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Cento e cinquenta anos do nascimento de Lenin

Publicado originalmente em 22 de Abril de 2020

Hoje é celebrado o 150º aniversário do nascimento de Vladimir Ilyich Ulyanov na cidade russa de Simbirsk, em 22 de abril de 1870. Conhecido na história sob o nome de Lenin, foi o fundador do Partido Bolchevique, líder da Revolução de 1917 e, sem dúvida, um gigante da história política e intelectual do século XX.

Leon Trotsky escreveu certa vez que todo o significado de Lenin está resumido na Revolução de Outubro. Trotsky esclareceu o sentido de sua observação quando escreveu, em sua história da revolução de 1917: 'Além das fábricas, dos quartéis, das aldeias, do front e dos soviets, a revolução teve outro laboratório: o cérebro de Lenin.'

Esse cérebro trabalhava há décadas sobre o problema da revolução. A conquista do poder pela classe trabalhadora russa em outubro de 1917 marcou a intersecção de dois processos históricos mundiais: 1) o desenvolvimento das contradições do capitalismo russo e mundial; e 2) a luta prolongada de Lenin – baseada numa análise filosófica materialista, isto é, marxista, das condições objetivas socioeconômicas – para construir o partido socialista revolucionário necessário para a classe trabalhadora estabelecer sua independência de todas as agências políticas da burguesia.

Lenin discursando em 1919

Para dar dimensão da genialidade e do papel histórico singular de Lenin, é possível dizer que não existiu outra figura na história do movimento socialista, com exceção de Marx e Engels, cujo trabalho político tenha alcançado uma expressão tão clara, sistemática e internamente coesa da relação entre a aplicação consciente da filosofia materialista – enriquecida pelos últimos desenvolvimentos da ciência natural (especialmente da física) – e o desenvolvimento da análise e da estratégia política revolucionária.

A característica mais marcante do trabalho teórico-político de Lenin foi seu esforço concentrado, ao longo de décadas, para elevar a consciência de classe da classe trabalhadora e, assim, possibilitar que sua prática se alinhasse às necessidades socioeconômicas objetivas. Moralistas burgueses, inúmeros acadêmicos e outros inimigos do leninismo frequentemente denunciaram a 'frieza' do grande revolucionário. Mas eles usam mal esta palavra. A essência política da 'frieza' de Lenin era, para citar novamente Trotsky, 'a mais alta apreciação qualitativa e quantitativa da realidade, do ponto de vista da ação revolucionária'.

Vale observar que uma das primeiras obras de Lenin, intitulada Quem são os 'Amigos do Povo' e Como Lutam Contra os Social-Democratas (escrita em 1894 e publicada no primeiro volume de suas Obras Escolhidas), foi uma defesa apaixonada do materialismo filosófico, na qual ele se opôs à 'sociologia subjetiva' do teórico populista Nikolai Mikhailovsky. Lenin escreveu que a posição materialista – de que 'o curso das ideias depende do curso das coisas' – é 'a única compatível com uma psicologia científica'. Lenin prosseguia:

Até então, os sociólogos tinham dificuldade em distinguir o que importava do que não importava na complexa rede de fenômenos sociais (que é a raiz do subjetivismo na sociologia) e não tinham sido capazes de descobrir nenhum critério objetivo para tal distinção. O materialismo providenciou um critério absolutamente objetivo ao destacar as 'relações de produção' como a estrutura da sociedade. E, ao mesmo tempo, possibilitou que sobre essas relações fosse aplicado o critério científico geral da recorrência, cuja aplicabilidade sobre a sociologia era negada pelos subjetivistas. [Collected Works, Vol. 1, p. 140].

Por trás da defesa de Lenin do materialismo, estavam questões decisivas de estratégia e perspectiva política: a que força social o trabalho do movimento socialista deveria se orientar? Para o campesinato ou para a classe trabalhadora?

