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Trabalhadores argentinos na encruzilhada

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Este documento foi publicado originalmente em sete partes, entre dezembro de 1988 e janeiro de 1989, no Bulletin, jornal da Workers League, a predecessora do Partido Socialista pela Igualdade (EUA) e então seção americana do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI).

No presente formato, ele foi publicado em 1989 na revista Fourth International Vol. 16 Nº 1-2, publicação internacional do CIQI.

A ascensão e queda da junta militar

O governo de Isabel Martinez de Perón foi derrubado na madrugada de 24 de março de 1976. Não houve resposta da classe trabalhadora ao apelo mudo da burocracia da CGT por uma greve geral. Há muito tempo os trabalhadores já haviam concluído que esses burocratas corruptos não tinham nenhuma intenção de conduzir qualquer luta e que, de qualquer forma, não havia nada a ser defendido no regime peronista. Uma junta militar chefiada pelo general Videla assumiu o poder. Declarou como sua missão realizar o "Processo de Reorganização Nacional", ou, como os anos de terror que se seguiriam se tornaram conhecidos, el proceso.

Martinez de Hoz, o ministro da Economia da junta, gabou-se de que a ditadura e o processo eram os defensores da "liberdade". Eles haviam trazido, declarou ele, "liberdade de preços, liberdade de câmbio, liberdade de comércio, liberação das importações, liberação das taxas de juros, liberação dos aluguéis urbanos e das taxas fundiárias rurais, eliminação da superproteção, liberdade de concentração salarial, liberdade de transferência de tecnologia, liberdade de investimento estrangeiro".

Para concretizar essas "liberdades" a ditadura militar partiu para a destruição das raízes e ramos do movimento operário argentino. Essa era uma tarefa que nenhum regime militar ou civil havia se demonstrado capaz de realizar no período posterior à queda de Perón, em 1955. Desta vez, as armas de terror, o desemprego e a destruição dos direitos democráticos básicos seriam empregados em uma escala sem precedentes.

Jorge Videla

Contratos de trabalho foram suspensos, os comitês de fábrica proibidos e milhares e milhares de trabalhadores combativos foram demitidos e presos. Em menos de um ano, a junta conseguiu cortar os níveis salariais quase pela metade.

Até hoje, os militares argentinos afirmam que foram obrigados a tomar o poder para travar uma "guerra suja" voltada contra um movimento guerrilheiro armado. Na realidade, esta "guerra" começou em 1973 – com plena colaboração do governo peronista e da burocracia sindical. Ela apenas tornou-se, após o golpe de 1976, o método oficial de governo.

No momento do golpe, as organizações guerrilheiras cujas atividades serviram de pretexto para a tomada do poder pelos militares já haviam sido dizimadas pela repressão selvagem. Os militares assumiram o poder não por medo do movimento armado da pequeno-burguesia, mas pela preocupação de que o peronismo perdia rapidamente sua capacidade de conter o movimento revolucionário dos trabalhadores argentinos. Por essa razão, a repressão sistemática foi dirigida, antes de tudo, à classe trabalhadora.

Nesse período, a Argentina introduziu a palavra "desaparecido" no vocabulário da repressão capitalista. Ela foi usada para descrever as cerca de 30.000 pessoas que foram sequestradas pelas forças de segurança em suas casas, empregos ou no meio da rua e levadas vivas para locais secretos de detenção dos quais nunca retornaram. Os prisioneiros eram torturados até a morte, fuzilados ou atirados de helicópteros para a morte.

Nos dias e meses seguintes ao golpe, era comum que os industriais e seus representantes denunciassem os sindicalistas mais ativos às autoridades como subversivos. Resumidamente, esses trabalhadores seriam presos e "desaparecidos".

Emilio Mignone, diretor do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais sediado em Buenos Aires, escreveu em um relatório sobre os desaparecimentos: "Um dos autores deste trabalho tem a indelével memória de uma conversa ouvida em uma reunião com empresários nos primeiros dias de abril de 1976, durante a qual um general aposentado, presidente de uma grande empresa privada, explicou que 27 ativistas – naquele momento desaparecidos – não os incomodariam mais porque já estavam sob cuidado, debaixo da terra…".

Essa repressão abominável foi implementada com um propósito calculado: semear o terror na classe trabalhadora, destruir as organizações operárias e assim reduzir os custos trabalhistas do capitalismo argentino.

