Publicado originalmente em 18 de março de 2022
Esta carta foi enviada pelo Presidente do Conselho Editorial Internacional do WSWS, David North, a um amigo que solicitou sua opinião sobre uma recente discussão on-line realizada por uma faculdade dos EUA sobre a guerra Russo-Ucraniana.
Caro amigo,
Obrigado por trazer-me à atenção a discussão online sobre a guerra Russo-Ucraniana e por me proporcionar acesso ao evento no campus. Acabei de ouvir a transmissão e, como solicitou, darei minha opinião “profissional” sobre a apresentação dos dois acadêmicos. Vou me concentrar nas observações do historiador, com cujo trabalho no campo de estudos do Holocausto estou familiarizado. Em todo caso, foram dele os comentários mais substanciais.
Para ser franco, fiquei desapontado, se não surpreendido, com o nível superficial da abordagem deste ponto de viragem crítico e ameaçador na conjuntura mundial. Como você sabe, minha avaliação da guerra é a de alguém ativo na política socialista internacional. O World Socialist Web Site condenou publicamente a invasão russa da Ucrânia. Contudo, sua oposição principista de esquerda nada tem em comum com a propaganda oficial grosseiramente enviesada dos EUA-OTAN, que apresenta a invasão como um ato de agressão totalmente gratuito da Rússia.
Grandes acontecimentos como guerras e revoluções invariavelmente levantam problemas complexos de causalidade. Essa é uma das razões pelas quais o estudo da história é base indispensável para uma análise política séria. Esta verdade geral adquire importância excepcional em qualquer discussão sobre a Rússia. Esse país foi o local do acontecimento político mais significativo do século XX, a Revolução de Outubro de 1917, cujo legado histórico, político e intelectual continua a reverberar no presente. O estudo da história soviética permanece crucial para a compreensão da política e dos problemas do mundo contemporâneo.
Não se trata de nostalgia política. As observações iniciais do historiador fizeram breves referências às últimas décadas da URSS e enfatizaram o trauma causado por sua dissolução. Entretanto, sua ênfase no impacto desse evento sobre a psicologia pessoal de Vladimir Putin não levou a uma compreensão séria nem da Rússia nem da guerra atual. Ele não tentou explicar as bases socioeconômicas do regime que emergiu da decisão da burocracia stalinista de liquidar a União Soviética.
As perguntas essenciais não foram levantadas. No interesse de quem Putin governa? Que impacto teve a privatização dos bens estatais na percepção da elite capitalista russa sobre seus interesses de segurança? Comparando a política externa de Putin à da União Soviética, que elementos de suas políticas mudaram e que elementos persistiram?
A geografia é um fator persistente, e um fator que assombra a Rússia, um país que foi terra de tantas invasões – incluindo, é preciso mencionar, a guerra de extermínio lançada pela Alemanha nazista há apenas 80 anos, que custou a vida de entre 30 e 40 milhões de cidadãos. O historiador mencionou o impacto que a revolta em frente à sede da Stasi em Berlim, em 1989, teve sobre Putin. Acho difícil acreditar que esse incidente o afetou mais do que a memória social duradoura da “Grande Guerra Patriótica” e seus choques posteriores.
A catástrofe que começou em 22 de junho de 1941 está imbuída na consciência coletiva dos russos. Não se trata de justificar as conclusões nacionalistas tiradas por Putin da Segunda Guerra Mundial, para não mencionar as dos elementos de ultradireita como Aleksandr Dugin. Mas a experiência da Segunda Guerra Mundial é mais importante para compreender as percepções russas, inclusive dos trabalhadores, do que os supostos sonhos com um império perdido.
Dito isso, o que achei mais preocupante na discussão do seminário online sobre a guerra foi a ausência de qualquer referência às guerras travadas pelos Estados Unidos, muitas vezes com o apoio de seus aliados da OTAN, durante os últimos 30 anos. Toda a cobertura desta guerra na mídia foi caracterizada por um nível de hipocrisia repugnante. Mesmo que se aceite como absolutamente verdadeiros todos os crimes atribuídos aos russos durante o último mês, eles não se aproximam da escala dos horrores infligidos pelos Estados Unidos e pela OTAN ao Iraque, Líbia e Afeganistão – sem mencionar os outros países que têm sido alvo de bombardeios, ataques com mísseis e assassinatos planejados pelos EUA. Com base no que se vê e lê nos noticiários e na mídia impressa, seria possível pensar que os Estados Unidos foram acometidos por uma forma virulenta de amnésia coletiva.