A insistência de Lenin numa análise rigorosa dos processos socioeconômicos objetivos nada tinha em comum com a passividade política, ou seja, que o socialista teria apenas de esperar a história seguir seu próprio curso. Lenin fez uma distinção rigorosa entre materialismo e objetivismo:

O objetivista fala da necessidade de determinado processo histórico; o materialista fornece um quadro exato de dada formação socioeconômica e das relações antagônicas a que ela dá origem. Ao demonstrar a necessidade de determinada série de fatos, o objetivista corre sempre o risco de se tornar um apologista desses fatos: o materialista revela as contradições de classe e, ao fazê-lo, define o seu posicionamento. O objetivista fala de 'tendências históricas incontornáveis'; o materialista fala da classe que 'dirige' dado sistema econômico, dando origem a tais e tais formas de reação das demais classes. Assim, por um lado, o materialista é mais consistente que o objetivista e dá uma consequência mais profunda e completa ao seu objetivismo. Ele não se limita a falar da necessidade de um processo, mas define precisamente qual formação socioeconômica dá conteúdo a esse processo, exatamente qual classe determina essa necessidade... [O] materialismo envolve o partidarismo, por assim dizer, e impõe a adoção direta e aberta do ponto de vista de um grupo social definido em qualquer análise dos acontecimentos. [Collected Works, Vol, 1, pp. 400-01]

Essa passagem foi escrita em resposta a Pyotr Struve, o 'marxista legalista' e futuro líder dos liberais burgueses russos. Mas também antecipou a luta que Lenin travaria uma década depois contra a tendência menchevique, que exigia da classe trabalhadora aceitar a direção política da classe capitalista em uma futura revolução democrática burguesa.

Lenin foi preso em 1895 pela polícia czarista, e passou os cinco anos seguintes na prisão e exílio na Sibéria. Foram anos valiosos de intenso trabalho teórico, que incluiu seu estudo da filosofia hegeliana e seu empenho sobre a dialética, até dominá-la com maestria.

O período de exílio de Lenin terminou em 1900 e logo ele se dirigiu à Europa Ocidental, onde começou, apesar de um difícil encontro inicial, uma estreita colaboração com o 'pai do marxismo russo', G. V. Plekhanov.

Na virada do século, o movimento social-democrata europeu foi confrontado por um ataque revisionista ao marxismo, liderado por Eduard Bernstein. Politicamente, o revisionismo buscava substituir o programa da revolução socialista pelo reformismo burguês trabalhista. Teoricamente, defendia a filosofia idealista do neokantismo acadêmico, em oposição ao materialismo dialético.

É especialmente significativo, à luz do posterior desenvolvimento do movimento social-democrata europeu entre 1898 e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, que as contribuições mais importantes para a luta teórica e política contra o revisionismo tenham sido feitas, não pelos social-democratas alemães, mas pela marxista polonesa Rosa Luxemburgo e pelas duas maiores figuras do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR): Plekhanov e Lenin.

Reforma ou Revolução de Luxemburgo foi uma exposição devastadora das consequências políticas do revisionismo de Bernstein. A crítica de Plekhanov ao revisionismo neokantiano de Bernstein e seus partidários permanece, até hoje, entre as mais brilhantes exposições do desenvolvimento histórico e da metodologia teórica do materialismo dialético.

No entanto, a contribuição de Lenin à luta contra o revisionismo e o oportunismo, Que Fazer?, foi a que se mostrou a mais precisa teoricamente e politicamente clarividente. Com maior profundidade e consistência do que qualquer outro marxista de sua época, inclusive Kautsky, Lenin revelou e explicou o significado objetivo e as implicações políticas do menosprezo à teoria marxista.

Além disso, Lenin demonstrou a relação inseparável da luta contra a influência do oportunismo em todas as suas diferentes formas – teórica, política e organizacional – com a construção do partido revolucionário e o estabelecimento da independência política da classe trabalhadora.

