Publicado orginalmente em 31 de julho de 2020
No sábado passado, completaram-se dez anos da publicação pelo WikiLeaks dos arquivos da guerra do Afeganistão, uma vasta coleção de documentos militares dos EUA vazados que ofereceu uma visão inédita da criminalidade de uma guerra que se tornou a mais longa da história estadunidense.
Os documentos foram divulgados, com comentários, análises e material contextual, em parceria com o New York Times, Guardian e Der Spiegel, cerca de três meses depois que o WikiLeaks publicou “Collateral Murder”, o célebre vídeo mostrando um massacre de civis, incluindo dois jornalistas da Reuters, realizado pelo exército dos EUA em 2007 no Iraque.
Ambas as revelações tiveram um impacto imenso na consciência popular, fortalecendo e aprofundando o enorme sentimento antiguerra expresso pela primeira vez nos enormes protestos internacionais contra a invasão do Iraque em 2003.
É significativo que esse movimento foi suprimido por grupos de pseudo-esquerda da classe média alta após as revelações de 2010 do WikiLeaks. Esses grupos estavam cada vez mais abandonando a oposição à guerra imperialista depois de terem apoiado a eleição de 2008 de Barack Obama, ao mesmo tempo que se alinhavam com outros partidos militaristas da elite dominante, como o Partido Trabalhista na Austrália.
Os arquivos da guerra do Afeganistão expuseram particularmente as alegações de inúmeros especialistas liberais, que defenderam que a ocupação daquele país era uma “boa guerra”, supostamente travada contra o terrorismo, para levar a democracia ao Afeganistão e proteger os direitos das mulheres. Eles contrastaram essa guerra com a operação “fracassada” no Iraque.
Isso se encaixou com a agenda da nova administração dos EUA. A hipócrita postura antiguerra de Obama durante as eleições de 2008 tinha sido acompanhada por uma escalada militar maciça no Afeganistão.
A construção desse mito foi facilitada pela supressão de qualquer informação sobre a situação real da guerra pelos EUA, por seus aliados e por uma mídia corporativa condescendente. O WikiLeaks levantou o véu sobre as mentiras, revelando uma ocupação neocolonial com o objetivo de saquear os recursos naturais e garantir o controle dessa importante região geoestratégica da Ásia Central.
O WikiLeaks revelou assassinatos em massa de civis, oposição popular generalizada e desmoralização dentro das fileiras do exército dos EUA em um número muito maior do que haviam sido revelados nos nove anos anteriores desde a invasão dos EUA.
A publicação revelou 91.000 arquivos do exército dos EUA produzidos entre janeiro de 2004 e dezembro de 2009. Eles foram fornecidos ao WikiLeaks por Chelsea Manning, que teve acesso ao material enquanto trabalhava como analista da inteligência militar.
Indicando a total integração da mídia corporativa ao setor militar, Manning só entregou o material ao WikiLeaks depois de suas tentativas fracassadas de entregá-lo ao New York Times e ao Washington Post. Ao publicar o material, o editor e depois editor-chefe do WikiLeaks, Julian Assange, o descreveu como “a história mais abrangente de uma guerra a ser publicada durante o curso da guerra”.
Ao contrário dos mercenários corporativos, que procuram esconder seu alinhamento à guerra imperialista por trás de uma máscara de imparcialidade, Assange foi decididamente partidário. Os documentos sugeriam milhares de crimes de guerra, afirmou ele, e sua divulgação serviria para mudar a opinião pública. “Os homens mais perigosos são os encarregados pela guerra. E eles precisam ser detidos”, disse ele.
Cerca de 20.000 mortes estão contabilizadas nos arquivos. Elas incluem pelo menos 195 vítimas civis mortas pelas tropas da OTAN, que haviam sido anteriormente escondidas do público.
De maneira explosiva, os documentos acabaram com a alegação de que as fatalidades foram o produto inevitável do “nevoeiro da guerra”, ou seja, de supostos contratempos e erros. O assassinato em massa não foi um subproduto acidental do conflito, mas um componente essencial de seu caráter de ocupação neocolonial de uma população inimiga.
A divulgação confirmou, pela primeira vez, a existência de uma “unidade negra” secreta dentro do exército dos EUA, cuja tarefa explícita era assassinar extrajudicialmente destacados “insurgentes”, ou seja, aqueles afegãos que se pensava estarem desempenhando um papel de liderança na luta pela libertação de seu país.
Os acontecimentos detalhados nos arquivos forneceram uma imagem da ilegalidade imperialista que talvez não tivesse sido vista desde os horrores da guerra do Vietnã várias décadas antes.
O Guardian registrou pelo menos 21 ocasiões em que tropas britânicas abriram fogo sobre civis, comentando: “Algumas baixas foram acidentalmente causadas por ataques aéreos, mas muitas também dizem envolver tropas britânicas que atiraram em motoristas desarmados ou motociclistas que chegaram ‘muito perto’ de comboios ou patrulhas”.
Citando apenas alguns dos eventos previamente desconhecidos dos arquivos, o jornal britânico escreveu: “Erros sangrentos à custa de civis, como registrado nos arquivos, incluem o dia em que as tropas francesas metralharam um ônibus cheio de crianças em 2008, ferindo oito. Uma patrulha dos EUA da mesma forma metralhou um ônibus, ferindo ou matando 15 de seus passageiros, e em 2007 as tropas polonesas massacraram uma vila, matando todos de uma festa de casamento, incluindo uma mulher grávida, em um aparente ataque de vingança.”
Ataques a civis foram frequentemente apresentados como “ações direcionadas” contra “militantes talibãs”. Para citar novamente o Guardian:
Um bombardeio Harrier é apontado como tendo matado oito pessoas. Em outro registro, um jato F16 chamado por um esquadrão de fuzileiros depois anunciou no rádio que podia ver ‘corpos sendo capturados na área alvo’. Sete civis foram feridos e um foi morto nesse ataque.
