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Viagem de Bolsonaro à Rússia ressalta tensões geopolíticas crescentes na América do Sul

Publicado originalmente em 22 de fevereiro de 2022

O presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro concluiu na sexta-feira uma viagem de três dias à Rússia e Hungria que foi condenada de forma praticamente unânime pela imprensa corporativa e pelas principais forças políticas do Brasil. A viagem foi atacada por minar as relações do Brasil com as potências imperialistas, no momento em que elas lançam acusações histéricas contra o governo russo com o objetivo de provocar uma guerra na Ucrânia.

Jair Bolsonaro encontra Vladimir Putin em Moscou em 16 de fevereiro de 2022 (Crédito: Alan Santos/PR)

Em seu encontro com o presidente russo Vladimir Putin, Bolsonaro declarou que o Brasil era “solidário à Rússia”. A declaração atraiu críticas imediatas da porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, que disse que o Brasil “parecia estar do lado oposto da comunidade global”. No dia seguinte, Bolsonaro encontrou o líder de extrema-direita húngaro Viktor Orbán, declarando que ambos tinham como valores comuns “Deus, pátria, família e liberdade” – uma celebração aberta da orientação fascista que ambos compartilham.

A visita de Bolsonaro havia sido acordada em dezembro e, de acordo com o governo brasileiro, teria como focos acordos de cooperação militar não especificados, comércio e investimentos bilaterais e, em particular, garantias sobre o fornecimento de fertilizantes da Rússia para o crucial agronegócio brasileiro. A produção de grãos e carne tem sido efetivamente o único setor da economia brasileira a experimentar qualquer crescimento econômico nos últimos 10 anos, e é visto como responsável por evitar uma queda ainda mais acentuada do PIB desde 2015.

A imprensa corporativa brasileira, totalmente alinhada com as forças políticas dominantes nos EUA e especialmente com o Partido Democrata, tentou minimizar as contradições objetivas que impulsionaram a viagem. A avaliação dos principais jornais variou de retratá-la exclusivamente como uma tentativa de “provocar” o presidente americano Joe Biden até a absurda alegação de que ela havia sido impulsionada pelo “machismo” compartilhado por Putin e Bolsonaro. De modo significativo, comentaristas políticos esforçaram-se para minimizar as relações comerciais entre o Brasil e a Rússia. Uma avaliação típica e amplamente compartilhada pela imprensa veio da revista ultra-direitista Veja, que escreveu que “Bolsonaro prefere irritar os EUA, maior economia do mundo, ao visitar parceiro comercial pouco relevante”.

O fato é que o Brasil importa 90% de seus fertilizantes, e a Rússia é responsável por um quarto desse montante. As massacrantes sanções impostas a Belarus, outro importante produtor de fertilizantes, juntamente com a desorganização das cadeias de suprimentos causada pela pandemia e restrições às exportações na China e na Índia, fizeram com que os preços dos fertilizantes subissem 300% em 2021. Sofrendo com uma enorme seca impulsionada pelo aquecimento global, as indústrias brasileiras de carne e grãos enfrentam uma tempestade perfeita, e a ministra da agricultura do país já havia sido forçada a viajar para a Rússia em dezembro de 2021 para assegurar mais importações.

Conforme se aproximava a viagem de Bolsonaro, as ameaças de guerra lideradas pelos EUA se intensificaram, e a data da chegada de Bolsonaro, 16 de fevereiro, foi até mesmo declarada pela Casa Branca como o dia de uma invasão russa. Editoriais no Brasil imploraram a Bolsonaro que adiasse a viagem, advertindo que isso prejudicaria os objetivos diplomáticos declarados por sua administração – estreitar os laços com a OTAN e entrar na OCDE. Segundo relatos na imprensa, autoridades do Ministério das Relações Exteriores insistiram para que Bolsonaro adiasse a viagem ou pelo menos incluísse uma parada na Ucrânia a fim de demonstrar “neutralidade”, o que Bolsonaro rejeitou. Também multiplicaram-se reportagens citando as preocupações dos EUA sobre a viagem.