Lenin denunciou como tendências oportunistas todas aquelas que diminuíam o significado da luta explícita pelo desenvolvimento da consciência socialista e que, ao invés disso, glorificavam o desenvolvimento espontâneo (isto é, sem a intervenção dos marxistas) da consciência e da prática da classe trabalhadora. Ele escreveu:

Como não se pode falar de uma ideologia independente formulada pelas próprias massas trabalhadoras no processo de seu movimento, a única opção colocada é: ou ideologia burguesa ou socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não criou uma 'terceira' ideologia. Além disso, numa sociedade dilacerada pelas contradições de classe nunca pode haver uma ideologia à margem das classes ou acima das classes). Portanto, qualquer rebaixamento da ideologia socialista, qualquer afastamento dela no menor grau, significa fortalecer a ideologia burguesa. Fala-se muito em espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário leva à sua subordinação à ideologia burguesa. [CollectedWorks, Vol. 5, p. 384].

Traçando uma linha que diferencia claramente a consciência socialista do sindicalismo, que ele definiu como a ideologia burguesa da classe trabalhadora, Lenin escreveu:

Sendo assim, nossa tarefa, a tarefa da social-democracia, é combater a espontaneidade, é desviar o movimento da classe trabalhadora da tendência espontânea do sindicalismo de se abrigar sob as asas da burguesia e trazê-lo para as asas da social-democracia revolucionária. [Ibid, pp. 384-85].

Que fazer? foi publicado em 1902. Mas foi só em 1903, no Segundo Congresso da POSDR, que a clarividência da análise de Lenin sobre as implicações políticas da luta contra o oportunismo foi confirmada. O racha ocorrido no Segundo Congresso – aparentemente em torno de uma discordância 'menor' sobre a definição de quem pertence ao partido, que deu origem às facções bolchevique e menchevique – inicialmente foi visto por muitos delegados como uma perturbação desnecessária e até mesmo nociva da unidade partidária, causada pelo sectarismo excessivo de Lenin.

Lenin respondeu a essa acusação fazendo uma análise detalhada das atas do Segundo Congresso, que se estendeu por 37 sessões realizadas ao longo de um período de três semanas. Essa análise, que foi publicada sob o título Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás, demonstrou que a facção menchevique era uma manifestação, dentro do movimento socialista russo, de tendências politicamente oportunistas – inclinando-se ao compromisso e conciliação com os partidos liberais e reformistas da burguesia – que haviam se desenvolvido nos partidos social-democratas de toda a Europa.

Desenvolvimentos posteriores na Rússia, particularmente durante e após a revolução de 1905, confirmaram a análise de Lenin sobre o caráter de classe e a orientação democrático-liberal das tendências revisionistas e oportunistas. Traçar, mesmo que de forma resumida, o desenvolvimento da diferenciação política entre as tendências bolchevique e menchevique nos anos que se seguiram ao Segundo Congresso está necessariamente além do escopo desta comemoração da vida de Lenin.

No entanto, é preciso ressaltar que o entendimento de Lenin sobre a 'luta interna ao partido' contra o oportunismo, em todas as suas diversas formas, era profundamente diferente da concepção que prevalecia na Segunda Internacional. Lenin analisou as disputas sobre questões de tática, organização e programa como manifestações, no seio de partidos e facções, de divisões objetivas na sociedade. Tais divisões não deveriam ser vistas como distrações ao movimento socialista de seu engajamento na luta de classes, mas como um elemento essencial e inevitável dessa luta.

Lutando para desvendar os processos socioeconômicos que davam base ao desenvolvimento da luta entre tendências, Lenin via o oportunismo como manifestação dos interesses e pressão burgueses e pequeno-burgueses sobre a vanguarda revolucionária. A resposta apropriada a essa pressão, independente da forma através da qual fosse exercida, não poderia ser a busca por acomodação e acordos. O oportunismo não era, na visão de Lenin, uma parte legítima do movimento operário. Era, ao contrário, uma força debilitante, desmoralizante e reacionária, que desviava a classe trabalhadora do programa da revolução social para a capitulação à burguesia.