Um outro ataque de helicóptero Apache fora de Kandahar supostamente havia matado três Talibãs: mas se provou mais tarde que duas mulheres e duas crianças haviam morrido.
Uma explosão de míssil Hellfire de um drone não tripulado sobre Helmand também supostamente havia matado seis Talibãs. Mais tarde, revelou-se que ele havia ferido duas crianças.
Tropas britânicas em um posto de controle em Sangin mataram quatro e feriram três civis em julho. Em agosto, um esquadrão de paraquedistas disparou contra o que pensava serem insurgentes, matando três civis e ferindo quatro. E em setembro, um motociclista desarmado foi morto a tiros por uma patrulha britânica.
Os documentos indicavam de maneira consistente que os comandantes da Coalizão estavam cientes de que a maioria da população afegã era favorável à sua expulsão do país. Eles detalhavam as relações de fraqueza entre as forças lideradas pelos EUA e seus aliados do exército afegão, que foram maltratados. As forças estrangeiras viviam com medo constante de que, por causa de tal oposição popular, um de seus aliados afegãos “se rebelasse” e virasse suas armas contra os ocupantes.
As inumeráveis contradições da política externa imperialista dos EUA foram reveladas. Os comandantes aliados sabiam que os serviços de inteligência paquistaneses, que eram formalmente seus aliados, estavam colaborando estreitamente com os militantes islâmicos.
O conjunto das revelações deu à população mundial uma maior compreensão do primeiro crime de guerra imperialista do século do que qualquer outra publicação. Sua divulgação foi um evento histórico que será analisado e comentado durante décadas.
Mas os arquivos da guerra do Afeganistão ainda não se tornaram história. A ocupação brutal, que resultou na morte de cerca de meio milhão de afegãos, continua. Os criminosos de guerra não se livraram apenas de qualquer punição. Hoje eles comandam as forças armadas estadunidenses, australianas e britânicas e planejam novos crimes, incluindo conflitos catastróficos com potências com armas nucleares, como a China e a Rússia.
Os únicos indivíduos que foram punidos criminalmente pela publicação foram Chelsea Manning, que suportou uma década de perseguição, e Julian Assange, que está preso na prisão britânica de segurança máxima de Belmarsh aguardando audiências judiciais para sua extradição para os EUA.
Ele pode enfrentar nos EUA até 175 anos de prisão, na primeira vez em que um editor e jornalista é acusado sob a Lei de Espionagem. As revelações dos horrores da guerra do Afeganistão figuram na folha de acusação de Assange, onde são repetidamente apresentadas como prova de uma conspiração com Manning que ameaçava a segurança nacional dos EUA. O delito de “publicação pura”, ou seja, jornalismo, está entre os supostos crimes de Assange.
A acusação dos EUA inclui algumas das mentiras mais repetidas na mídia e pelo governo relacionadas aos arquivos da guerra do Afeganistão. Afirma novamente que sua publicação colocou em risco a vida do pessoal militar dos EUA e de seus informantes afegãos, uma alegação que foi desmascarada no tribunal marcial de Manning de 2013.
É mencionada a suposta presença dos documentos no complexo Abbottabad de Osama Bin Laden, onde ele viveu durante anos como protegido dos militares paquistaneses alinhados com os EUA. Revistas publicadas por think tanks ligados à CIA também foram encontradas no complexo, mas não houve nenhum pedido para que seus autores fossem acusados.
Além disso, a alegação de que Assange se mostrou imprudente foi completamente desmascarada. O jornalista australiano Mark Davis explicou no ano passado, a partir de suas próprias observações, que foi Assange, não seus parceiros no New York Times ou no Guardian, que pessoalmente redigiu milhares de páginas antes de serem publicadas. Cerca de 16.000 documentos não foram publicados para evitar que alguém fosse prejudicado.
Apesar disso, a alegação de que Assange demonstrou uma atitude despreocupada em relação à segurança dos informantes afegãos tornou-se uma das principais justificativas fornecidas pelos antigos parceiros do WikiLeaks no Guardian e no New York Times para trai-lo. O Times havia entrado em contato extensivamente com a administração Obama, uma vez que publicou apenas um punhado das revelações contidas nos arquivos.
Entretanto, à medida que os EUA intensificaram sua busca por Assange, até mesmo uma colaboração mínima com o WikiLeaks tornou-se demais para essas publicações.
Por mais cínicas e falsas que fossem suas afirmações, não é insignificante que o grito de guerra dos mercenários corporativos em sua corrida para se alinharem com a administração Obama e a CIA tenha sido a defesa dos informantes militares dos EUA. Nada sobre o conflito afegão, ao que parece, havia despertado as paixões desses repórteres tanto quanto a perspectiva de que os vira-casacas sofressem retaliação.
Os “jornalistas” se identificaram instintivamente com os informantes, nenhum dos quais foi morto ou ferido como resultado da publicação do WikiLeaks. Pode-se supor que eles compartilharam a vontade de vender princípios por dinheiro, uma ansiedade de alinhar-se com os poderosos e um desprezo por qualquer um que atravessasse o caminho deles. É preciso dizer que os informantes afegãos, em alguns casos, estavam salvando seus próprios pescoços. Os mesmos perigos não enfrentaram os repórteres em seus lares de Londres e Washington.
Essas calúnias foram desacreditadas uma década depois. Assange manteve corajosamente sua oposição ao imperialismo e à guerra diante de uma quase inédita vingança de estado. A luta por sua liberdade está na vanguarda da luta contra o militarismo e pelos direitos democráticos.