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Incêndio destrói Cinemateca Brasileira, maior acervo audiovisual da América do Sul: o resultado da política do governo de Bolsonaro

No dia 29 de julho, um incêndio atingiu parte da Cinemateca Brasileira em São Paulo, Brasil, uma das mais importantes instituições cinematográficas do mundo, que abriga o maior acervo audiovisual da América do Sul. A Cinemateca abriga cerca de 250 mil rolos de filmes que datam de 1910, além de mais de um milhão de documentos e itens relacionados ao cinema, incluindo fotos, roteiros, cartazes e livros.

Cinemateca Brasileira [Crédito: Cinemateca Brasileira]

Em 2010-11, uma pesquisa realizada pela Federação Internacional de Arquivos de Filmes (Fiaf) classificou a Cinemateca como a terceira no mundo por sua capacidade de processamento fotoquímico. É também um importante centro de formação de técnicos e pesquisadores de instituições parceiras.

O incêndio, cujas consequências ainda estão sendo calculadas, é o resultado das políticas do governo ultradireitista de Jair Bolsonaro. No entanto, vários analistas apontam que a piora do estado da Cinemateca começou em gestões anteriores, incluindo o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), de Dilma Rousseff.

Logo após Bolsonaro assumir o poder em janeiro de 2019, seu governo de ultradireita dissolveu os ministérios da Cultura, Esportes e Desenvolvimento Social, fundindo-os em um único departamento denominado Ministério da Cidadania e congelou os fundos da Agência Nacional de Cinema do Brasil (ANCINE). Fernanda Brenner, da Pivô, associação cultural sem fins lucrativos localizada em São Paulo, observou na época que Bolsonaro “transformou o Ministério [da Cultura] em uma pequena Secretaria”, segundo a Artnet News. “Entre tantas medidas desastrosas em tão pouco tempo, isso quase passou despercebido.”

Em dezembro de 2019, o governo Bolsonaro reprovou a renovação de contrato com a Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) para a operação e gestão da Cinemateca. A insatisfação do governo com a percepção de conteúdo esquerdista de certos programas televisionados no canal de educação da ACERP aparentemente influenciou a decisão.

A Acerp solicitou um contrato emergencial para manter a equipe da Cinemateca para garantir a segurança dos rolos de nitrato inflamáveis armazenados em salas com temperatura controlada, bem como de outros materiais audiovisuais que requerem inspeção frequente. Apesar da perda de seu contrato e financiamento, a Acerp continuou a pagar contas de serviços públicos, mas o pessoal foi reduzido. Com o passar dos meses, os que permaneceram trabalharam como voluntários não remunerados.

Em julho de 2020, os trabalhadores da Cinemateca escreveram uma carta aberta em que protestavam contra três meses de atraso no pagamento de salários e benefícios. A carta explicava que “Além dos salários e das contas de água e luz atrasadas há 3 meses, a Cinemateca Brasileira começou recentemente a perder seus funcionários terceirizados, igualmente fundamentais para a manutenção do acervo e do espaço físico. As equipes de manutenção elétrica e climatização não mais dão suporte à Cinemateca Brasileira desde o dia 10/06. (...) Aumentam-se, assim, os riscos de uma grande tragédia(...)”

Manifestação em frente à Cinemateca Brasileira em 2020 [Crédito: página do Facebook Trabalhadores da Cinemateca Brasileira]

Em agosto de 2020, segundo a revista New York, “o novo secretário de Cultura, ator Mário Frias, escoltado pela Polícia Federal, expulsou todos os demais funcionários da Cinemateca, cujos salários não haviam sido pagos”.

Com todo o quadro de funcionários despedido, formou-se um grupo de “Trabalhadores da Cinemateca Brasileira” para lutar por salários e empregos, e pela preservação do acervo da cinemateca. Os trabalhadores denunciam regularmente a situação e alertam para as consequências.

Como observou o Irish Times, os “ex-funcionários fizeram uma campanha desesperada para salvar a instituição a que serviam... Em abril, eles publicaram um manifesto exigindo que o governo tomasse medidas alertando que 'o risco de incêndio é real'”. Outros analistas também alertaram para o desastre. Em maio de 2021, uma colunista da Frieze questionou em uma manchete: “Com incêndios consumindo o patrimônio cultural brasileiro, a Cinemateca Brasileira seria a próxima?”

Em setembro de 2018, um incêndio devastador destruiu o Museu Nacional do Brasil no Rio de Janeiro, destruindo o palácio do século XIX que abrigava a instituição e a maioria dos 20 milhões de itens em seu acervo. Semelhante à Cinemateca, o Museu Nacional carecia de recursos em sucessivos governos, o que possibilitou a tragédia.

Em novembro de 2020, numa cerimônia de premiação, o conhecido cineasta brasileiro Walter Salles (Estação Central, Diários de Motocicleta, Na Estrada) falou sobre a importância da Cinemateca para seu próprio desenvolvimento como cineasta e acrescentou que “um prêmio dedicado à preservação da memória num país em que essa mesma memória vem sendo atacada de forma tão violenta e obscurantista é e deve ser entendida como um incentivo à resistência”.

No dia anterior, Salles explicou em matéria publicada na Folha de S. Paulo que “Em sua história, a Cinemateca Brasileira nunca esteve tão abandonada quanto no atual governo, marcado por um visível esforço para apagar nossa memória coletiva”.

