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Memórias do general Villas Bôas revelam escalada para ditadura no Brasil

Publicado originalmente em 1 de março de 2021

A publicação no início de fevereiro das memórias de Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro entre 2015 e 2019, lançou a política nacional ao caos e expôs o avanço das pressões por uma ditadura no sexto país mais populoso do mundo.

Uma crise política foi desencadeada pela principal revelação do livro, na qual Villas Bôas alegou que o alto comando do Exército tinha pleno conhecimento de um tweet que ele postou em 2018, na véspera da votação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula estava cumprindo uma pena de nove anos por corrupção e era o líder nas pesquisas para as eleições presidenciais de outubro, que o fascista Jair Bolsonaro viria a vencer mais tarde. Três membros do alto comando em 2018 são ministros atuais no governo Bolsonaro.

O livro é uma versão editada de 13 horas de entrevistas com Villas Bôas conduzidas pelo pesquisador militar Celso de Castro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em 2 de abril de 2018, o Villas Bôas tweetou: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" Ele concluiu ameaçadoramente: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade."

General Villas Bôas depõe perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro em 2017 (Crédito: Geraldo Magela/Agência Senado)

O membro mais antigo da corte, o ministro Celso de Mello, condenou o tweet, dizendo que ele parecia prenunciar "a retomada de todo inadmissível de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional", referindo-se à pressão exercida pela ditadura militar apoiada pelos EUA de 1964-1985 sobre a corte, que permaneceu formalmente aberta durante o sangrento regime. No que foi efetivamente uma votação sob a mira do fuzil, o pedido de habeas corpus de Lula foi derrotado por uma maioria de 6-5.

A revelação do livro provocou um frenesi político. Em 15 de fevereiro, o juiz do STF Luiz Fachin, que na época era o relator do pedido de habeas de Lula, chamou as revelações de "intoleráveis e inaceitáveis". Villas Bôas reagiu no Twitter um dia depois em tom de desprezo e ameaça, postando um link para uma reportagem sobre a declaração de Fachin e escrevendo: "três anos depois".

Em 19 de fevereiro, a escalada da crise levou ao fato sem precedentes da prisão do deputado federal Daniel Silveira, do Partido Social Liberal (PSL) - pelo qual Bolsonaro foi eleito - por defender o general, bem como o putsch de 6 de janeiro em Washington, em um vídeo no YouTube, e chamar o golpe de 1964, apoiado pelos EUA, que estabeleceu o regime militar de 21 anos, de "recado" aos membros do STF.

Silveira, um ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, filmou sua prisão ao vivo e disse com desprezo que já havia sido preso "90 vezes" por ofensas militares e sabia exatamente o que estava por vir. Atualmente detido em uma prisão militar, com outros soldados fascistóides considerados demasiado perigosos mesmo por uma força que assassina mais de 6.000 brasileiros por ano, ele foi recebido como herói por apoiadores. Silveira já era investigado pelo STF por colaborar com um grupo fascista conhecido como "300 do Brasil", que exigiu durante todo o ano de 2019 que o exército fechasse a Corte para deter as investigações de corrupção contra Bolsonaro.

Alguns dias depois, revelando ainda mais os perigos políticos reconhecidos pelas autoridades brasileiras, o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann escreveu uma carta aberta ao STF apelando para que este agisse contra os recentes decretos de desregulamentação da posse de armas por parte de Bolsonaro. Ele advertiu que o armamento de civis "evoca o terrível flagelo da guerra civil", citando a tentativa de golpe de Estado de 6 de janeiro em Washington como um exemplo do que poderia acontecer no Brasil. O próprio Bolsonaro já ameaçou não reconhecer os resultados eleitorais de 2022 se ele perder, alegando que a fraude eleitoral tornaria as eleições presidenciais no Brasil "piores do que as dos EUA".

O aviso de Jungmann é ainda mais significativo, vindo de uma figura de destaque no governo de direita do presidente Michel Temer. Temer chegou ao poder através do impeachment de Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT) com um mandato dos mercados financeiros para impor uma brutal austeridade aos trabalhadores brasileiros. Além disso, a prisão de Silveira foi ordenada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça de Temer.

Ele é considerado o principal representante na Corte do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a antiga oposição tradicional de direita ao PT, que entrou em uma coalizão com Temer. Moraes abriu a investigação sobre os fascistas do "300 do Brasil" em 2019 com base na reacionária Lei de Segurança Nacional da ditadura, que originalmente tinha como alvo ativistas de esquerda.