O furor da imprensa fez pouco para esclarecer as tensões reais subjacentes ao desafio de Bolsonaro tanto ao imperialismo americano quanto ao aparente consenso entre as forças políticas dominantes do Brasil. O comunicado brasileiro após a visita enfatizou como “A Rússia é para o Brasil uma referência mundial em desenvolvimento tecnológico, sobretudo no âmbito de sua indústria de defesa” e como o Brasil “privilegia a oportunidade de transferência de tecnologia em suas parcerias internacionais nesse setor de defesa”. Tais declarações têm implicações sombrias.

Não há dúvida de que a viagem de Bolsonaro à Rússia em meio à ofensiva belicista dos EUA expressa profundas divisões e preocupações dentro da classe dominante brasileira e por toda a América do Sul. A incapacidade da imprensa corporativa de discutir tais tensões objetivas, concentrando-se, ao invés disso, em uma narrativa personalista, é em si mesma uma expressão de extremo nervosismo e desorientação. De acordo com a narrativa semi-oficial, com a derrota do estúpido Bolsonaro nas eleições de outubro, o Brasil retornará a uma relação democrática, pacifista e fraterna com o mundo e um turbilhão de investimentos estrangeiros se seguirá.

A realidade não poderia ser mais distante deste devaneio, em um momento em que as tensões internacionais atingem um estágio explosivo. A viagem de Bolsonaro à Rússia em meio ao frenesi bélico dos EUA vai muito além do considerável grau de ambiguidade que marcou a política externa e militar brasileira após a Segunda Guerra Mundial, em que pese seu alinhamento com os EUA contra a União Soviética e as operações militares anti-comunistas conjuntas de ambos os países em todo o continente.

Na raiz dos atuais conflitos está o declínio histórico do imperialismo americano, que está se tornando cada vez mais agressivo à medida que tenta compensar o declínio de seu poder econômico com força militar.

A viagem de Bolsonaro à Rússia vem na sequência do que havia sido uma série de avanços nas relações EUA-Brasil durante seu mandato, incluindo exercícios militares conjuntos sem precedentes envolvendo as forças norte-americanas em território brasileiro, a promoção do país como “aliado preferencial extra-OTAN” e a crescente colaboração com os EUA em tecnologia espacial.

Esses primeiros desenvolvimentos na presidência de Bolsonaro marcaram uma reversão de uma relutância histórica dos militares brasileiros em oferecer cooperação incondicional com o Pentágono. Na questão-chave das indústrias militar e nuclear, o exército brasileiro tem historicamente procurado preservar espaço de manobra diante a pressão dos EUA e até mesmo da ONU. Como é amplamente conhecido, altas autoridades militares brasileiras citam a indústria nuclear nacional, e especialmente a capacidade de minerar e enriquecer urânio para suas duas usinas no estado do Rio de Janeiro, como um elemento de dissuasão militar, preservando a capacidade de desenvolver um arsenal nuclear. O Brasil nunca permitiu à ONU inspecionar livremente sua infraestrutura nuclear.

Sob o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) os militares escolheram os caças suecos Gripen explicitamente porque permitiriam a independência tecnológica da OTAN. O PT vangloria-se incessantemente de ter assinado um acordo com a França fazendo do Brasil o único país não-nuclear capaz de construir e operar um submarino movido a energia nuclear. O pacto AUKUS finalmente deu à Austrália a mesma capacidade.

O PT sempre procurou retratar seu programa de rearmamento maciço usando a linguagem do “multilateralismo”, ou seja, da dissuasão armada, ou de uma “paz armada”. Desafiando esta lógica nacionalista falida, o exército brasileiro coroou o programa de rearmamento do PT com a primeira Estratégia Nacional de Defesa da presidência de Bolsonaro, que declarou pela primeira vez os conflitos “entre estados”, e não a guerra de guerrilha ou o “tráfico de drogas”, como a principal preocupação para a segurança sul-americana e a principal preocupação estratégica das forças armadas brasileiras.

Essa designação acompanhou de perto a mudança estratégica dos EUA da “guerra ao terror” para “conflitos entre grande potências”, ocorrida em 2017, o que incluiu o compromisso do Pentágono de combater a influência chinesa e russa na América Latina.

