Publicado originalmente em 28 de maio de 2021
Em 20 de maio, o Museu de História do Gulag em Moscou abriu um centro de informações em “Kommunarka”, um infame local de execução em massa do Grande Terror stalinista nos arredores da capital da Rússia. Os visitantes podem fazer expedições e ter uma visão geral da história do local e dos esforços para escavar as sepulturas.
Arqueólogos e historiadores só recentemente concluíram o trabalho de localizar e desenterrar os restos mortais das 6.609 pessoas que ali foram executadas entre 1937 e 1941. A maioria delas foi vítima do Grande Terror de 1936-1938, durante o qual a burocracia stalinista assassinou praticamente todo o quadro do Partido Bolchevique que havia realizado a Revolução de Outubro de 1917. Também foram mortos setores substanciais da Terceira Internacional Comunista (Comintern), fundada em 1919, sob a liderança dos bolcheviques.
A burocracia que realizou esses crimes foi uma casta privilegiada dentro do Estado operário que surgiu sob condições de isolamento internacional e relativo atraso econômico do país. Liderada por Joseph Stalin, essa elite parasitária entrou em conflito cada vez mais direto com o programa internacionalista e igualitário da Revolução de Outubro de 1917 e com as aspirações socialistas da classe trabalhadora soviética. Com base no programa nacionalista do “socialismo em um só país”, a fração partidária em torno de Stalin traiu uma revolução operária após a outra, sobretudo na Alemanha e na China.
A traição nacionalista à revolução mundial pelo stalinismo foi combatida por Leon Trotsky, que havia sido junto com Lenin um dos líderes da revolução. Em 1923, ele formou a Oposição de Esquerda. Em 1938, após a derrota devastadora da classe trabalhadora alemã e a chegada ao poder do nazismo em 1933 – o resultado direto das políticas desastrosas do stalinizado Comintern – Trotsky fundou a Quarta Internacional.
Nos três Processos de Moscou de 1936-1938, importantes líderes da revolução foram enquadrados em monstruosos julgamentos fraudulentos, nos quais eles foram forçados, após intensas torturas, a fazer falsas confissões públicas sobre suas supostas atividades “contrarrevolucionárias”.
A história de “Kommunarka”
O local de fuzilamento de “Kommunarka” tornou-se o túmulo de algumas das vítimas mais famosas dos julgamentos. Ele dá uma visão da escala do terror que custou a vida de pelo menos 700.000 pessoas. Entre aqueles que foram fuzilados e enterrados em “Kommunarka” estão:
• Nikolai Bukharin (1888-1938) e Alexei Rykov (1881-1938), ambos líderes do Partido Bolchevique desde antes de 1917, e que mais tarde fizeram parte da efêmera “Oposição de Direita” à fração de Stalin em 1928-29. Eles foram condenados à morte como réus do Terceiro Processo de Moscou de 1938.
• Lev Levin (1870-1938), médico do Kremlin que havia tratado figuras políticas e culturais soviéticas de destaque, incluindo Vladimir Lenin, Felix Dzerzhinsky e o escritor Maxim Gorky. Ele também foi um réu no Terceiro Processo de Moscou.
• Nikolai Krestinsky (1883-1938), membro do Comitê Central Bolchevique em 1917 e um dos primeiros secretários do partido no Comitê Central após a revolução. Krestinsky foi apoiador da Oposição de Esquerda de 1923 a 1928. Ele também foi um réu no Terceiro Processo de Moscou.
• Vladimir Antonov-Ovseenko (1883-1938), que liderou a tomada do Palácio de Inverno em outubro de 1917. Assim como Krestinsky, Antonov-Ovseenko foi um membro destacado da Oposição de Esquerda nos anos 1920 e um dos signatários de seu documento fundador, a Declaração dos Quarenta e Seis. Ele capitulou ao stalinismo logo após sua expulsão do Partido Bolchevique, em dezembro de 1927. Mais tarde ele desempenhou um papel vergonhoso como executor das políticas stalinistas na Guerra Civil Espanhola em 1936-37, antes de ser convocado de volta a Moscou e morto em 10 de fevereiro de 1938.
• Valerian Osinskii-Obolensky (1887-1938), bolchevique desde 1907 e economista formado que se tornou o primeiro chefe do VSNKh, o Conselho Supremo da Economia Nacional da União Soviética, após a tomada do poder em 1917. Um “centralista democrático”, ele apoiou a Oposição de Esquerda em 1923-24, mas logo rompeu com ela e passou a desempenhar papéis de liderança em várias instituições econômicas do Estado. Antes de sua execução, ele trabalhou como diretor do Instituto de História das Ciências e Tecnologia na Academia de Ciências.
