”. Mesmo depois que Baberowski, que se comporta como um gauleiter nazista, atacou fisicamente um estudante de esquerda na universidade – um evento registrado em vídeo e visualizado mais de 20 mil vezes no YouTube – Kunst se recusou a permitir críticas a Baberowski.
Com o apoio que recebeu da Universidade Humboldt, Baberowski se tornou uma figura política cada vez mais proeminente. Ele realizará um discurso importante em um evento público em comemoração ao aniversário de 75 anos do colapso do Terceiro Reich. Com grande apoio político, ele aproveitará a oportunidade para realizar um discurso anticomunista.
A situação política na Alemanha exige a atenção da classe trabalhadora europeia, dos EUA e internacional. À luz da história, é impossível adotar uma atitude complacente em relação ao ressurgimento do neonazismo na Alemanha.
No entanto, existe uma diferença fundamental e profunda entre a situação que existe hoje e a dos anos 1930. O fascismo não é de modo algum um movimento de massas na Alemanha. Existe entre as massas de trabalhadores, estudantes, artistas e intelectuais alemães um ódio intenso ao passado nazista e a todos aqueles que banalizam seus crimes. Em toda a Alemanha, existem memoriais que lembram os crimes dos nazistas e honram a memória de seus milhões de vítimas. Os horrores do Terceiro Reich estão profundamente enraizados na consciência coletiva do povo alemão.
Ao mesmo tempo, as tradições intelectuais e políticas do marxismo estão profundamente enraizadas na cultura do país, apesar de todos os esforços dos partidos oficiais, da mídia corrupta e dos mandarins acadêmicos para erradicá-las. Pode-se ter certeza de que o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels em novembro de 1820 será calorosamente comemorado em toda a Alemanha.
Mas a própria ausência de apoio de massas acentua uma semelhança impressionante e perigosa com o processo político que levou à vitória dos nazistas em 1933, e esse é o elemento da atividade conspiratória dentro do establishment político para fortalecer a extrema direita. Esse processo – e suas consequências reacionárias – foram expostos pelos eventos na Turíngia.
O único partido que luta constantemente contra o crescimento da AfD e o retorno do fascismo e militarismo na Alemanha e ao redor do mundo é o Sozialistische Gleichheitspartei. Seus alertas foram confirmados. Como o líder do SGP, Christoph Vandreier, escreveu em sua exposição inestimável da conspiração política por trás da ascensão da AfD:
A AfD não tem uma base de apoio de massas nem unidades prontas para o combate, como as SA (tropas de assalto) de Hitler, que recrutava seus membros entre veteranos de guerra desenraizados, membros socialmente arruinados da pequena burguesia e trabalhadores desempregados em desespero. A força da AfD surge exclusivamente do apoio que recebe de partidos políticos, da mídia, do governo e do aparato estatal.
Como é o caso em todo o mundo, um processo de radicalização política está em andamento na Alemanha. Os eventos na Turíngia, que chocaram o público, vão acelerar esse processo. Mas seu desenvolvimento oportuno e politicamente consciente requer a construção do Sozialistische Gleichheitspartei e do Comitê Internacional da Quarta Internacional como um partido revolucionário da classe trabalhadora alemã e internacional.
Os autores também recomendam:
Socialism and historical truth
[17 de março de 2015]
North and Vandreier conclude US tour at New York University
[20 de abril de 2019]