Será que ninguém se lembra do “Choque e Pavor”? Se o Pentágono tivesse planejado a guerra contra a Ucrânia, Kiev e Kharkiv teriam sido esmagadas na primeira noite da guerra. A mídia americana agiu como se o ataque à maternidade em Mariupol (aceitando como verdadeira a descrição de sua utilização atual) que custou três vidas fosse um ato de brutalidade indescritível. Será que todos se esqueceram do bombardeio americano de fevereiro de 1991 contra o abrigo aéreo de Amiriyah na periferia de Bagdá que matou aproximadamente 1.500 mulheres e crianças? Estima-se plausivelmente que as mortes causadas pelas “guerras de escolha” americanas totalizam mais de 1 milhão. E as mortes continuam. Milhões de crianças estão morrendo de fome no Afeganistão. Refugiados de pele escura da catástrofe criada pelas bombas da OTAN na Líbia continuam a se afogar no Mediterrâneo. Alguém dá atenção a isso? A vida do povo da Ásia Central e do Oriente Médio é menos preciosa do que a dos europeus na Ucrânia?
Os jornalistas que agora estão comparando Putin com Hitler parecem ter esquecido o que eles mesmos escreveram durante a guerra aérea contra a Sérvia e a posterior invasão do Iraque. O historiador se referiu a Thomas Friedman do New York Times como um grande pensador geopolítico. Recordemos o que ele escreveu em 23 de abril de 1999, durante o bombardeio EUA-OTAN sobre a Sérvia:
Mas se a única força da OTAN é sua capacidade de bombardear infinitamente, então ela deve tirar proveito de cada grama disso. Vamos ao menos ter uma verdadeira guerra aérea. A ideia de que as pessoas continuam realizando shows de rock em Belgrado, ou saindo para passeios de carrossel no domingo, enquanto seus companheiros sérvios estão “limpando” Kosovo, é ultrajante. As luzes devem estar apagadas em Belgrado: toda rede elétrica, tubulação de água, pontes, estradas e fábricas relacionadas à guerra devem ser alvos de ataque.
Gostando ou não, estamos em guerra com a nação sérvia (os sérvios certamente pensam assim), e o que está em jogo deve estar muito claro: cada semana que vocês devastarem Kosovo é mais uma década a que nós faremos seu país retroceder bombardeando-o. Vocês querem 1950? Nós podemos fazer 1950. Vocês querem 1389? Nós também podemos fazer 1389. Se conseguirmos enquadrar a questão dessa forma, o Sr. Milosevic vai parar para pensar, e talvez já tenhamos visto seu primeiro tremor ontem.
Permitam-me recordar as palavras do colunista do Washington Post, George Will, que agora espuma de raiva com os crimes de Putin. Mas isso é o que Will escreveu durante a invasão do Iraque pelos EUA em uma coluna datada de 7 de abril de 2004:
Mudança de regime, ocupação, construção de nações – em uma palavra, império – são um negócio sangrento. Agora os americanos precisam se endurecer para empregar a violência necessária para desarmar ou derrotar as milícias urbanas do Iraque...
Uma semana depois, em 14 de abril de 2004, Will lançou outra provocação homicida no Post:
Depois de Fallujah, é claro que o assunto de primeira ordem para os Fuzileiros Navais e outras forças dos EUA é seu negócio básico: infligir força mortal.
As colunas de Will não eram exceções. Elas são bastante típicas do que os porta-vozes midiáticos americanos escreviam naquela época. O que mudou foi a reação pública em geral. Naquela época, a oposição às guerras dos EUA e à política externa que as fomentava era generalizada. Hoje, é difícil encontrar até mesmo vestígios de oposição pública.