O golpe de 1976 teve o apoio total de todos os partidos burgueses e de uma parte substancial da própria burocracia sindical. Afinal, a tarefa empreendida pelo regime militar era intensificar a repressão política à classe trabalhadora que já havia sido iniciada pelo regime peronista.

O Partido Comunista também apoiou Videla, afirmando que ele representava o "mal menor" e era a única coisa que impedia a "ala fascista" dos militares de tomar o poder. O PC gozou de legalidade ao longo dos anos de repressão, enquanto a junta expandiu enormemente seus laços comerciais com a União Soviética. Com base nas medidas de desregulamentação bancária introduzidas pela ditadura, os stalinistas, que controlavam uma série de cooperativas de crédito de trabalhadores, chegaram até a ter um lucro considerável durante esse período.

Mas a perspectiva de Martínez de Hoz para a recuperação do capitalismo argentino, baseada na integração ao mercado mundial, mostrou-se tão fracassada quanto o modelo de autarquia nacional contra o qual ele se voltou.

O capital financeiro e agrícola, junto às multinacionais, sustentavam-se sobre um grande setor de pequenas e médias empresas produzindo para o mercado interno. A especulação financeira e a crescente destruição das forças produtivas combinadas à recessão capitalista mundial do início dos anos 1980 produziriam uma onda de falências. A Argentina era cada vez mais dominada por uma dívida externa galopante e pelo aumento constante do desemprego.

Apenas cinco anos após a tomada do poder, a ditadura presidia um desastre econômico. Sob o impacto das perdas financeiras, a sólida frente de apoio político burguês à ditadura começou a ruir. Enquanto mantinham um silêncio discreto sobre a repressão terrível, os partidos burgueses começaram a manifestar objeções ao programa econômico da junta.

Mais decisivo, porém, foi o movimento da classe trabalhadora argentina, que reafirmou sua capacidade de lutar, apesar do assassinato em massa de trabalhadores combativos e socialistas. A partir de 1979, o número de greves aumentou continuamente. Em junho de 1981, os trabalhadores do setor automobilístico fizeram uma greve geral, resultando em pelo menos 4.000 prisões. Um mês depois, um milhão e meio de trabalhadores participaram de uma greve geral. Em novembro, mais de 50.000 trabalhadores desafiaram o regime, marchando pelas ruas de Buenos Aires clamando por "Paz, Pão e Trabalho". E em 30 de março de 1982, ao menos 15.000 manifestantes se enfrentaram com a polícia e os militares ao longo de todo o percurso dos subúrbios operários até o centro de Buenos Aires. Manifestações similares irromperam em outras grandes cidades.

A junta então embarcou em uma aventura desesperada com o objetivo de restaurar a "unidade nacional" – a invasão das Ilhas Malvinas colonizada pelos britânicos. Se, por um lado, o enfrentamento ao governo britânico das Malvinas, com 149 anos de duração, foi capaz de unificar brevemente os partidos burgueses, a burocracia sindical e a maior parte da pequeno-burguesia nacionalista por trás da junta, por outro, encontrou pouca simpatia no proletariado e logo tornou-se um fiasco.

A posse ilegal das Malvinas pela Grã-Bretanha é uma manifestação da opressão da Argentina pelo imperialismo e o fim desse colonialismo representa sem dúvida uma tarefa inacabada da revolução democrática. Mas em um país onde a classe trabalhadora é explorada por bancos estrangeiros e multinacionais e condenada à fome para pagar pela dívida externa, essa é dificilmente a tarefa mais urgente.

A junta acreditava que poderia obter uma vitória fácil nas Malvinas, baseando seu otimismo na falsa suposição de que o imperialismo americano a apoiaria em troca dos serviços prestados na repressão anticomunista, tanto na Argentina como pela América Latina. Isso só provou que os generais fascistas eram propensos a delírios de grandeza. No fim das contas, Washington valorizava muito mais o papel do imperialismo britânico na contrarrevolução mundial do que a junta de Buenos Aires. Além disso, via qualquer ameaça à dominação colonial ou semicolonial na América Latina como prejudicial a seus interesses na região. Afinal, os EUA ainda ocupam Porto Rico, a Zona do Canal do Panamá e Guantánamo, em Cuba.

