Publicado originalmente em 4 de julho de 2020
Hoje comemoram-se os 244 anos da proclamação da Declaração de Independência, que em 4 de julho de 1776 instituiu os Estados Unidos da América. Quando a Declaração foi publicada, os colonos americanos – especialmente os de Massachusetts – já estavam em guerra com as imensamente poderosas forças militares do Reino Unido há 15 meses. Embora a decisão final pela independência ainda não tivesse sido tomada, em 11 de junho o Congresso Continental, reunido na Filadélfia, atribuiu a uma comissão de cinco membros a redação de uma Declaração. Essa comissão foi formada por Benjamin Franklin da Pensilvânia John Adams de Massachusetts, Thomas Jefferson da Virgínia, Robert Livingston de Nova York e Roger Sherman de Connecticut.
Depois de elaborar um esboço do documento, a comissão decidiu que a primeira versão deveria ser escrita por Tom Jefferson, então com 33 anos de idade, cujo intelecto excepcional e notáveis dons literários já eram amplamente reconhecidos. Em 28 de junho, ele concluiu a primeira versão, que foi então revisada pelos membros do Congresso. Várias mudanças foram feitas no decorrer do processo de edição. A mudança mais substancial foi a remoção da acusação de Jefferson do Reino Unido por ter imposto a escravidão às colônias. Em 2 de julho de 1776, o Congresso Continental adotou uma resolução que autorizou a ruptura com o Reino Unido. Dois dias depois, em 4 de julho, aprovou a versão final da Declaração de Independência.
A consequência política imediata do documento – a ruptura formal com o Reino Unido e o início de uma guerra em larga escala para garantir a independência dos Estados Unidos – foi, por si só, suficiente para conferir à Declaração um imenso e duradouro significado histórico. No entanto, não foi apenas o impacto político direto do documento, mas também os princípios por ele enunciados que determinaram a estatura histórica mundial da Declaração.
O documento começa com as seguintes palavras: “Quando, no curso dos acontecimentos humanos, torna-se necessário para um povo dissolver os laços políticos que o mantinha ligado a outro...”. O que essas palavras significavam era que os governos, e as relações políticas e sociais nas quais se baseavam e que defendiam, não eram intemporais e inalteráveis. Foram criados pelos homens, não por Deus. Essa afirmação acabou com a justificativa, consagrada pela religião, que fundamentava a monarquia e a aristocracia, ou seja, todas as formas de poder político baseado na veneração obscurantista das linhas de sangue. O que foi criado pelo homem poderia ser transformado pelo homem.
A Declaração então afirma de maneira notável: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.
Em um sentido estritamente empírico, não havia nada “evidente em si mesmo” – isto é, tão obviamente verdadeiro que não precisava de mais argumentos – sobre nenhuma dessas “verdades”. A realidade, como era constatada em todo o mundo, inclusive nas colônias, contradizia o que a Declaração afirmava ser “evidente em si mesmo”.
No mundo do final do século XVIII, a maioria dos seres humanos era tratada como animais de carga, se não pior. Em que parte do mundo as condições existentes comprovavam a afirmação de que toda a humanidade havia sido “criada igual”? As monarquias e aristocracias se baseavam na legitimidade indiscutível da inerente desigualdade. O lugar das pessoas na sociedade, mesmo onde tinha havido uma lenta erosão das relações feudais, era uma manifestação de um desígnio divino.
Onde estava a “Vida”, para a grande massa de pessoas, honrada e protegida? No avançado Reino Unido, crianças de até seis anos de idade poderiam ser enforcadas por roubar um lenço de uma pessoa rica. A grande massa de pessoas vivia na miséria, imposta por rígidas relações de hierarquia feudal e semifeudal. Havia pouca “Felicidade” na vida da população em geral, muito menos para os milhões em todo o mundo e nas Américas que eram escravizados e quase não eram considerados humanos.