A prisão de Silveira foi um movimento perigoso. Tanto o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro, general Augusto Heleno, quanto o Procurador Geral Augusto Aras advertiram repetidamente que consideram que a Constituição permite a convocação do exército em casos de "invasão das competências de outro poder" - a exata descrição usada pelos apoiadores de Bolsonaro para a prisão de Silveira.

O movimento também arriscou a ativação da base de Bolsonaro entre o baixo oficialato e soldados das Polícias Militares controladas pelo Estado, que formam a base eleitoral de Silveira. Em março de 2020, uma greve da Polícia Militar do Ceará foi organizada por aliados de Bolsonaro e levou a revelações na imprensa de que os governadores temiam que a polícia se voltasse contra eles se eles se opusessem ao presidente. Bolsonaro propôs emendar a Constituição para criar um posto de general da Polícia Militar sob seu controle, ao que os governadores reagiram com uma mistura de nervosismo e medo, classificando a proposta como uma violação dos direitos dos estados.

A Câmara, que posteriormente manteve a prisão, teve que adiar sua votação sobre o tema para permitir negociações com o STF e o exército. Em uma indicação do conteúdo reacionário destas negociações, o Clube Militar do Rio de Janeiro, conhecido como o local onde o golpe de 1964 foi planejado, aproveitou politicamente o uso da legislação da ditadura por Moraes, publicando uma carta aberta em que perguntava se o mesmo critério aplicado contra Silveira seria usado contra a esquerda.

Por sua vez, o ex-ministro da Defesa Jungmann está liderando o retorno dos militares, e particularmente do exército, à vida política no Brasil, apenas 30 anos após terem sido forçados a recuar pelo poderoso movimento de greve que pôs fim à ditadura em 1985. Um antigo membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Jungmann patrocinou politicamente a intervenção federal de 2018 contra a criminalidade no Rio de Janeiro, que viu o exército virtualmente depor o governador e policiar as ruas. Ele é agora a face pública do recém-fundado Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN), que se descreve como o primeiro think tank dedicado às questões de defesa no país. Ele divide esta plataforma com o antigo chefe do GSI de Temer, o general Sérgio Etchegoyen, um aliado chave de Villas Bôas que Rousseff se recusou a punir quando criticou a Comissão Nacional da Verdade do Congresso, sobre os crimes da ditadura de 1964-1985.

As revelações nas memórias de Villas Bôas não são inteiramente novas, pois o próprio general havia declarado anteriormente sua posição como sendo a de todo o alto comando. Mas ao nomear como co-autores diretos da declaração ministros-chave no governo Bolsonaro, Villas Bôas conferiu peso adicional às preocupações de que o profundo envolvimento dos militares nesta administração profundamente impopular provocará uma oposição social descontrolada e os envolveria na profunda crise que afeta o regime burguês no Brasil.

Bolsonaro ocupou posições em todo o seu governo com membros ativos e reformados das forças armadas. Essas posições já são hoje mais de 6.000, mais do que em qualquer ponto anterior da história, incluindo a ditadura militar.

De modo mais significativo, os militares foram diretamente mobilizados em apoio à política assassina de imunidade de rebanho de Bolsonaro diante da pandemia da COVID-19, com um general da ativa à frente do Ministério da Saúde, e o exército sendo empregado para produzir hidroxicloroquina, que Bolsonaro promove incansavelmente como cura para a COVID-19. O Brasil tem o segundo maior número de mortes por COVID-19 no mundo, tendo acabado de ultrapassar a marca de um quarto de milhão.

Sob estas condições, a reação oficial à crise tem sido de minimizar o risco de ditadura com garantias vazias de que os "pesos e contrapesos da democracia" estão funcionando. Esta postura foi personificada pelo presidente do STF, Luiz Fux, que se colocou como correia de transmissão dos militares, declarando em 19 de fevereiro que o Ministro da Defesa Fernando Azevedo lhe havia dito que as alegações de Villas Bôas não eram verdadeiras e que não havia existido reunião para discutir os tweets.

Quanto ao alvo nominal da conspiração, o Partido dos Trabalhadores, sua postura em relação à crise é uma mistura de fraude, covardia e hipocrisia. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, deputada federal pelo estado do Paraná, reagiu com um pedido protocolar para que os atuais ministro da Defesa e comandante do Exército deponham ao Congresso.

O ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa de Lula e Dilma Rousseff, Celso Amorim, disse a um dos porta-vozes do partido, a revista Carta Capital, que as revelações significavam que os tweets tinham sido um golpe, e que ele havia ficado surpreso com eles.

Na realidade, o PT é o principal responsável pelos perigos atuais enfrentados pela classe trabalhadora brasileira, que não podem ser minimizados.

Foi o PT que nomeou Villas Bôas como comandante do exército. O PT acobertou suas ameaças quando elas foram feitas a fim de conter a reação pública e se lançar como a melhor alternativa para a classe dominante brasileira, como havia sido considerado durante a maior parte do século 21.

Em abril de 2018, Lula estava impedido de concorrer à presidência, mas a aceitação de seu habeas corpus pelo STF era vista como um potencial ponto de virada em recursos que poderiam reverter esta situação. Lula havia sido condenado por receber uma cobertura em frente à praia de um dos principais réus da Operação Lava Jato, a empresa de construção da OAS. Ao mesmo tempo em que Lula estava inquestionavelmente no centro do vasto escândalo de suborno e propinas que se centrava na gigante estatal de energia Petrobras, seus recursos se baseavam no fato de que ele nunca havia estabelecido a propriedade ou feito uso da cobertura.

Os lobbies empresariais se opunham à candidatura de Lula, receosos de que ele sofresse pressão para retardar a brutal austeridade implementada pelas facções de direita que haviam deposto o PT no impeachment fraudulento de Rousseff em 2016.

Essas facções exploraram os enormes esquemas de corrupção supervisionados pelo PT e descobertos pela Lava Jato, apesar de estarem envolvidas neles até o pescoço. Eles usaram os dois anos da administração Temer para impor um congelamento draconiano de 20 anos nos gastos com saúde, educação e investimentos públicos e realizar uma reforma trabalhista desregulamentando jornadas e provocando brutais reduções salariais.

Na época do tweet de Villas Bôas, o PT se contorceu para encobrir o ataque do exército às instituições civis, acusando absurdamente o grupo Globo de "manipular" o tweet a fim de vilipendiar Lula. O PT optou por não alertar a classe trabalhadora para os perigos das ameaças de Villas Bôas, ao invés disso emitindo uma nota em que se vangloriava traiçoeiramente de ter gasto somas recorde com os militares.

Villas Bôas havia sido nomeado comandante do exército por Dilma em 2015 sendo o mais jovem dos candidatos, em uma ruptura com a tradição. Ele havia sido escolhido com o argumento de que era supostamente um legalista e se opunha ao questionamento expressado por outros comandantes do trabalho da Comissão da Verdade do Congresso, criada em 2012.

Ele havia defendido o programa de rearmamento de Lula em 2015 perante o Congresso como “um marco na história da defesa" e recebido uma ovação de pé da bancada do PT no Senado do PT em 2017 quando negou publicamente que o exército considerasse intervir na crise do governo Temer. Apenas um mês antes de sua ameaça de golpe na véspera da votação do habeas corpus, o ex-ministro da Defesa de Rousseff, Jaques Wagner, elogiou publicamente Villas Bôas, declarando: "Villas Bôas é um militar clássico, um brasileiro nacionalista e respeitador das leis. Onde chefiou sempre se transformou num líder porque é afável, corajoso e motivador. E é um democrata, um cara olhando para a frente" - com a implicação de que ele não era um defensor do golpe de 1964 e que nunca apoiaria uma intervenção extra-constitucional dos militares.

Já em maio de 2019, quando Villas Bôas foi atacado pelo ideólogo fascista brasileiro Olavo de Carvalho, um aliado chave de Bolsonaro e ponte entre ele e a extrema direita norte-americana, Jaques Wagner veio em sua defesa, chamando-o de "meu Comandante do Exército".

A analogia histórica mais próxima dos acontecimentos que se desenvolveram no Brasil é a nomeação de Augusto Pinochet como comandante-chefe do Exército chileno por Salvador Allende em 1973, dando-lhe os meios para derrubar o próprio Allende.

A classe trabalhadora deve tirar as lições das últimas revelações no Brasil e lutar para romper a camisa de força do Partido dos Trabalhadores, cujo principal objetivo é evitar que a pressão rumo à ditadura seja combatida por um movimento de massas contra a raiz da crise, o sistema capitalista.

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