Depois do afastamento de Dilma Rousseff (PT) no mês passado pelo processo de impeachment e a imposição de uma série de medidas contra a classe trabalhadora pelo governo de Michel Temer (PMDB), os grupos da pseudoesquerda do Brasil estão em profunda crise.
Historicamente, todos esses grupos orbitavam o PT, um partido burguês, a CUT, a central sindical controlada pelo PT, e os movimentos sociais ligados aos governos petistas. Agora, no entanto, os grupos da pseudoesquerda brasileira estão divididos entre aqueles que defendem o governo deposto e os que estão se adaptando aos movimentos de direita, a verdadeira base social do processo que levou ao afastamento de Dilma e provavelmente levará ao seu impeachment.
Temer, o ex-vice-presidente de Dilma, formou o governo mais reacionário desde o fim da ditadura militar no Brasil apoiada pelos EUA em 1985. Assombrado pelo espectro da Operação Lava Jato, que investiga os escândalos de propinas em contratos com a Petrobras, o novo governo já perdeu dois importantes ministros.
Romero Jucá (PMDB) deixou o seu posto como ministro do Planejamento Econômico depois de ser gravado discutindo a possibilidade de que a saída de Dilma pudesse diminuir o apoio público à investigação e salvar os principais políticos acusados de corrupção. Dias depois, Fabiano Silveira, ministro da Transparência e Controle, deixou o cargo depois de ter sido gravado aconselhando o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), sobre como inviabilizar as investigações contra ele.
Ainda mais importante, o governo, que assumiu o poder com o compromisso de colocar sobre a classe trabalhadora todo o peso da crise econômica brasileira, tem se envolvido em uma “gafe” após a outra, com ministros opinando abertamente sobre a extensão e a brutalidade dos cortes orçamentários, a redução dos direitos sociais e programas de combate à pobreza, para depois serem criticados publicamente por Temer, que está profundamente preocupado em provocar uma explosão social.
Os trabalhadores e os jovens estão mostrando os primeiros sinais de resistência, com greves de professores da educação básica e superior e funcionários de universidades contra cortes salariais e orçamentários, que vem acompanhadas de ocupações em escolas e universidades em cinco estados brasileiros.
Enquanto isso, as principais manifestações contra o governo Temer viram uma série de tendências da pseudoesquerda aproximando-se da burocracia sindical através da Frente Povo Sem Medo.
As tendências da pequena-burguesia brasileira estão passando por uma profunda crise de descrédito. Por um lado, há as frações do morenismo brasileiro, especialmente o PSTU e tendências minoritárias no PSOL, que ainda estão esperando para colher os frutos de seu absurdo apoio ao impeachment de Dilma pela direita brasileira. Sua perspectiva, que pode ser expressa na palavra de ordem “depois de Temer, nós”, está sendo implacavelmente exposta pelos acontecimentos. A adaptação ao movimento de direita a favor o impeachment pode ser comparada à sua orientação internacional, que inclui apoio às operações de mudança de regime do imperialismo dos EUA, como as que aconteceram na Líbia, na Ucrânia e está acontecendo na Síria.
Outras tendências da pseudoesquerda, como o lambetista PCO e a maioria pablista no PSOL, juntaram-se em manifestações de rua que são em grande parte orientadas para o retorno do governo burguês e corrupto do PT, que buscou permanecer no poder conquistando o apoio da direita e iniciando a implementação das políticas de austeridade que Temer está agora intensificando.
Todas essas tendências estão unidas em sua absoluta incapacidade de fazer uma análise de classe dos acontecimentos políticos que levaram ao afastamento de Dilma por serem hostis a luta pela independência política da classe trabalhadora.
Não é por acaso, portanto, que todas essas tendências também estejam unidas na promoção de uma figura anti-marxista como Guilherme Boulos, que se tornou uma presença marcada em todos os comícios contra o governo Temer. Para Boulos, que participa dos protestos principalmente na cidade de São Paulo, o país está retrocedendo após o progresso dos anos do PT, e “retornou a seus antigos senhores”, uma referência à nomeação de Temer de um gabinete ministerial formado por homens brancos e milionários.
As organizações pequeno-burguesas que promovem Boulos não se incomodam com o fato de sua pretensão de se opor ao PT pela esquerda ter sido impulsionada por sua presença em manifestações patrocinadas pelo governo antes do início do processo de impeachment, muitas vezes ao lado da própria Dilma Rousseff. Longe de se opor ao PT, ele recebeu um papel ainda mais importante ao passar a defendê-lo desde o afastamento de Dilma, tornando-se o principal porta-voz da “frente ampla”.