Foi essa atitude inflexivelmente hostil ao oportunismo que distinguiu o bolchevismo de todos os demais partidos e tendências políticas da Segunda Internacional, antes do início da Primeira Guerra Mundial.

O significado histórico mundial da luta travada por Lenin contra o oportunismo foi demonstrado em 1914. Quase da noite para o dia, os principais partidos da Segunda Internacional abandonaram suas promessas de defender a solidariedade internacional da classe trabalhadora e capitularam às classes dirigentes de seus países. A oposição à traição da Segunda Internacional, e o apelo à construção de uma Terceira Internacional, elevou Lenin e o Partido Bolchevique à vanguarda do movimento socialista mundial.

As características marcantes da resposta de Lenin ao colapso da Segunda Internacional foram, primeiro, sua demonstração da conexão entre a traição de agosto de 1914 e o desenvolvimento anterior do revisionismo e do oportunismo nos partidos social-democratas. Segundo, Lenin provou que o crescimento do oportunismo não se explicava em termos de traição pessoal (embora traições nesse campo certamente existissem), mas a partir de poderosas tendências socioeconômicas fundamentadas sobre o desenvolvimento do imperialismo nos últimos anos do século XIX e na primeira década e meia do século XX. Numa série de obras teóricas brilhantes – acima de tudo, o monumental Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo – Lenin apresentou uma análise abrangente da essência econômica do imperialismo, seu lugar na história do capitalismo, seu papel no crescimento do oportunismo e na corrupção generalizada das organizações de trabalhadores filiadas à Segunda Internacional e, finalmente, sua relação com o desenvolvimento da revolução socialista mundial.

Em uma síntese de seu trabalho a respeito das causas e significado da guerra, intitulado Imperialismo e a Cisão do Socialismo, Lenin escreveu:

O imperialismo é uma etapa histórica específica do capitalismo. Sua especificidade é tripla: o imperialismo é capitalismo monopolista; capitalismo parasitário, ou em decomposição; capitalismo moribundo. A substituição da livre concorrência pelo monopólio é a característica econômica fundamental, a essência do imperialismo. O monopólio se manifesta em cinco formas principais: (1) cartéis, consórcios e trustes– a concentração da produção atingiu um grau que dá origem a essas associações monopolistas de capitalistas; (2) a posição monopolista dos grandes bancos – três, quatro ou cinco bancos gigantescos comandam toda a vida econômica da América, da França e da Alemanha; (3) a apropriação das fontes de matéria-prima pelos trustes e pela oligarquia financeira (o capital financeiro é o capital industrial monopolista fundido com o capital bancário); (4) a partilha (econômica) do mundo pelos cartéis internacionais começou. Já existem mais de cem desses cartéis internacionais, que comandam todo o mercado mundial e o dividem 'amistosamente' entre si – até que a guerra o divida novamente. A exportação de capital, diferentemente da exportação de mercadorias sob o capitalismo não-monopolista, é um fenômeno altamente característico e está intimamente ligada à partilha econômica político-geográfica do mundo; (5) a divisão territorial do mundo (colônias) já está completa. [Collected Works, Vol. 23, P. 195].

Lenin chamou a atenção a uma série de características políticas cruciais da época imperialista.