A curta guerra que ocorreu provou que um exército que se dedicara à tortura e execução de homens, mulheres e crianças indefesos enquanto saqueava o país não era adequado para derrotar uma potência imperialista. Os recrutas inexperientes foram jogados nas ilhas sem roupas de inverno, muitas vezes abandonados por seus oficiais, para serem massacrados pelos comandos britânicos. Descobriu-se que os navios estavam carregados com contrabando em vez de munição, e a força aérea, que foi a única a atingir golpes reais contra a força britânica, descobriu que a maioria de suas bombas estavam avariadas devido à falta de manutenção.

A junta arruinou-se por completo. Somente a colaboração dos partidos burgueses, da burocracia sindical e dos nacionalistas pequeno-burgueses impediu sua derrubada revolucionária. Eles trabalharam para criar o respiro necessário para organizar uma "transição ordeira" ao regime civil e à posse do presidente Raúl Alfonsín, líder dos Radicais, o partido tradicional da pequena burguesia argentina.

Alfonsín chegou ao poder nas eleições de 1983 graças à crise incontornável do regime militar, combinada ao total descrédito do peronismo aos olhos das massas, que identificavam a burocracia sindical corrupta e de direita com a própria ditadura.

Inicialmente, ele tentou ganhar uma base de apoio popular através de uma demagogia antimilitarista. Mas nos últimos cinco anos, as ilusões nessa demagogia dissolveram-se totalmente.

Ele foi abandonando, uma a uma, as promessas de restauração do controle civil sobre os militares, enquanto a crise capitalista e os sucessivos planos de austeridade exerciam uma pressão cada vez maior sobre as condições de vida das massas da população.

Finalmente veio o levante militar da Semana Santa de 1987, no qual um número relativamente pequeno de oficiais fascistas sujaram seus rostos com graxa e ocuparam seus quartéis. Os militares rebeldes haviam avaliado corretamente a crise e a fraqueza do governo Alfonsín, que capitulou totalmente às suas exigências pelo fim dos julgamentos dos criminosos da antiga junta.

Alfonsín pôs fim pessoalmente à revolta – apoiado pelo peronismo, a burocracia sindical, os stalinistas e centristas – aceitando o preceito pseudolegal de "obediência devida", em sua essência uma reformulação da tentativa de defesa dos nazistas em Nuremberg, assumindo que "apenas seguiam ordens". Como consequência imediata, cerca de 800 casos, incluindo os de alguns dos mais notórios açougueiros da ditadura, para os quais ampla evidência e testemunhos haviam sido coletados, foram simplesmente largados pelos tribunais.

O episódio serviu para expor a verdadeira natureza do regime "democrático" da Argentina como uma fachada para a ditadura que ainda precisa ser derrubada e continua controlando as principais alavancas do poder estatal, aguardando nos bastidores pela próxima grande crise revolucionária.

Na esteira da "obediência devida", a Assembleia Permanente dos Direitos Humanos (APDH), da qual Alfonsín é formalmente um membro, rachou a nível nacional em função do compromisso de sua direção com a política do governo Alfonsín de impor o que equivale a uma anistia para os torturadores e assassinos militares.

Em Rosário, a capital da província de Santa Fé, o grupo dos Direitos Humanos rompeu com a direção nacional com base nessa questão. Seus representantes disseram ao Bulletin que a questão dos direitos humanos na Argentina não se limita a um acerto de contas com os crimes do passado, mas com os abusos diários que seguem sendo cometidos e com a ameaça evidente de outro banho de sangue no futuro.

Em particular, o grupo citou uma série de assassinatos policiais, torturas e abusos contra a juventude argentina. Em um dos casos mais notórios, em 5 de junho de 1988, a polícia assassinou dois jovens, Agustin Ramirez e Javier Sotelo, em um subúrbio operário de Buenos Aires. Agustin era membro da Comunidade Eclesial de Base, organizava os sem-teto e editava dois boletins em defesa da luta por "terra, justiça, liberdade e igualdade de direitos". Testemunhas relataram ter visto a polícia plantando balas nas mãos dos dois jovens assassinados.

"A realidade cotidiana da Argentina faz com que mais uma vez seja perigoso ser jovem neste país", disse o representante da APDH. "Os jovens se tornaram marginalizados pela crise e são vistos, na melhor das hipóteses, como criminosos potenciais, da mesma forma que, em um período anterior, todo jovem era visto como um 'subversivo'. Uma enorme porcentagem dos que foram mortos pela junta eram jovens".