Isso está acontecendo depois de dois anos de uma frenética promoção de Boulos, quando o governo do PT enfrentava uma crise cada vez mais profunda, particularmente no período anterior à abertura do processo de impeachment no Congresso Nacional. Fizeram parte dessa promoção uma coluna semanal de dois anos no maior jornal do país, a Folha de S. Paulo, um livro lançado pela editora Boitempo, que publica no Brasil autores anti-marxistas como Slavoj Zizek, convites para inúmeros seminários junto com professores universitários petistas, pablistas e morenistas, e incontáveis entrevistas bajuladoras a órgãos da imprensa nacionalista-burguês e stalinista.
O que explica uma recepção tão favorável dos mais altos círculos do poder, da academia, do jornalismo e da política de “esquerda”? Essencialmente, é a elaboração de uma plataforma completamente reacionária, ainda que vagamente esquerdista, para a desmoralização da classe trabalhadora e a negação de seu papel revolucionário.
Boulos, de 34 anos, é um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), responsável por inúmeras ocupações de prédios abandonados no estado de São Paulo. No entanto, ele foi formado na prestigiosa Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, antes de se especializar em psicanálise lacaniana.
Nos últimos dois anos, o MTST realizou ocupações que atraíram a simpatia de grandes setores da população que sofrem com a especulação imobiliária e os preços cada vez mais altos dos aluguéis em todas as grandes cidades. O próprio Boulos tornou-se o principal defensor das táticas e da perspectiva do movimento “Occupy Wall Street” no Brasil.
Ele começou a escrever sua coluna semanal na Folha de S. Paulo há quase dois anos depois de uma ocupação do MTST em Itaquera, um bairro de classe trabalhadora que estava rapidamente se gentrificando e que abrigou um dos estádios da Copa do Mundo de Futebol de 2014, o que ameaçava atrapalhar os jogos.
Desde então, Boulos usou sua notoriedade não apenas para promover o “socialismo do século XXI” do falecido presidente venezuelano Hugo Chávez, mas também para acusar a classe trabalhadora de ser “alienada” pelo crescimento do consumo sob os governos do PT. Ele descartou as camadas substanciais de classe média de São Paulo considerando-as simplesmente “fascistas”.
Boulos rejeita a necessidade de um novo partido da classe trabalhadora, dizendo que as mudanças na sociedade brasileira só serão alcançadas por meio de organizações como o seu próprio MTST, já que os partidos só podem promover práticas alienantes “do alto”.
Sua perspectiva é que a classe trabalhadora brasileira e as classes médias empobrecidas são as responsáveis pela sua situação em geral, e em particular pelo movimento de direita que destituiu Dilma Rousseff.
Essa perspectiva lhe dá muita companhia política. Atacar a classe trabalhadora e especialmente a classe média tem sido, na verdade, o lema dos ideólogos do PT, especialmente no estado de São Paulo, a região mais industrializada do país. Embora tenha sido o berço do PT e dos sindicatos industriais, o PT tem sido incapaz de desafiar 30 anos de governos chauvinistas locais da principal forças de oposição de direita no país, agora organizada no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
André Singer, professor da Universidade de São Paulo, ex-porta voz do governo Lula e um dos principais apologistas de Boulos, expressou claramente essa perspectiva antes da votação pelo impeachment de Dilma no Congresso Nacional. Em sua coluna na Folha de 9 de abril, ele escreve: “Seja qual for o resultado [da votação do impeachment], muitas lições vão emergir das sessões em curso no Congresso Nacional. Uma das poucas vantagens das crises é trazer a verdade à tona. O Brasil poderá se observar em detalhe no espelho que o legislativo oferece ao país”.
Como o próprio Singer poderia ter previsto, a votação se transformou em um carnaval de horrores, que incluiu a defesa de torturadores da ditadura militar, um espetáculo que, segundo seu raciocínio, prova que o PT foi deposto por ser “bom demais” para o Brasil.
Boulos, por sua vez, escreveu em sua coluna de 11 de setembro de 2014, intitulada “Existe o fascismo em São Paulo”, que “a dinâmica econômica estabeleceu uma mentalidade higienista na elite e nas camadas médias” de São Paulo.
Depois, em julho de 2015, em um seminário sobre os anos do PT no poder promovido pela revista Brasileiros, Boulos declarou que o “modelo de melhoria da vida pelo consumo forma mentes consumidoras, não mentes de pessoas que reivindicam direitos sociais”, e que isso favorecia um ambiente “meritocrático e despolitizado”.
Em outras palavras, as camadas da sociedade antes empobrecidas guinaram à direita porque os governos do PT realizaram programas que aumentaram a renda da população possibilitados pelo boom das commodities e dos mercados emergentes que agora chegaram ao fim, que permitiu aumentos mínimos no consumo. Como resultado, Boulos argumenta, os trabalhadores foram comprados e são indiferentes às questões de direitos sociais.