A diferença entre a burguesia imperialista democrático-republicana e a monárquico-reacionária apaga-se precisamente porque ambas apodrecem vivas... Em segundo lugar, a decomposição do capitalismo se manifesta na criação de uma enorme camada de rentistas, capitalistas que vivem de 'recortar cupons de investimentos'. ... Em terceiro lugar, a exportação de capital é o parasitismo elevado ao quadrado. Em quarto lugar, 'o capital financeiro luta pela dominação, não pela liberdade'. A reação política a todo momento é uma característica do imperialismo. Corrupção, suborno em gigantescas proporções e todo tipo de fraude. Em quinto lugar, a exploração das nações oprimidas – indissoluvelmente ligada às anexações – e particularmente a exploração das colônias por um punhado de 'grandes' potências transforma, cada vez mais, o mundo 'civilizado' em um parasita no corpo de centenas de milhões nas nações não civilizadas. O proletariado romano vivia às custas da sociedade. A sociedade moderna vive às custas do proletariado moderno. Marx ressaltou especialmente essa profunda observação de Sismondi. O imperialismo modifica um pouco a situação. Uma camada superior privilegiada do proletariado nos países imperialistas vive parcialmente às custas de centenas de milhões de pessoas nas nações não civilizadas. [Ibid, pp. 106-07].

Apesar de todos os desenvolvimentos na economia global ao longo do século passado, a análise de Lenin sobre as características econômicas e políticas do imperialismo conserva imensa relevância na contemporaneidade. Uma passagem que ressoa com força excepcional no período atual convoca os socialistas a 'ir mais baixo e mais fundo, até as massas reais; nisto consiste todo o significado e todo o propósito da luta contra o oportunismo'. [Ibid, p. 120].

O Imperialismo e a Cisão do Socialismo foi escrito em outubro de 1916. Lenin vivia em Zurique, que lhe serviu como sede política enquanto dirigia politicamente a oposição internacionalista revolucionária à guerra. Em janeiro de 1917, Lenin deu uma palestra em comemoração do décimo segundo aniversário da Revolução de 1905. Ele disse:

Não devemos nos deixar enganar pela mórbida calmaria que reina atualmente na Europa. A Europa está grávida da revolução. Os horrores monstruosos da guerra imperialista, o sofrimento causado pelo alto custo de vida em todas as partes geram um clima revolucionário; e as classes dirigentes, a burguesia e seus serviçais, os governos, estão cada vez mais se dirigindo a um beco sem saída no qual será impossível se desviar de tremendas insurreições. [Ibid, p. 253].

Apenas seis semanas depois, a revolução antecipada por Lenin nasceu nas ruas de Petrogrado. O regime czarista foi derrubado por um levante massivo da classe trabalhadora, levando ao poder um Governo Provisório burguês, apoiado pelo Partido Menchevique e pelo Partido Socialista Revolucionário. Com Lenin preso em Zurique, os líderes do Partido Bolchevique que já estavam em Petrogrado, sobretudo Lev Kamenev e Josef Stalin, apoiaram criticamente o Governo Provisório e a permanência da Rússia na Guerra Mundial.

Lenin enviou suas 'Cartas de Longe' a Petrogrado, nas quais deixou clara a sua oposição ao Governo Provisório. Mas foi só quando conseguiu retornar à Rússia, a bordo de um 'trem blindado' em abril, que Lenin conseguiu iniciar a luta política que levou a uma mudança fundamental no programa e na orientação estratégica do Partido Bolchevique e o orientou ao caminho que o levou à conquista do poder em outubro de 1917.

A luta iniciada por Lenin, desde o primeiro momento de seu retorno à Rússia, representa a luta política mais consequente de sua vida. As 'Teses de Abril' de Lenin repudiaram o programa da 'Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato', que orientara a estratégia e a prática política do Partido Bolchevique desde a revolução de 1905. Esse programa definia a luta pela derrubada do regime czarista como uma revolução de caráter democrático burguês. A fórmula bolchevique insistia no papel de direção que a classe trabalhadora ocuparia na revolução vindoura e aspirava à destruição de todos os remanescentes feudais e antidemocráticos do regime czarista. No entanto, o programa dos bolcheviques não exigia a derrubada da burguesia russa e a eliminação das relações de propriedade capitalista.

