Publicado originalmente em 12 de julho de 2021
Com uma investigação do Senado implicando uma série de oficiais militares em negociações corruptas multimilionárias de vacinas contra a COVID, o alto comando militar brasileiro fez uma ameaça sombria na semana passada. Em declaração conjunta, os generais declararam que 'não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro'.
Animado por estas ameaças dos chefes militares, o presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro disse a seus partidários que o Brasil 'corre o risco de não ter eleições' em 2022, quando termina seu mandato. Ele considera-se no direito de cancelar as eleições, disse ele, se suas acusações desacreditadas de fraude nas urnas eletrônicas do país não forem tratadas através da adoção de sua proposta de “voto impresso' complementar ao voto eletrônico.
Tais ameaças tanto de Bolsonaro quanto do comando militar não têm precedentes no Brasil desde 1985, quando os militares, diante de um movimento de greves massivas da classe trabalhadora, deixaram o poder, pondo fim a 21 anos de uma ditadura apoiada pelos EUA. O gatilho imediato destas ameaças são as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado brasileiro sobre a política de Bolsonaro para a pandemia da COVID-19, que já matou mais de meio milhão de brasileiros. Uma audiência tumultuada na última quarta-feira terminou com a prisão do ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias.
A prisão de Dias por perjúrio foi ordenada pelo presidente da CPI, o senador Omar Aziz. Ele acusou o ex-funcionário do Ministério da Saúde de mentir quando negou ter realizado uma reunião pré-agendada em um restaurante na capital Brasília com Luiz Paulo Dominghetti, o representante de uma empresa de suprimentos médicos sediada nos EUA. Dominghetti o denunciou por exigir um dólar em propina por cada dose da vacina da AstraZeneca que estava sendo negociada pelo governo. Dias alegou ter tido um encontro casual com Dominghetti, mas a CPI estava de posse de mensagens do telefone de Dominghetti que mostravam o agendamento da reunião. No final da sessão de quarta-feira, Aziz declarou que não permitiria que a CPI fosse ridicularizada e ordenou à polícia do Senado que levasse Dias para a cadeia. Mais tarde, ele foi libertado sob fiança.
Em seu testemunho, Dias negou qualquer delito, transferindo a culpa para o ex-secretário executivo do Ministério da Saúde, Coronel Élcio Franco, que agora trabalha como assessor do Ministro da Casa Civil de Bolsonaro, o general Luiz Eduardo Ramos. Durante o depoimento, Aziz, informado de que Dias era um sargento aposentado da Força Aérea, declarou: 'Olha, eu vou dizer uma coisa: as Forças Armadas, os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia. Porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do Governo'.
Aziz, em seguida, citou por nome alguns dos envolvidos no escândalo, incluindo o general Eduardo Pazuello, que foi ministro da saúde durante a maior parte da pandemia, depois que dois especialistas médicos civis renunciaram em protesto contra a oposição inflexível de Bolsonaro ao distanciamento social e ao uso de máscaras, e sua promoção de curas charlatanescas como a hidroxicloroquina.
Aziz usou uma expressão comum no Brasil - 'o lado podre' - que é mais comumente aplicada às forças policiais militares controladas pelos estados, e se refere à tolerância dentro de seus altos comandos a elementos criminosos envolvidos em execuções extrajudiciais e crime organizado. As Forças Armadas são cada vez mais vistas como um pilar do governo Bolsonaro, que está em crise, e dessa forma como compartilhando a responsabilidade política pela morte em massa e pela atual catástrofe social no Brasil.
Longe de criticar as Forças Armadas, no entanto, Aziz pretendia que suas observações fossem um alerta contra a ameaça à estabilidade capitalista brasileira colocada pelo envolvimento aberto dos militares nos crimes do odiado governo Bolsonaro. Na mesma fala, ele contrastou os escândalos atuais com o período da ditadura, dizendo que 'Uma coisa de que a gente não os acusava era de corrupção' - uma mentira em si mesma. Para enfatizar sua 'lealdade' aos assassinos e torturadores militares, Aziz concluiu seus comentários com um elogio aos ditadores Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo, que ele afirmou 'terem morrido pobres' por serem 'honestos'.
No entanto, as Forças Armadas consideraram intoleráveis até mesmo as observações direitistas de Aziz. Na última quarta-feira, o ministro da Defesa e os chefes dos três braços das Forças Armadas divulgaram uma nota conjunta repudiando 'as declarações do presidente da CPI, Omar Aziz' como atingindo “as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo irresponsável', concluiu com a frase sobre as Forças Armadas serem as instituições que sustentam 'a democracia e a liberdade' do povo brasileiro. Em outras palavras, 'democracia' é algo que só as Forças Armadas têm o direito de dar, e de tirar.