As “verdades” invocadas por Jefferson não eram “evidentes por si mesmas” em um sentido puramente empírico. Eram antes “verdades” que foram obtidas através da aplicação do pensamento científico, ou seja, da Razão, como havia se desenvolvido sob a influência do físico Isaac Newton, de pensadores materialistas como John Locke e dos grandes filósofos franceses do Iluminismo, ao estudo da história e da sociedade humana. Foi a aplicação da Razão que determinou o que era, e não era, politicamente legítimo. Foi a ciência, não as invocações irracionais e infundadas de uma ordem divina, que passou a determinar o que deveria ser. Foi neste sentido profundo que a igualdade do homem e os “Direitos inalienáveis” à “Vida, Liberdade e Busca da Felicidade” eram “evidentes por si mesmos”.
Jefferson e seus companheiros de luta estavam bem cientes que as condições políticas e sociais empiricamente existentes não estavam de acordo com as “verdades evidentes por si mesmas” afirmadas na Declaração. A partir disso, concluíram que os governos obtêm seus “poderes justos a partir do consentimento dos governados”. Portanto, “sempre que qualquer Forma de Governo passa a destruir esses fins, é Direito do Povo alterá-lo ou aboli-lo, e instituir um novo Governo, lançando seu fundamento em tais princípios e organizando seus poderes de tal forma que a eles pareçam mais propensos a efetivar sua Segurança e Felicidade”.
Assim, a Declaração de Independência estabeleceu que a revolução era um meio legítimo e até mesmo necessário para tirar do poder governos que haviam se tornado opressores e nocivos à “Felicidade” do povo. Jefferson defendeu esse princípio e não demonstrou a mínima reticência quando as massas da França, inspiradas pela Revolução Americana, se vingaram sangrentamente contra o Rei Luís XVI e a aristocracia. O rei, declarou Jefferson, deveria ser punido “como os outros criminosos”. Ao invés de testemunhar a derrota da Revolução Francesa, Jefferson escreveu a um amigo: “Eu teria visto a metade da terra desolada. Se só houvesse um Adão e uma Eva em cada país, e deixados livres, seria melhor do que como está agora.” Ele expressou uma alegria incontestável com a perspectiva da vitória da revolução, que “levaria consigo reis, nobres e sacerdotes aos cadafalsos que há tanto tempo estão inundados de sangue humano”.
É, claro, um fato histórico inegável que a posse pessoal de escravos por Jefferson e seus compromissos com a escravidão representam a grande ironia e até mesmo a tragédia de sua vida. Porém, foram a expressão em sua vida das condições sociais existentes e das contradições do mundo em que ele nasceu – um mundo no qual a escravidão, a servidão feudal e numerosas formas de servidão por contrato floresceram e cujas legitimidades dificilmente eram questionadas. Sem dúvida, os filisteus moralizadores da universidade continuarão a condenar Jefferson. Mas essas condenações não alteram de forma alguma o impacto revolucionário da Declaração de Independência.
A Revolução Americana de 1775-83 não resolveu o problema da escravidão. Isso não aconteceu porque Jefferson ou outros líderes revolucionários, como Washington, que possuía escravos, impediram que esse problema fosse resolvido. O caráter incompleto da primeira etapa da revolução democrática burguesa dos EUA foi determinado pelas condições objetivas existentes – e não simplesmente aquelas que existiam na América do Norte. A humanidade, como Marx explicou mais tarde, “sempre se propõe apenas as tarefas que pode resolver; uma vez que, analisando o assunto mais de perto, sempre descobriremos que a tarefa em si surge apenas quando as condições materiais necessárias para sua solução já existem ou estão pelo menos em processo de formação”. As condições para resolver o problema da escravidão ainda não existiam. Seriam necessárias várias décadas de desenvolvimento industrial e o surgimento de uma classe capitalista economicamente poderosa no Norte para que isso acontecesse. Além disso, essa classe tinha que desenvolver um movimento político democrático capaz de mobilizar massas e sustentar uma longa e amarga guerra civil.