Salles também incluiu uma mensagem do cineasta Martin Scorsese, presidente da Film Foundation, instituição dedicada ao restauro de filmes do mundo inteiro. “Escrevo para manifestar minha preocupação”, diz Scorsese, “com a Cinemateca Brasileira. Preocupação não é a palavra adequada. Trata-se de angústia e absoluta incredulidade. A possibilidade de que a maior coleção audiovisual da América Latina tenha sua verba suspensa em meio a uma pandemia é totalmente inconcebível”, escreveu.

“As artes”, continuou o diretor, “não são um luxo —são uma necessidade, como bem o demonstra seu papel incontestável na história da humanidade. E a preservação das artes, especialmente de uma tão frágil quanto o cinema, é um trabalho difícil, mas essencial. Esta não é minha opinião. É um fato. Espero sinceramente que as autoridades federais do Brasil abandonem qualquer ideia de retirada do financiamento e façam o que precisa ser feito para proteger o acervo e a dedicada equipe da Cinemateca.”

Em seu artigo, Salles também observou que a crise da Cinemateca “não era nova” e que havia sido agravada tanto pelo governo petista de Rousseff quanto pelo governo de Michel Temer que a substituiu.

Da mesma forma, o crítico de cinema de São Paulo, Filipe Furtado, disse ao site do BFI (British Film Institute) que a instituição enfrentava dificuldades há algum tempo, “graças a cortes no orçamento de governos anteriores”. Furtado disse ao BFI que “os problemas da Cinemateca começaram... antes de Bolsonaro chegar ao poder: em 2013, o Ministério da Cultura da [ex-presidente] Dilma Rousseff encontrou problemas com a ONG que a administrava há muito tempo e decidiu cortar seus recursos. A Cinemateca vem operando abaixo do orçamento e lutando para se manter viva desde então.”

A combinação dos ataques do governo com a pandemia tornou as condições extremamente difíceis. Mas muitos trabalhadores resistiram. Uma pessoa que trabalha no acervo disse ao BFI: “Durante o lockdown, mesmo sem receber salário, alguns técnicos que lidam com acervo e manutenção do prédio continuaram a inspecionar os acervos, num sistema de revezamento. Estão acontecendo movimentos de solidariedade e a organização de um fundo de sobrevivência mínima para os mais necessitados que trabalham ali... Muitos têm protestado, com firmeza mas pacificamente, perante a instituição – funcionários, cineastas, pesquisadores, cinéfilos, vereadores e moradores da vizinhança.

“É quase inacreditável”, continuou, “que tudo esteja em risco iminente de perda... que não tenhamos convencido os governos de algo que deveria ser bom senso: que qualquer fechamento de instituição que abrigue memórias – para que um futuro melhor possa existir – é uma sentença de morte ao que está guardado nessas instituições. Que as futuras gerações possam contemplar, por meio de filmes, o modo de vida de seus ancestrais, suas boas ações e seus vilões; as gravações de filmes em preto-e-branco de uma família do início do século XX desfrutando do almoço de domingo e também as insanidades das guerras registradas nos cinejornais; as belas paisagens de seu antigo

país e as narrativas ficcionais que alimentam nosso imaginário desde o advento do cinema.”

Um dia após o recente incêndio, os trabalhadores da Cinemateca Brasileira divulgaram um manifesto denunciando o incêndio como “crime”, detalhando os prejuízos causados e alertando sobre os danos ainda impossíveis de calcular justamente pela falta de uma equipe técnica especializada.

Os trabalhadores explicaram que “O incêndio que acometeu o edifício da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina na noite de 29 de julho de 2021 foi um crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro. Essas instalações são parte fundamental e complementar em relação ao espaço da Vila Clementino, onde se encontra armazenada a maior parte do acervo da Cinemateca Brasileira. Recentemente, em fevereiro de 2020, uma enchente já havia afetado grande parte do acervo documental e audiovisual lá depositado.”

Há mais de um ano, continuaram os trabalhadores, “denunciamos publicamente a possibilidade de incêndio nas dependências da Cinemateca pela ausência de quaisquer trabalhadores de documentação, preservação e difusão.” Os trabalhadores alertaram para a possibilidade “de o sinistro ocorrer nos acervos de nitrato da Vila Clementino, pois trata-se de material inflamável que pode entrar em autocombustão sem revisão periódica... Seguramente, muitas perdas poderiam ter sido evitadas se os trabalhadores estivessem contratados e participando do dia a dia da instituição.” Os trabalhadores da Cinemateca também declararam que estavam “em luto, pela perda de mais de meio milhão de brasileiros [na pandemia], e agora pela perda de parte da nossa história”.

Os trabalhadores estão convocando uma frente “em defesa do cinema brasileiro” e manifestações nas principais capitais. O chamado levanta as seguintes demandas:

Evitemos um novo incêndio. Chega de tragédias anunciadas. Negligência é crime.Não se preservam acervos sem trabalhadores!Uma instituição de memória não sobrevive sem o seu corpo técnico.Pela contratação imediata de técnicos em preservação audiovisual e salvaguarda do que restou do acervo da Cinemateca Brasileira.

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