• Boris Malkin (1891-1938), ex-líder dos Socialistas Revolucionários de Esquerda que se juntou aos bolcheviques em 1918. Ele esteve envolvido na produção das primeiras gravações de áudio dos discursos de Lenin e mais tarde se tornou uma figura importante na vida cultural soviética. Ele trabalhou junto com o poeta Sergei Esenin, foi amigo do poeta Vladimir Mayakovsky, editou várias revistas e ajudou a dirigir o teatro de Vsevolod Meyerhold na década de 1920.
• Turar Ryskulov (1894-1937) e Kaikhisiz Sardarovich Atabayev (1887-1938), ambos líderes comunistas no Turcomenistão.
• Grigori Grinko (1890-1938), comunista da Ucrânia que já havia sido membro do movimento socialista revolucionário borotbista. Ele foi ministro das finanças da União Soviética de 1930 a 1937.
• Pavel Tsvetkov (1906-1938), comunista búlgaro que ajudou a liderar o movimento juvenil do Comintern, o Komsomol, na Bulgária, e depois emigrou para a União Soviética, onde trabalhou em uma fábrica de Moscou.
Outras vítimas incluem membros dos partidos comunistas chinês e coreano, estudantes de universidades de Moscou, trabalhadores de várias fábricas em Moscou e nos arredores, cientistas, economistas e figuras literárias. “Kommunarka” também se tornou um importante cemitério para os mortos durante o expurgo do Exército Vermelho, incluindo dezenas de comandantes do alto escalão executados. Muitos deles haviam sido treinados por Trotsky durante a guerra civil. A decapitação do Exército Vermelho teria consequências devastadoras quando os nazistas invadiram a União Soviética apenas alguns anos depois, em 1941, e lançaram uma guerra que custou a vida de pelo menos 27 milhões de cidadãos soviéticos.
O local de fuzilamento de “Kommunarka” fazia parte da área da residência de luxo de Genrikh Yagoda, o antigo chefe do NKVD (serviço secreto soviético). Ele desempenhou um papel sinistro e de liderança no Grande Terror antes que ele próprio e seus subordinados fossem vítimas do expurgo em 1938. Ele também está enterrado em “Kommunarka”. O próprio local era completamente secreto até o outono de 1991, poucos meses antes da burocracia stalinista finalmente liquidar a União Soviética.
Durante décadas, sua localização exata, como a de muitos outros locais de execução em massa do Grande Terror, permaneceu desconhecida. A ordem do NKVD “Sobre Elementos Antissoviéticos”, que iniciou a operação de maior escala do Grande Terror, havia enfatizado que as execuções deveriam prosseguir “mantendo total sigilo sobre a data e o local”. A localização deste e de outros locais de fuzilamento em massa era um “segredo de Estado”, e as provas documentais sobre eles foram sistematicamente destruídas.
Enquanto voluntários e historiadores realizavam trabalho de campo nas proximidades a partir de 2012, a localização exata dos túmulos permaneceu desconhecida por muitos anos. A pesquisa profissional, envolvendo arqueólogos e historiadores, só começou em 2018, por iniciativa do Museu de História do Gulag. A eventual identificação das valas comuns tornou-se possível quando historiadores descobriram fotografias de reconhecimento aéreo que haviam sido feitas pela Luftwaffe alemã em 26 de agosto de 1942 no arquivo nacional dos EUA.
Essa pesquisa tem sido conduzida num clima político e cultural dominado pelos esforços do Estado russo para falsificar a história da Revolução de Outubro, glorificar o stalinismo e se engajar nas mais vis calúnias antissemitas contra seus líderes, acima de tudo, Leon Trotsky. O governo também destruiu secretamente documentos de arquivo relacionados com as vítimas dos expurgos.
A abertura do museu vem na sequência do caso contra Yuri Dmitriev, que descobriu um local de fuzilamento em Sandarmokh, Karelia, está agora em seu terceiro julgamento. Dmitriev, de 65 anos, foi condenado a 13 anos de prisão por acusações falsas de abuso sexual de um menor. O objetivo da vingança estatal contra ele é intimidar a todos que procuram descobrir a verdade sobre os crimes do stalinismo.
Como a de Dmitriev, a orientação política do museu do Gulag é anticomunista. A exposição permanente da instituição quase não faz menção à Oposição de Esquerda e tende a obscurecer a natureza política da supressão stalinista de toda oposição dentro da União Soviética. Ao invés disso, retrata o terror como um resultado natural da Revolução de Outubro. No site do novo centro de informações de Kommunarka, os nomes daqueles que foram assassinados são acompanhados por uma biografia extremamente breve que ignora sua participação (ou não participação) na Revolução de Outubro e na Oposição de Esquerda.