As tensões se intensificaram no continente. Bolsonaro tomou posse em meio à frenética ofensiva norte-americana para derrubar o venezuelano Nicolas Maduro. Na época, a imprensa brasileira publicou inúmeros comentários preocupados com o fato de que as forças armadas do país estavam ficando atrás daquelas da Colômbia, armada pela OTAN, e não conseguiriam enfrentar os caças venezuelanos fornecidos pela Rússia durante ou no período posterior às tentativas de mudança de regime dos EUA.

A intensificação da cooperação com a Rússia em questões-chave, desafiando a política externa americana e em meio à histeria sobre a Ucrânia, decorre diretamente de uma avaliação de que o alinhamento incondicional com os Estados Unidos, que está sofrendo um declínio de sua hegemonia global, não oferece garantias suficientes para os interesses do capitalismo brasileiro.

Tal avaliação se estende muito além do Brasil, com o presidente argentino Alberto Fernández – o rival nominal “esquerdista” de Bolsonaro – tendo feito sua própria viagem à Rússia poucos dias antes de Bolsonaro, e enfrentando as mesmas pressões internas em seu país.

Mais ao norte, na Colômbia, o aliado americano mais confiável da região, tais tensões estão levantando o espectro de um golpe no caso de a nova administração a ser eleita em maio deixar de seguir a linha de Washington. Em uma recente viagem ao país, a articuladora diplomática do golpe anti-russo de 2014 na Ucrânia, a sub-secretário de Estado Victoria Nuland, acusou a Rússia de interferir nas eleições colombianas – em benefício do primeiro colocado nas pesquisas, o senador Gabriel Petro.

As nações latino-americanas, tendo vivido todo o século XX sob o domínio de Washington, sendo vistas pelo imperialismo americano como o “seu quintal”, não escaparão da guerra imperialista através de uma “dissuasão militar” falida, ou por meio de manobras com os rivais de Washington na Rússia, China ou na Europa ocidental.

Duas vezes no século XX o Brasil foi arrastado para guerras mundiais ao lado dos EUA e da Grã-Bretanha. Em 1942, ao declarar guerra ao Eixo, o ditador corporativista brasileiro Getúlio Vargas não só enviou 25.000 soldados para a Itália, mas também foi forçado a ceder o controle do nordeste do país como uma plataforma para a aviação americana atacar as forças do Eixo na África Ocidental. Vargas chegou a um acordo com os EUA diante das ameaças de que os próprios alemães atacassem a região e a utilizassem para os mesmos fins.

É desnecessário dizer que a espiral de conflitos internacionais do século XXI colocaria imediatamente a infraestrutura brasileira sob uma ameaça ainda mais direta. Os terminais de grãos e carne abastecendo cargueiros chineses seriam apenas o primeiro alvo. Ataques à Argentina afetariam decisivamente o Brasil, dada a integração econômica dos dois países, e o oposto não seria menos verdadeiro.

Não há uma única força política em nenhum país sul-americano que esteja remotamente disposta a dizer a verdade ao público sobre esta realidade, e muito menos que seja capaz de impedi-la. No Brasil, Lula e a liderança do PT foram desestabilizados pela viagem de Bolsonaro. Tendo concentrado toda sua oposição a Bolsonaro em questões de política externa e na necessidade de mais assertividade na busca por concessões dos EUA, o PT dividiu-se profundamente e mostrou-se desorientado pela viagem.

O ex-ministro das Relações Exteriores de Lula, Celso Amorim, elogiou abertamente Bolsonaro por desafiar os EUA. Por outro lado, o candidato presidencial do partido em 2018, Fernando Haddad, um herói daqueles que promovem as política identitárias no país, alinhou-se integralmente ao imperialismo americano, declarando que Bolsonaro havia ido a Moscou para aprender como melhorar sua promoção de “notícias falsas” no Brasil – dando assim credibilidade a toda a histeria anti-russa na imprensa.

Haddad pretendia que seu comentário reacionária pró-imperialista fosse uma condenação das ameaças de Bolsonaro às eleições de outubro, expondo que o próprio PT não tem nada mais que um apelo por apoio imperialista, sob a forma de acusações de “interferência russa”, para combater um golpe de Bolsonaro.

Os trabalhadores brasileiros devem rejeitar o impulso à guerra e a resposta reacionária pró-imperialista do PT às ameaças de golpe de Bolsonaro, e construir uma nova direção revolucionária para pôr fim à causa do impulso à guerra e à ditadura: o sistema capitalista.

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