Examinar a política externa agressiva dos Estados Unidos desde a dissolução da URSS não é apenas uma questão de expor a hipocrisia americana. Como é possível entender as políticas russas à parte de uma análise do contexto global no qual elas são formuladas? Dado o fato de que os Estados Unidos têm travado guerras incessantemente, seria irracional o fato de Putin ver a expansão da OTAN com preocupação? Ele e outros arquitetos da política russa estão certamente cientes do enorme interesse estratégico dos Estados Unidos na região do Mar Negro, do Mar Cáspio e na extensão terrestre da Eurásia. Não é exatamente um segredo que o falecido Zbigniew Brzezinski e outros importantes geoestrategistas dos Estados Unidos insistem há muito que o domínio americano da Eurásia – a chamada “Ilha Mundial” – é um objetivo estratégico decisivo.
Esse imperativo tornou-se ainda mais crucial no contexto da escalada do conflito americano com a China.
Foi dentro desse quadro geral que o futuro da Ucrânia se tornou um assunto de grande importância para os Estados Unidos. Brzezinski declarou explicitamente que a Rússia, privada de sua influência sobre a Ucrânia, seria reduzida ao status de um poder menor. Ainda mais sinistramente, Brzezinski falou abertamente sobre atrair a Rússia para uma guerra na Ucrânia que se revelaria tão autodestrutiva quanto a anterior intervenção soviética no Afeganistão. Uma reconstrução dos acontecimentos que levaram ao estouro da guerra – voltando até o golpe de Maidan em 2014 apoiado pelos EUA – sustenta fortemente o argumento de que esse objetivo foi agora alcançado.
Mais uma vez, reconhecer que a Rússia interpretou as ações dos Estados Unidos e da OTAN como uma séria ameaça não é uma justificativa para a invasão. Porém, não é necessário fazer uma avaliação crítica de como as políticas dos Estados Unidos levaram à invasão e mesmo a instigaram deliberadamente?
Em um ensaio publicado digitalmente pela Foreign Affairs em 28 de dezembro de 2021, quase dois meses antes da invasão, o analista Dmitri Trenin escreveu:
Especificamente, o Kremlin poderia satisfazer-se se o governo dos Estados Unidos concordasse com uma moratória formal de longo prazo sobre a expansão da OTAN e um compromisso de não colocar mísseis de alcance intermediário na Europa. Também poderia ser tranquilizado por um acordo separado entre a Rússia e a OTAN que restringisse as forças e atividades militares nos pontos de encontros entre seus territórios, desde o Báltico até o Mar Negro. …
Naturalmente, é uma questão em aberto se o governo Biden está disposto a se comprometer seriamente com a Rússia. Haverá alta rejeição a qualquer acordo nos Estados Unidos devido à polarização política interna e ao fato de que fazer um acordo com Putin expõe o governo Biden às críticas de estar se submetendo a um autocrata. A oposição também será grande na Europa, onde as lideranças sentirão que um acordo negociado entre Washington e Moscou os deixará de escanteio. [“O que Putin realmente quer na Ucrânia: Rússia busca impedir a expansão da OTAN, e não anexar mais território”].
Se era possível garantir um acordo sobre estatuto da Ucrânia fora da OTAN, isso não teria sido preferível à situação atual? É possível argumentar seriamente que a Rússia não tinha motivos para se opor à integração da Ucrânia à OTAN? Aqueles que vivenciaram a crise de outubro de 1962 lembram que ela foi desencadeada pela instalação de mísseis balísticos pela União Soviética em Cuba. Embora isso tenha sido feito com o pleno consentimento do regime de Castro, o presidente Kennedy deixou claro que os Estados Unidos não aceitariam uma presença militar soviética no Hemisfério Ocidental e estavam preparados para arriscar uma guerra nuclear sobre o assunto. Isso foi há 60 anos. Alguém pode acreditar seriamente que o governo Biden agiria menos agressivamente hoje se, por exemplo, o México ou qualquer outro país do Caribe ou da América Latina entrasse em uma aliança militar com a China, mesmo uma que se afirmasse puramente defensiva?
Há ainda outra questão que não foi seriamente abordada. Ambos os professores minimizaram a contínua influência política e cultural do fascismo na Ucrânia, que é demonstrada pela renovação da glorificação do assassino em massa Stepan Bandera e a influência de forças paramilitares fortemente armadas, como o Batalhão Azov, que se identificam com o horrível legado da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e sua força armada, o Exército Insurreto Ucraniano (UPA). O papel crítico desempenhado pela OUN e o UPA no extermínio dos judeus ucranianos é um fato histórico estabelecido. O relato mais recente de seus crimes genocidas, Ukrainian Nationalists and the Holocaust: OUN and UPA’s Participation in the Destruction of Ukrainian Jewry, 1941-1944 (“Os nacionalistas ucranianos e o Holocausto: A participação da OUN e da UPA na destruição dos judeus ucranianos, 1941-1944”, em tradução livre), por John-Paul Himka, é uma leitura bastante pesada.
