Publicado originalmente em 5 de maio de 2020
A calamidade da COVID-19 está tendo o mesmo efeito geral sobre os artistas e o mundo artístico, assim como em todas as outras forças de trabalho e esferas econômicas. Ela está devastando as vidas de muitos artistas, ameaçando levar galerias menores e empreendimentos relacionados à falência e ampliando ainda mais a distância entre os ricos e os pobres.
A grande questão é o quanto a crise amplia a perspectiva dos artistas, radicaliza e encoraja a sua oposição consciente ao capitalismo, a fonte do atual desastre.
Um estudo recente pelo Art Newspaper e Rachel Pownall, professora de finanças na Universidade de Maastricht, revelou que as galerias de artes ao redor do mundo esperam perder uma média de 72% da sua receita anual por causa da pandemia.
A pesquisa de meados de abril com 236 revendedores e galerias de arte e antiguidades internacionais descobriu que aqueles no Reino Unido preveem a maior queda, 79%, seguidos pela Ásia (77%), América do Norte (71%) e o resto da Europa.
Aproximadamente um terço das galerias em todo o mundo (33,9%) não esperam sobreviver à crise. Segundo o Art Newspaper, “Enfatizando a vulnerabilidade de empresas menores, revendedores com 5-9 funcionários relataram a menor probabilidade de resistir (62%), enquanto galerias maiores com mais de dez funcionários foram mais otimistas, com três quartos esperando resistir à crise”.
A pesquisa mostrou que as galerias também estão "com dificuldades para pagar elevados aluguéis por locais nos quais elas não podem sequer entrar, muito menos utilizar como comércio - dois terços das galerias relataram estar ‘muito preocupadas’ ou ‘preocupadas’ com isso. Para muitas galerias menores, é um momento decisivo; elas declaram que se não conseguirem alguma forma de alívio do aluguel nesse momento - seja uma redução de aluguel, suspensão ou perdão completo - não sobreviverão ao fechamento [da economia]". Em Nova York, o aluguel de um negociante de arte médio é de quase 40% das suas despesas mensais.
Alison Cole, editora do Art Newspaper, disse ao Guardian: “Na ponta superior, o mundo da arte é uma indústria de luxo, mas muitas das pessoas que trabalham nele - os artistas, os embaladores, os funcionários de galeria - estão em posições muito precárias. Nós publicamos um artigo recentemente em que um terço das galerias francesas poderiam fechar até o fim de 2020. Mesmo que o mercado de arte se recupere, será um mundo muito menor”.
Os maiores custos financeiros, como em toda crise, recaem sobre aqueles menos capazes de suportá-la. No mês passado, o Wall Street Journal noticiou que tanto a Sotheby’s quanto a Christie’s, as enormes casas de leilões de arte, colocariam os funcionários em regime de licença e cortariam os salários.
O Observer (anteriormente o New York Observer) comentou: “Casas de leilões, que, é claro, dependem enormemente da dinâmica interpessoal estabelecida nos salões de vendas e escritórios, estão agora enfrentando o desafio de transferir todo o seu negócio para a arena digital. Infelizmente, seus funcionários estão atualmente pagando o preço por uma forte queda nas vendas”.
“Os trabalhadores de todas as diferentes indústrias sofreram devido ao imenso impacto do contágio mortal, e tanto trabalhadores das artes de tempo integral e parcial estão se vendo em condições difíceis no novo cenário que tem impedido temporariamente o acesso aos museus, galerias e agitadas feiras de artes".
Em “Os últimos dias do mundo da arte ... e talvez os primeiros dias de um novo”, o crítico de arte, Jerry Saltz, argumentou que o desastre do coronavírus “só irá agravar as desigualdades que dominam cada vez mais este universo, com mega galerias e estrelas da arte sobrevivendo e a distância entre elas e todo o resto apenas aumentando, tornando os artistas e as galerias mais pobres quase invisíveis”.
O coronavírus está agindo nessa esfera também como um acelerador de processos que já estão bastante avançados. Saltz apontou que as condições já estavam difíceis “para aqueles que não estão no topo da cadeia alimentar. Muitas galerias estão relatando estar financeiramente empobrecidas por custos cada vez maiores e pagando para participar (não ficar para trás?) de infindáveis feiras de arte, sempre viajando para bienais e exposições ao redor do mundo. Os artistas estavam deixando as galerias menores em grandes números e indo para as mega galerias. A COVID-19 multiplicou isso cem vezes”.
A maioria das galerias, apontou Saltz, “não possuem o dinheiro para enfrentar um fechamento de seis meses. Ou para abrir e depois passar por isso novamente no outono e inverno se o vírus retornar. O Wall Street Journal noticiou que muitas organizações de arte performática não possuem as reservas para resistir mais do que um mês. A maioria das galerias não está muito mais preparada. Essas galerias fecharão. Os funcionários já estão sendo demitidos em todas as galerias”.
As escolas de arte “podem fazer o mesmo”, adicionou o crítico. “Na semana passada”, escreveu, “o Instituto de Arte de São Francisco, de 150 anos, anunciou que não haveria aulas de inverno. As escolas de arte se tornaram muito caras, mas ainda é possível que uma infraestrutura educacional de um século será dizimada, assim como os empregos e benefícios de dezenas ou centenas de milhares de pessoas que trabalham nessas esferas. Esses empregos são a única forma como muitos artistas ganham um salário”.