No dia seguinte, a ameaça do alto comando foi reafirmada pelo comandante da Força Aérea, o Tenente-Brigadeiro do Ar Carlos Almeida Baptista Jr., que disse que a nota era um 'alerta às instituições' do Estado brasileiro. Seria a 'única vez' que eles advertiriam Aziz, disse ele, acrescentando que os militares tinham os 'mecanismos legais' para fazer cumprir suas advertências. A referência aos 'mecanismos legais' ecoa as afirmações desacreditadas feitas por Bolsonaro e outras figuras de direita que o artigo 142 da Constituição Brasileira permitiria ao presidente ordenar os militares contra o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal no caso de eles 'invadirem a competência' do presidente.
O comandante Baptista nomeou especificamente com alguém “vitimizado” pelo Congresso o ex-ministro da Saúde, general Pazuello, que nomeou todas as principais figuras do escândalo. Ele havia sido demitido sob pressão da base parlamentar de Bolsonaro em março, no auge de uma segunda onda da pandemia de COVID que estava fazendo 4.000 vítimas fatais por dia. Na sequência de sua demissão, Pazuello, um general da ativa, violou o código militar ao participar de um ato político em apoio a Bolsonaro. Generais dissidentes advertiram que sua impunidade impune ameaçava 'gerar anarquia' nos quarteis. Pazuello é agora o Secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro.
As crescentes ameaças dos militares vêm em paralelo à renovação das afirmações de Bolsonaro de que as eleições brasileiras são essencialmente fraudulentas e que as eleições de 2018 foram manipuladas para impedi-lo de vencer já no primeiro turno. Bolsonaro alega agora que isto justificaria a suspensão das eleições de 2022, se não forem feitas mudanças no sistema.
Bolsonaro se vê cada vez mais encurralado pela espiral de crise econômica e social, com setores crescentes da classe dominante considerando-o um risco para o governo burguês. Suas acusações de fraude eleitoral sistêmica têm sido repudiadas por todas as forças políticas relevantes, incluindo sua própria base congressual. Diversas figuras militares de alto nível dissidentes advertiram que ele tentará um golpe de Estado e deve ser contido. Em última análise, o Senador Aziz estava falando por tais setores.
No entanto, as ameaças dos militares expõem grau avançado dos preparativos para o estabelecimento de uma ditadura, seja qual for o destino político de Bolsonaro. A força motriz por trás desses preparativos é a incompatibilidade objetiva, no Brasil e internacionalmente, entre o crescimento sem precedentes da desigualdade social e as formas democráticas de governo.
A política de imunidade de rebanho de Bolsonaro diante da pandemia da COVID-19, com seu horrível número de 540.000 mortes e o sofrimento de milhões com a doença, tem sido a expressão mais nua da incansável busca por lucros da classe dominante, a qualquer custo. Ao assumirem o Ministério da Saúde através do General Pazuello, os militares se tornaram os executores diretos desta política assassina.
O recente ressurgimento de tendências autoritárias foi preparado politicamente pelo período de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o suposto centro de oposição política a Bolsonaro.
O PT apoiou a anistia geral concedida aos militares em troca do retorno gradual ao governo civil. Nas quatro décadas seguintes, nenhum dos crimes da ditadura, incluindo o assassinato, tortura e desaparecimento de trabalhadores, estudantes e opositores de esquerda, teve seus responsáveis punidos. Quando finalmente chegou ao poder em 2002, o PT promoveu um programa maciço de rearmamento sob o pretexto de desenvolvimento industrial e tecnológico, e fez o batismo de sangue do exército brasileiro em intervenções estrangeiras no Haiti e em outros países sob o comando dos mesmos generais que agora apoiam Bolsonaro.
Quando teve início a pandemia, o PT exigiu que Bolsonaro renunciasse em favor de seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão, como a forma 'menos custosa' de resolver a crise. Quando Bolsonaro substituiu todo o comando militar no final de março a fim de alinhá-lo com seus planos, todos os representantes da ordem burguesa, incluindo o PT, deram as boas-vindas aos novos comandantes, que agora ameaçam o Congresso, como os últimos guardiões da democracia brasileira.
Estas forças políticas, que ajudaram a criar as condições nas quais os militares brasileiros agora reivindicam impunidade e o direito de derrubar o governo eleito, responderam à última crise com mais mentiras e engodos. O PT acusou o governo Bolsonaro de promover uma 'falta de disciplina e insubordinação' entre os militares. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, convocou uma coletiva de imprensa para condenar as ameaças de Bolsonaro contra as eleições como 'antipatrióticas'.
Os crescentes setores da classe dominante brasileira que criticam abertamente Bolsonaro e estão jogando com um possível impeachment acreditam que as condições para uma nova ditadura ainda não estão prontas. Suas tentativas de subordinar o movimento crescente da classe trabalhadora ao Estado capitalista, inclusive através de um possível retorno ao poder do PT nas eleições de 2022, têm como objetivo final a preparação de tais condições.