Além disso, a formulação programática dos bolcheviques – definindo o novo regime revolucionário como uma 'ditadura democrática do proletariado e do campesinato' –gerava um grau significativo de ambiguidade em relação à natureza precisa do poder de Estado que deveria emergir da derrubada do regime czarista.

Entre os anos de 1905 e 1917, a crítica à esquerda mais abrangente do programa bolchevique da ditadura democrática foi apresentada por Leon Trotsky. Sua teoria da revolução permanente previa que a derrubada do czarismo levaria, mais cedo ou mais tarde, à conquista do poder pela classe trabalhadora. Apesar do atraso econômico da Rússia, o desenvolvimento global do capitalismo e da geopolítica imperialista encerravam as possibilidades da Revolução Russa se desenvolver de acordo com a linha democrático-burguesa e capitalista, como fora tradicionalmente previsto pelos marxistas. A Revolução Russa colocaria diante da classe trabalhadora a tarefa de derrubar a burguesia e tomar o poder em suas próprias mãos. Vendo a Revolução Russa como a abertura da revolução socialista mundial, Trotsky insistiu que a sobrevivência da ditadura proletária na Rússia dependeria da derrubada do capitalismo pela classe trabalhadora dos países capitalistas avançados, sobretudo da Alemanha.

Antes de 1914, Lenin havia descartado a teoria da revolução permanente de Trotsky como 'absurdamente esquerdista'. Entretanto, a eclosão da guerra mundial levou Lenin a reavaliar a velha fórmula bolchevique e reconsiderar sua atitude em relação ao programa de Trotsky. Esse não foi um caso de plágio político. Lenin chegou a conclusões muito próximas às de Trotsky, se não inteiramente idênticas, como consequência de sua própria análise da dinâmica econômica e política global da guerra mundial. Abordando a política de forma imensamente principista, Lenin reconheceu a necessidade de mudar o programa do partido. No decorrer de uma luta política que se estendeu por várias semanas, ele conseguiu reorientar o Partido Bolchevique e colocá-lo no rumo que o levou à conquista do poder político em outubro.

Há ainda outro episódio no drama de 1917 que atesta a extraordinária ligação entre teoria e prática na obra de Lenin. Na sequência da derrota sofrida pela classe trabalhadora de Petrogrado durante as Jornadas de Julho, a ascensão da contrarrevolução forçou Lenin a se esconder. Sob as mais duras condições políticas, com sua vida em constante perigo, Lenin se preparou para a retomada da luta pelo poder escrevendo O Estado e a Revolução. A concepção de Lenin de como o partido marxista preparou a si mesmo e à classe trabalhadora para as grandes tarefas políticas aparece de forma exemplar em seu prefácio a esta notável obra, cuja importância não foi diminuída nem mesmo com o passar de um século.

A luta para a libertação dos trabalhadores da influência da burguesia em geral, e da burguesia imperialista em particular, é impossível sem uma luta contra os preconceitos oportunistas em relação ao 'Estado'. …

A questão da relação da revolução socialista proletária com o Estado adquire, portanto, não apenas uma importância política prática, mas também o significado de um dos problemas mais urgentes da atualidade: o problema de explicar às massas o que elas deverão fazer em breve para se libertarem da tirania capitalista. [Collected Works, Vol. 25, p. 388].

A tomada do poder pela classe trabalhadora russa, liderada pelo Partido Bolchevique, ocorreu nos dias 25 e 26 de outubro. Em seu relato Dez Dias que Abalaram o Mundo, John Reed testemunhou a entrada triunfal de Lenin no Soviet de Petrogrado e fez esta vívida descrição do grande líder revolucionário: 'Vestia roupas surradas, suas calças eram longas demais para ele. Pouco expressivo para o ídolo de uma multidão, amado e reverenciado como talvez poucos líderes na história tenham sido. Um estranho líder popular – um líder puramente em virtude de seu intelecto; incolor, sem humor, inflexível e distante, sem características pitorescas – mas com o poder de explicar ideias profundas em termos simples, de analisar uma situação concreta. E aliada à astúcia, uma gigantesca audácia intelectual'.