As origens do Grande Terror
Tal abordagem obscurece as verdadeiras origens históricas e o significado do Grande Terror. Longe de representar uma continuidade da Revolução de Outubro, o terror foi o ápice da reação stalinista e nacionalista contra a revolução. Embora os expurgos atingiram muito além de dezenas de milhares de trotskistas, foi fundamentalmente, nas palavras do historiador soviético Vadim Rogovin, um “genocídio político”. O principal réu nos Processos de Moscou foi Leon Trotsky, que como nenhum outro representou a oposição socialista ao stalinismo e o programa da revolução socialista mundial. A acusação de “atividade contrarrevolucionária trotskista” estava no centro dos expurgos assassinos.
Em seu discurso de encerramento à Comissão Dewey em 1937, que inocentou Trotsky e seu filho, Leon Sedov, de todas as acusações da burocracia stalinista e considerou os julgamentos como tendo sido armações, Trotsky explicou as razões subjacentes ao terror e às armações monstruosas, nas quais os líderes da Revolução de Outubro foram forçados a se denunciar como “sabotadores” e “contrarrevolucionários”:
A posição de uma burocracia privilegiada em uma sociedade que essa própria burocracia chama de socialista não é apenas contraditória, mas também falsa. Quanto mais precipitado o salto da reviravolta de Outubro – o que expôs toda a falsidade social – para a situação atual, na qual uma casta de oportunistas é forçada a encobrir suas úlceras sociais, mais crua é a mentira do Termidor. Por conseguinte, não se trata simplesmente da depravação individual desta ou daquela pessoa, mas da corrupção alojada na posição de todo um grupo social para o qual mentir se tornou uma necessidade política vital. Na luta por suas novas posições, esta casta se reeducou e simultaneamente reeducou - ou melhor, desmoralizou - seus líderes. Ela levantou sobre seus ombros o homem que melhor, mais resoluta e mais impiedosamente expressa seus interesses. Assim, Stalin, que já foi um revolucionário, tornou-se o líder da casta Termidoriana.
As fórmulas do marxismo, expressando os interesses das massas, cada vez mais incomodavam a burocracia, na medida em que eram inevitavelmente dirigidas contra os seus interesses. Desde o momento em que iniciei minha oposição à burocracia, seus cortesãos-teóricos começaram a chamar a essência revolucionária do marxismo – “trotskismo”. ... Os expurgos incessantes do Partido [nos anos 20] foram dirigidas sobretudo para arrancar o “trotskismo”, e durante esses expurgos não só os trabalhadores descontentes eram chamados de “troskos”, mas também todos os escritores que honestamente apresentavam fatos históricos ou citações que contradiziam a última padronização oficial. Os romancistas e artistas estavam sujeitos ao mesmo regime. A atmosfera espiritual do país ficou completamente impregnada com o veneno das coisas convencionais, mentiras e armações diretas.
Todas as possibilidades ao longo deste caminho foram logo esgotadas. As falsificações teóricas e históricas não atingiram mais seus objetivos - as pessoas se acostumaram demais a elas. Era necessário dar à repressão burocrática uma base mais maciça. Para reforçar as falsificações literárias, foram trazidas acusações de caráter criminoso. ... Para justificar as repressões, era necessário ter incriminado as acusações. Para dar peso às falsas acusações, foi necessário reforçá-las com repressões mais brutais. Assim, a lógica da luta levou Stalin pelo caminho de amálgamas judiciais gigantescas.
Com os expurgos, a burocracia se consolidou como uma casta e provou ao imperialismo que se opunha à revolução socialista e a qualquer perspectiva de outro Outubro em qualquer parte do mundo. Além disso, ao arrastar os líderes da revolução pela lama antes de assassiná-los, a burocracia procurou desacreditar a Revolução de Outubro aos olhos de milhões de pessoas no mundo inteiro e destruir a consciência histórica e socialista da classe trabalhadora na URSS e internacionalmente. A liquidação stalinista da União Soviética há três décadas, em 1991, da qual surgiu o regime de Putin, não pode ser entendida fora deste contexto mais amplo.
Neste contexto, os recentes esforços para localizar estas valas comuns e estabelecer informações biográficas básicas sobre aqueles que foram assassinados são uma contribuição importante e indispensável para o registro histórico. Entretanto, a verdade histórica completa e a compreensão desta experiência crítica na história da classe trabalhadora internacionalista exigem um entendimento da luta travada por Trotsky e pela Oposição de Esquerda, do ponto de vista socialista e internacionalista, contra o stalinismo.
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Os Processos de Moscou e o genocídio político na URSS
A luta da Oposição de Esquerda contra o stalinismo (1923-1933)
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