Os horrores da Segunda Guerra Mundial não são “apenas” uma questão histórica. (Coloco “apenas” entre aspas porque esta palavra nunca deve ser usada ao referir-se a eventos associados a crimes como o Holocausto). É bem sabido que o culto a Stepan Bandera e a justificação de todos os crimes aos quais ele está associado reemergiram como um fator potente e extremamente perigoso na vida política e cultural da Ucrânia, após a dissolução da URSS.
Em sua biografia bem estabelecida de Stepan Bandera, The Life and Afterlife of a Ukrainian Nationalist: Fascism, Genocide, and Cult (“A vida e legado de um nacionalista ucraniano: Fascismo, genocídio e culto”, em tradução livre) o historiador Grzegorz Rossoliński-Liebe escreveu que, depois de 1991:
Bandera e os nacionalistas revolucionários ucranianos tornaram-se novamente elementos importantes da identidade ucraniana ocidental. Não apenas os ativistas de extrema-direita, mas também o mainstream da sociedade ucraniana ocidental, incluindo professores do ensino médio e professores universitários, passou a considerar Bandera como um herói nacional ucraniano, um lutador pela liberdade e uma figura que deveria ser honrada por sua luta contra a União Soviética. A política de memória pós-soviética na Ucrânia ignorou completamente os valores democráticos e não desenvolveu nenhum tipo de abordagem não-apologética da história. [p. 553]
Rossoliński-Liebe também reporta:
Em 2009, cerca de trinta monumentos a Bandera foram inaugurados na Ucrânia ocidental, quatro museus a Bandera foram abertos, e um número desconhecido de ruas foi renomeado em sua homenagem. O culto a Bandera que surgiu na Ucrânia pós-soviética assemelha-se ao que a diáspora ucraniana havia praticado durante a Guerra Fria. Os novos inimigos dos banderistas se tornaram os ucranianos orientais russófonos, russos, democratas e, ocasionalmente, poloneses, judeus e outros. O espectro dos praticantes desse culto é muito amplo. Entre os admiradores de Bandera, pode-se encontrar, por um lado, ativistas de extrema-direita com cabeças raspadas fazendo a saudação fascista durante seus eventos e argumentando que o Holocausto foi o episódio mais brilhante da história ucraniana e, por outro, professores do ensino médio e professores universitários. [p. 554]
Durante a Guerra Fria, o lobby de extrema-direita ucraniano exerceu importante influência internacional, especialmente na antiga Alemanha Ocidental, nos Estados Unidos e no Canadá. Até seu assassinato pela KGB soviética em Munique em 1959, Bandera deu entrevistas que foram transmitidas na Alemanha Ocidental. A carreira pós-II Guerra Mundial do representante de Bandera, Iaroslav Stets'ko, também merece atenção. Ele se correspondera com Hitler, Mussolini e Franco e tentara obter o apoio do Terceiro Reich para o “Estado ucraniano livre”, que Stets'ko proclamou após a invasão alemã da União Soviética. Esse projeto não teve sucesso, pois o regime nazista não tinha interesse em satisfazer as aspirações dos nacionalistas ucranianos. Stets'ko foi colocado em “cativeiro honorário” e levado a Berlim. Em julho de 1941, ele produziu uma declaração em que afirmava:
Considero o marxismo um produto da mente judaica, que, no entanto, tem sido aplicado na prática na prisão dos povos de Moscou pelos povos moscovitas-asiáticos com auxílio dos judeus. Moscou e os judeus são os maiores inimigos da Ucrânia e portadores de ideias internacionalistas bolcheviques corruptas (...)
Apoio, portanto, a destruição dos judeus e penso ser conveniente trazer para a Ucrânia os métodos alemães de extermínio dos judeus, impedimento de sua assimilação e afins. [Himka, p. 106].