Enquanto isso, em meio a uma cruzada histérica na imprensa capitalista contra um suposto aumento da criminalidade nas ruas, surgiram figuras políticas propondo a criação de esquadrões de vigilantes e unidades especiais "anticrime". Um dos que chegou a implementar um programa de vigilantes foi Juan Carlos Rousselot, o prefeito peronista de direita do subúrbio de Morón, na Grande Buenos Aires. Rousselot foi uma figura política estreitamente ligada a José Lopez Rega, o ministro peronista que dirigiu os esquadrões da morte do Triplo A no período que antecedeu o golpe militar.

"Assim que houver um golpe neste país, sabemos que o aparato terrorista estará funcionando na hora seguinte – ou melhor, uma hora antes", disse o porta-voz da APDH. "Esses grupos estão sendo estruturados agora sob um governo constitucional para que possam agir mais tarde. A polícia formou agora um corpo especial de combate ao crime. No final, porém, esses corpos especiais serão usados contra qualquer um que se oponha ao sistema. Dentro da estrutura da democracia há órgãos que se preparam para algo mais, uma vez que recebam o sinal verde. Eles estavam muito enfraquecidos, mas agora estão recebendo permissão para se restabelecerem.

"Também não é necessário ter um golpe militar para que isso aconteça novamente. Em 1975, grupos armados estavam operando totalmente fora de controle. Todos nós conhecemos pessoas que foram assassinadas naquela época".

Em 19 de agosto, o general Carlos Cerda, presidente da Comissão do Serviço de Justiça do Exército, fez um discurso declarando que a enorme rede de terror estatal, que fez cerca de 30.000 vítimas "desaparecidas" sob a junta, "não foi o produto de planos elaborados friamente", mas "o produto de circunstâncias excepcionais" criadas pela "guerra contra a subversão".

O general e os militares como um todo estão simplesmente reiterando a questão colocada pelo levante militar da Semana Santa de 1987, assim como por dois motins subsequentes. Eles exigem não somente anistia para os assassinos em série da junta, mas também que a "guerra suja" seja oficialmente reconhecida e até mesmo glorificada. Eles veem isso como absolutamente necessário para "restaurar a moral" e, mais fundamentalmente, para preparar os militares ao próximo banho de sangue contra a classe trabalhadora.

Muitos dos oficiais recentemente promovidos à categoria de general, com os votos favoráveis tanto dos radicais quanto dos peronistas, eram figuras conhecidas da rede clandestina de centros de tortura e execução da junta, com casos documentados e publicados contra eles. Da mesma forma, no Judiciário, na administração pública e nos ministérios do governo há veteranos da junta em abundância.

A amarga derrota de 1976 ainda impõe sua sombra sobre a atual crise na Argentina. Com o capitalismo argentino entrando num beco sem saída de produção em declínio, inflação em alta e dívida galopante, as lutas crescentes da classe trabalhadora colocaram a emergência de uma nova crise revolucionária. Portanto, é decisivo que a classe operária e sua vanguarda revolucionária consciente assimilem as lições estratégicas do último levante revolucionário, que teve início no final dos anos 1960 e terminou com a tomada do poder pela ditadura militar assassina.

Esse período foi marcado pelo movimento de massas da classe trabalhadora argentina e pela crise aguda da dominação burguesa. O movimento operário estava em confronto direto com a burocracia sindical peronista, com grandes setores da classe trabalhadora em busca de meios para exercer sua força revolucionária independente.

O stalinismo não aparecia como alternativa a esses trabalhadores, tendo se desmoralizado no período anterior com seu apoio ao imperialismo americano como uma alternativa "democrática" ao peronismo. Em seguida, defendeu a "teoria das duas etapas", primeiro a democracia e depois o socialismo, que se traduziu em apoio aberto aos governos burgueses, incluindo a junta.

A tarefa de prover uma direção revolucionária coubera ao movimento trotskista. Mas aquelas organizações que se diziam trotskistas mostraram-se incapazes de cumprir essa tarefa em decorrência do revisionismo e oportunismo que as marcou.

Apesar de hoje os nacionalistas pequeno-burgueses, stalinistas, centristas e revisionistas na Argentina falarem muito em "crise da esquerda", nenhuma dessas tendências se preocupa em examinar concretamente as raízes de tal crise na história recente da Argentina, nem em basear suas políticas nas lições dessa derrota histórica.

Pelo contrário, esses elementos, incluindo alguns que se autodenominam "trotskistas", estão perseguindo as mesmas políticas que levaram ao desarmamento da classe trabalhadora diante da contrarrevolução 12 anos atrás.

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