Que essa análise seja feita de quem nasceu e vive em São Paulo, o epicentro do capitalismo brasileiro, uma cidade de 11 milhões de habitantes, com 15% da população vivendo em favelas e com os níveis mais extremos de desigualdade social no planeta, é ainda mais impressionante.
Essa perspectiva, que essencialmente responsabiliza a classe trabalhadora por sua própria opressão, torna-se uma justificativa geral para a ordem social existente e a base política para as formas mais descaradas de oportunismo.
Ninguém pode se surpreender que, entre as “novas formas de organização”, Boulos elogie os “conselhos populares” promovidos pelo estado na Venezuela, através dos quais o governo burguês do país procura legitimar o desarmamento político da classe trabalhadora e impor as políticas que trouxeram o atual desastre econômico ao país. Como ele disse em um encontro da pseudoesquerda em junho de 2015 com o ex-presidente Lula, o prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) e David Harvey: “Algumas pessoas têm alucinações de que o PT está formando um governo bolivariano. Eu queria que assim fosse!”
O significado completo dessas concepções fica claro em seu comentário de que “não é possível organizar o povo sem obter algo do governo”. Ou, como ele disse, já em 2011, em um seminário do grupo Liberdade, Socialismo e Revolução, tendência interna do PSOL e a seção brasileira do Comitê para uma Internacional dos Trabalhadores: “Você pode ter 20 seminários sobre o marxismo com os sem-teto, mas eles não se organizarão se você não puder oferecer-lhes um subsídio no aluguel.”
Diante de tal profundo e arrogante desprezo pela classe trabalhadora e pelos oprimidos, de tal abandono de uma análise de classe, de tal dependência do Estado capitalista, qualquer afirmação de que Guilherme Boulos é um socialista, muito menos um marxista, só pode ser feita a partir de má fé política.
O recurso a esse tipo de charlatanismo político é um sintoma do desespero da pseudoesquerda diante do colapso de seu principal projeto de mais de 30 anos, o Partido dos Trabalhadores. Durante um longo período, o PT foi transformado no partido preferido para governar a favor dos interesses da burguesia brasileira, antecipando em muitos aspectos tendências políticas contemporâneas nos países industrializados, como o Podemos na Espanha, o Syriza na Grécia e o Novo Partido Anticapitalista na França.
Praticamente todas as organizações que hoje fingem se opor ao PT pela esquerda não só atuarem dentro do partido, mas também desempenharam um papel ativo tanto durante sua formação quanto em sua transformação em um partido de governo burguês. Geralmente expulsas pelo PT ao longo dos anos por considerar que o partido havia guinado de maneira abrupta à direita, essas tendências nunca quiseram criticar a organização ou extrair lições de sua história. Ao invés disso, eles se comprometeram a repetir suas traições repetidas vezes com a formação de frentes e “partidos amplos” como o atual PSOL e a frente popular Povo Sem Medo. A virada unânime a Boulos reflete o entendimento de que o projeto político dessas organizações possa não sobreviver diante de suas diferenças táticas.
A presença de Guilherme Boulos hoje nos supostos círculos de “esquerda” no Brasil tem sua origem em sua posição de classe. Trata-se de uma camada privilegiada de acadêmicos e funcionários incorporados ao estado pelos governos do PT profundamente influenciados pelo pensamento idealista subjetivo francês e seus representantes pós-modernistas em particular, especialmente aqueles tirados de sua alma mater, a Universidade de São Paulo.
Mas esse pensamento também lembra o de seus colegas americanos contemporâneos, influenciados por figuras como Herbert Marcuse, que há muito tempo rejeitou a classe trabalhadora americana, considerando-a uma força contrarrevolucionária por causa do padrão de vida relativamente alto obtido por meio de lutas de massas conduzidas pelas gerações anteriores.
Os comentários de Boulos sobre o “fascismo das classes médias” e a “alienação” dos trabalhadores lembram os dos auto-satisfeitos liberais dos Estados Unidos que culpam a “classe trabalhadora branca” – muitas vezes chamada de “classe média” – pela ascensão de Donald Trump.
Não é à toa que toda uma camada de intelectuais brasileiros contemporâneos, historicamente hostis à influência do pensamento americano, acabou incorporando a parte do pensamento americano que é mais útil para negar e ocultar as lutas revolucionárias da classe trabalhadora.
A classe trabalhadora brasileira pode romper com o PT, a burocracia sindical e seus colaboradores da pseudoesquerda apenas através de uma crítica implacável a essas tendências. É essa luta que preparará a mobilização política independente da classe trabalhadora e a construção de uma nova direação revolucionária socialista e internacionalista no Brasil.