Esse processo social e econômico fundamental se desenvolveu rapidamente nas décadas após a Revolução Americana. O desenvolvimento capitalista do Norte tornou-se cada vez mais incompatível com a dominação política dos Estados Unidos pelo Poder dos Escravistas. Essa incompatibilidade objetiva encontrou sua expressão ideológica na consciência cada vez mais profunda de que os ideais de igualdade humana enunciados na Declaração de Independência não podiam ser compatíveis com a horrível realidade da escravidão.
Entretanto, deve-se ressaltar que o processo de causalidade histórica que levou à Guerra Civil não foi impulsionado apenas por fatores socioeconômicos, nem os conflitos ideológicos foram meros reflexos desses fatores. A influência exercida pelos princípios articulados na Declaração desempenhou um papel imenso, quase independente, para influenciar a consciência política das massas no Norte e prepará-las para uma luta intransigente contra o Poder dos Escravistas.
O desenvolvimento intelectual e político de Abraham Lincoln representou a influência exercida por Thomas Jefferson e a Declaração que ele redigiu. Repetidas vezes, em numerosos discursos, Lincoln invocou o legado político de Jefferson. Por exemplo, em uma carta escrita em 1859, Lincoln declarou:
Toda honra a Jefferson – ao homem que, na pressão concreta de uma luta pela independência nacional por um único povo, teve a frieza, previsão e capacidade de introduzir em um documento simplesmente revolucionário uma verdade abstrata, e assim embalsamá-la ali, que, hoje e em todos os próximos dias, constituirá uma censura e um obstáculo para os próprios presságios do ressurgimento da tirania e da opressão.
Após sua eleição para a presidência em 1860, Lincoln declarou: “Eu nunca tive um sentimento político que não brotasse dos sentimentos incorporados na Declaração de Independência”.
E a caminho de Washington para assumir a presidência, Lincoln explicou:
Não era [a Revolução] a mera questão da separação das colônias da terra-mãe, mas [desse] sentimento na Declaração de Independência, que deu liberdade não só ao povo deste país, mas esperança para todo o mundo, para todo o tempo futuro. Foi o que deu a promessa de que no devido tempo os pesos seriam retirados dos ombros de todos os homens, e que todos deveriam ter uma chance igual. Este é o sentimento incorporado na Declaração de Independência.
Jefferson foi o autor do grande manifesto revolucionário que forneceu a inspiração ideológica para a Guerra Civil. Sob a liderança de Lincoln, os exércitos da União – que finalmente mobilizaram e armaram dezenas de milhares de escravos contra a Confederação – destruíram a escravidão.
É claro que os Estados Unidos que saíram da Guerra Civil logo traíram as promessas de democracia e igualdade que Lincoln havia prometido. O “novo nascimento da liberdade” deu lugar aos imperativos do capitalismo moderno. Uma nova forma de luta social, entre uma classe trabalhadora emergente e uma burguesia industrial, passou a dominar o cenário político e social. Nesta nova luta de classes, a burguesia do norte viu o benefício de uma aliança com os remanescentes da antiga classe de senhores de escravos. A Reconstrução chegou ao fim. O racismo foi estimulado e utilizado como uma arma poderosa contra a unidade da classe trabalhadora.
A oposição intransigente a essa forma específica de reação política tornou-se uma tarefa central da classe trabalhadora na luta pelo socialismo. Somente através do estabelecimento do poder dos trabalhadores, do fim do capitalismo e da construção de uma sociedade socialista em escala mundial, o flagelo do racismo e todas as formas de opressão social podem ser superados. E, nessa luta, as palavras e os atos de Jefferson e Lincoln continuarão a servir de inspiração. Tudo o que foi historicamente progressista em suas vidas está presente no movimento socialista moderno.