Stets'ko sobreviveu à guerra, tornou-se uma figura conhecida na política internacional de direita e serviu como membro da diretoria da Liga Mundial Anticomunista. Entre as muitas homenagens que recebeu por sua vida de luta contra o marxismo, foi nomeado cidadão honorário da cidade canadense de Winnipeg, em 1966. Isso não é tudo. Em 1983, relata Rossoliński-Liebe, Stets'ko “foi convidado para o Capitólio e a Casa Branca, onde George Bush e Ronald Reagan receberam o ‘último premiê de um estado ucraniano livre’”. [p. 552]
Rossoliński-Liebe relembra mais um evento:
Em 11 de julho de 1982, durante a Semana das Nações Cativas, a bandeira vermelha e negra da OUN-B, introduzida no Segundo Grande Congresso dos Nacionalistas Ucranianos em 1941, foi hasteada sobre o Capitólio dos Estados Unidos. Ela simbolizava liberdade e democracia, não pureza étnica e fascismo genocida. Ninguém entendeu que era a mesma bandeira que fora hasteada na prefeitura de Lviv e outros edifícios nos quais civis judeus foram maltratados e mortos em julho de 1941 por indivíduos que se identificavam com a bandeira. [p. 552]
As conexões internacionais dos neonazistas ucranianos são altamente relevantes para a presente crise. Foi revelado recentemente que funcionários de Estado canadenses se reuniram com membros do Batalhão Azov. De acordo com um relatório publicado pelo Ottawa Citizen em 9 de novembro de 2021:
Os canadenses reuniram-se e receberam informes dos líderes do Batalhão Azov em junho de 2018. Os oficiais e diplomatas não se opuseram à reunião e, ao contrário, permitiram ser fotografados com os oficiais do batalhão, apesar dos avisos anteriores de que a unidade se reconhecia como pró-nazista. O Batalhão Azov usou então essas fotos para sua propaganda on-line, apontando que a delegação canadense expressou “esperanças de dar continuidade à cooperação frutífera”.
A reportagem prossegue:
Um ano antes da reunião, a Força Tarefa Conjunta Ucrânia canadense produziu um briefing sobre o Batalhão Azov, reconhecendo seus vínculos com a ideologia nazista. “Vários membros do Azov descreveram-se como nazistas”, os oficiais canadenses advertiram em seu briefing de 2017.
Bernie Farber, chefe da Rede Canadense Contra o Ódio, disse que os canadenses deveriam ter abandonado imediatamente a reunião com o Batalhão de Azov. “O pessoal das forças armadas canadenses não se reúne com nazistas; ponto final, sinal vermelho”, disse Farber. “Esse é um erro terrível que jamais deveria ter sido cometido”.
Há ainda outro aspecto perturbador dessa história que se relaciona diretamente com a política antirussa extremamente agressiva do governo canadense. Chrystia Freeland é a vice-primeira-ministra do Canadá. Seu avô, Mykhailo Khomiak, editou um jornal nazista chamado Krakivski Visti (Notícias da Cracóvia) na Polônia ocupada e depois brevemente em Viena, de 1940 a 1945. É claro que a vice-primeira-ministra Freeland não deve ser responsabilizada pelos pecados e crimes de seu avô; mas foram levantadas sérias questões sobre a influência do nacionalismo ucraniano de direita em sua própria visão política e, portanto, sobre as políticas do governo canadense.
O National Post do Canadá informou em 2 de março de 2022:
Freeland juntou-se a vários milhares de manifestantes em um ato pró-Ucrânia no centro de Toronto. Em uma foto que seu escritório publicou posteriormente no Twitter, Freeland pode ser vista ajudando a segurar um lenço vermelho e preto com o slogan “Slava Ukraini” (Glória à Ucrânia).
Observadores notaram rapidamente que o vermelho e preto eram as cores oficiais do Exército Insurreto Ucraniano, um grupo nacionalista paramilitar ativo durante a Segunda Guerra Mundial.