A descrição de Lenin, feita por Reed, como 'incolor' e 'sem humor' pode com razão ser contestada. Há muitos relatos da personalidade de Lenin que dão ampla evidência das qualidades que Reed não percebeu no dia em que o líder do Partido Bolchevique estava totalmente absorvido com a derrubada do Estado burguês e o estabelecimento de um governo revolucionário. Mas a caracterização feita por Reed de Lenin como 'um líder puramente em virtude de seu intelecto' é, apesar de um pouco enviesada, justificada. Lenin representou um novo tipo de líder político, que procurou basear o programa e prática de seu partido e da classe trabalhadora num entendimento científico da realidade objetiva.

O problema de atingir o alinhamento adequado entre a teoria e a prática foi uma preocupação central de toda a vida política de Lenin. 'A maior tarefa da humanidade', escreveu Lenin em Materialismo e Empiriocriticismo, 'é compreender essa lógica objetiva da evolução econômica (a evolução da vida social) em suas características gerais e fundamentais, para que possamos adaptar a ela nossa consciência social e a consciência das classes avançadas de todos os países capitalistas da forma mais definida, clara e crítica possível'. [Collected Works, Vol. 14, p. 325].

Lenin, Leon Trotsky e Lev Kamenev motivam as tropas para lutar na guerra Polonesa-Soviética. 1º de maio de 1920

Há 50 anos, em 1970, o centenário do nascimento de Lenin foi ocasião para inúmeros encontros, seminários, simpósios, manifestações e comícios, nos quais sua vida foi celebrada. Mas, em sua maioria, esses eventos foram dedicados à falsificação de seu trabalho político. A União Soviética ainda existia e a burocracia governante distribuía vastos recursos para promover uma versão da vida de Lenin compatível com as necessidades da burocracia stalinista no poder. Todos os vestígios de sua estreita colaboração com Trotsky tiveram que ser apagados. Lenin, que havia travado uma guerra contra o capitalismo ao longo de toda sua vida, precisava ser transformado em um defensor do caminho parlamentar para o socialismo e da convivência pacífica entre as classes.

Tendo transferido seu corpo mumificado a um mausoléu, os impostores do Kremlin tentaram se apresentar como os legítimos herdeiros do grande revolucionário. Na verdade, os funcionários do Kremlin, que subiram no topo do mausoléu na Praça Vermelha para celebrar o centenário, eram os herdeiros do criminoso contrarrevolucionário Stalin e os beneficiários da traição dos princípios e do programa da Revolução de Outubro.

Lenin, no capítulo de abertura de O Estado e a Revolução, havia antecipado seu próprio destino. 'As classes opressoras', escreveu ele, 'perseguiram constantemente os grandes revolucionários ao longo de suas vidas e receberam suas teorias com a malícia mais selvagem, o ódio mais furioso e as campanhas mais inescrupulosas de mentiras e calúnias. Após sua morte, fazem tentativas de convertê-los em ícones inofensivos, canonizá-los, por assim dizer, e, até certo ponto, santificar os seus nomes para o 'consolo' das classes oprimidas e com o objetivo de enganar estas últimas, ao mesmo tempo em que roubam da teoria revolucionária a sua substância, vulgarizando e cegando a sua lâmina revolucionária'. [Collected Works, Vol. 25, p. 390]

Mas hoje, ao marcarmos o 150º aniversário do nascimento de Lenin, a história deu uma volta completa. Em meio a uma crise global sem precedentes, o legado do verdadeiro Lenin – que foi defendido pelo movimento trotskista – vai novamente educar e inspirar uma nova geração de trabalhadores e jovens revolucionários.

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