O mundo do comércio de arte tem crescido exponencialmente nas últimas décadas, em sintonia com o aumento do mercado de ações e a obsessão pelo acúmulo por meio do parasitismo e especulação. O Guardian em abril apontou para a riqueza que alimentou “o mundo da arte nos últimos 20 anos - um período de descomunal crescimento, expansões de museus, preços de leilões cada vez maiores, mais feiras de arte a cada mês”.
O momento em que o processo chegará a um abrupto fim não está claro. A atual ascensão no mercado de ações, baseada no despejo do Federal Reserve de trilhões em bancos e corporações, pode trazer ainda mais fôlego, instável e corrupto, para as parcelas mais exclusivas do mundo artístico - aquelas servindo aos compradores e investidores mais ricos.
Para as casas de leilões, mesmo nas condições atuais, nem tudo está perdido. A CNN noticiou em 23 de abril que a Sotheby’s, apesar de estar “fechando instalações em todo o mundo e colocando seus funcionários em regime de licença devido à pandemia de coronavírus”, havia recentemente “realizado seu maior leilão de arte online”. Incluindo o trabalho “de pessoas como Andy Warhol e Damien Hirst, a venda ‘Contemporary Curated’ gerou mais de US$ 6,4 milhões - um novo recorde online para a casa de leilões”.
Diferentes processos sociais estão em andamento. A pandemia do coronavírus forneceu uma dura dose de realidade para amplas camadas da população. Associado a isso, uma onda de interesse na arte e cultura parece ter surgido, como se as massas tivessem sido súbita e objetivamente impulsionadas pela terrível crise a procurar por respostas para uma série de problemas complexos.
Assim como muitas orquestras e companhias de ópera, museus e galerias tem colocado seus trabalhos e conteúdos online. A reação pública em muitos casos tem sido ótima. A página online da coleção do Museu Britânico “saltou de aproximadamente 2 mil visitas diárias para 175 mil no início da semana passada, e agora está em 75 mil por dia em média” (New Statesman). Em meados de março, a Galeria Courtauld em Londres, um museu de arte que se especializa em pinturas francesas impressionistas e pós-impressionistas, passou por um aumento de 723% de uma semana para a outra em visitantes da sua visita virtual. As visitas no site do museu do Louvre de Paris explodiram, indo de 40 mil visitas diárias para 400 mil. O site do mundialmente famoso Museu Hermitage em São Petesburgo, Rússia, foi acessado 10 milhões de vezes desde o seu fechamento temporário.
Sem dúvida, isso deve ser atribuído em grande parte à perda de acesso a outros meios de ver coleções de arte e de museu de maneira geral, mas não tudo. O desastre está produzindo uma fome por conhecimento.
Ao mesmo tempo, na outra ponta da sociedade, “Pessoas ricas entediadas estão fazendo compras online por pulseiras de US$500 mil”, comentou recentemente a Bloomberg.
Para o “espanto” de Catharine Becket da Sotheby’s, encarregada pela venda das “magníficas jóias” da casa de leilão, a Bloomberg noticiou, “as vendas de jóias colecionáveis começaram a ir bem - muito bem. Falando com seus clientes abastados, ela descobriu que eles estavam comprando jóias como um tipo de ensejo. ‘Os clientes estão se mantendo em casa e, de maneira geral, levando vidas relativamente entediantes’, disse Becket. Alguns, adicionou, disseram a ela que “eles estão vestindo seus grandes diamantes dentro das suas casas porque isso traz alegria”.
“Todos”, disse ela, “estão esperando para que isso acabe e, eu suponho, saber que uma jóia de um milhão de dólares está te esperando é uma satisfação quando as coisas voltarem ao normal”. Isso dificilmente requer ser comentado.
O que os pintores, escritores e cineastas farão a partir das atuais circunstâncias dolorosas e contraditórias? O atual desastre torna a posição do artista sério e honesto ainda mais impossível dentro da sociedade burguesa. A política oficial, da direita à “esquerda”, em todos os países só consegue gerar cada vez mais repugnância e horror. As ilusões nos políticos que, pelas suas políticas brutais de “volta ao trabalho”, estão condenando centenas de milhares à morte, em grande parte, desaparecerão. E depois?
A pandemia também expôs a falência da política de gênero e de raça, que tem dominado o mundo da arte nos últimos anos. O que há de comum entre os esforços egoístas de um pequeno grupo por mais privilégios e posições e as necessidades de amplas camadas da população, cujas vidas estão em perigo pela existência contínua do sistema de lucro? Na sua grande maioria, aqueles que estão sofrendo e morrendo pertencem à classe trabalhadora ou às seções menos privilegiadas da classe média. A questão de classe revelou novamente - da maneira mais gráfica e horripilante - a sua enorme importância. As figuras artísticas mais sensíveis devem começar a tomar nota!
A situação objetiva exige, a nosso ver, uma guinada pelos artistas para a realidade histórica e social - os níveis atuais de entendimento são totalmente inadequados - e uma guinada também para a classe trabalhadora e seu destino. Vamos desenvolver esse tema em artigos futuros.