A relutância da mídia em realizar uma investigação intensiva sobre as conexões familiares de Freeland e a ligação mais ampla entre a extrema-direita ucraniana e o governo canadense contrasta fortemente com a caça às bruxas que visa suprimir todos os traços de influência russa da vida cultural do país. No início deste mês, o pianista virtuoso russo de 20 anos, Alexander Malofeev – que não é de forma alguma responsável pela invasão russa da Ucrânia – foi impedido de prosseguir com seus recitais marcados em Vancouver e Montreal. Uma perseguição semelhante da influência cultural russa está em curso nos Estados Unidos e em toda a Europa. Essa campanha degradante – que representa a negação dos laços culturais entre os Estados Unidos e a Rússia que começaram a florescer em meados dos anos 1950 apesar da Guerra Fria – deve ser vista como uma manifestação dos impulsos e motivações políticos e ideológicos extremamente perigosos que operam na crise atual. Longe de denunciar e se contrapor à histeria antirussa, as instituições intelectuais e culturais estão, em sua maior parte, se adaptando a ela.
Há ainda uma última crítica que devo fazer ao seminário. A discussão não fez nenhuma referência à extrema crise política e social nos Estados Unidos, como se a situação doméstica não tivesse absolutamente nada a ver com a postura extremamente agressiva assumida pelos Estados Unidos. Muitos estudos sérios da Primeira e Segunda Guerra Mundial se concentraram no que é conhecido entre os historiadores como “Der Primat der Innenpolitik” (A primazia da política interna). Essa interpretação, desenvolvida no início dos anos 1930 pelo historiador alemão de esquerda Eckart Kehr, colocou ênfase central no papel dos conflitos sociais domésticos na formulação da política externa.
Uma cuidadosa consideração das concepções de Kehr – que adquiriu grande influência entre as gerações posteriores de historiadores – é certamente necessária na análise das motivações políticas do governo Biden. Desde o início da década, os Estados Unidos foram sacudidos por duas crises históricas: (1) a pandemia da COVID-19 e (2) a tentativa (e quase sucesso) de golpe de Estado em 6 de janeiro de 2021. Ambos os acontecimentos, mesmo quando vistos isoladamente, foram experiências traumáticas.
Em apenas dois anos, os Estados Unidos tiveram, no mínimo, 1 milhão de mortes por COVID-19, mais do que em qualquer guerra americana e, possivelmente, mais do que o número total de mortes de americanos em todas as guerras dos EUA. O número real de mortes, baseado no estudo das mortes em excesso, pode ser muito maior. Isso significa que um número extraordinariamente grande de americanos sofreu a perda de membros da família e amigos próximos. Mais de 1 em cada 100 americanos acima dos 65 anos de idade morreu. Milhões de americanos foram contaminados e um grande número deles, ainda não calculado, enfrenta os efeitos da COVID longa. Os padrões normais de vida social foram impactados de maneiras nunca experimentadas na história dos Estados Unidos. O isolamento social prolongado intensificou o problema de saúde mental, que era extremamente grave mesmo antes do início da pandemia. E o pior de tudo, os Estados Unidos provaram ser incapazes de pôr um fim a esta crise. A priorização dos interesses econômicos sobre a proteção da vida humana impediu a implementação da política de Zero COVID que poderia ter acabado com a pandemia.
As extremas contradições sociais, econômicas e políticas, que se desenvolvem no interior de uma sociedade acometida por níveis espantosos desigualdade econômica, explodiram em 6 de janeiro de 2021. O presidente dos Estados Unidos tentou violar os resultados das eleições de 2020, suspender a Constituição e se estabelecer como um ditador autoritário. Desde a Guerra Civil, o sistema político americano não enfrenta um atentado político tão fundamental. E aqueles que ou minimizam o significado do acontecimento, ou afirmam que a crise foi superada, estão se autoiludindo. O próprio Biden reconheceu, no aniversário da tentativa de golpe de Estado de Trump, que não há garantias de que a democracia americana sobreviva até o final desta década.
Seria mesmo implausível sugerir que a interação dessas duas crises tenha desempenhado um papel significativo na formulação da política externa americana? Seria esta a primeira vez que um governo se aproveitou e até provocou uma crise internacional para desviar a atenção de problemas internos incontornáveis?
Ao concluir esta carta, devo retomar um ponto que fiz anteriormente, de que o estudo da história soviética é fundamental para uma compreensão da situação mundial atual. Em meio ao triunfalismo capitalista que prevaleceu após a dissolução da União Soviética, falou-se muito sobre um fantasioso “Fim da História”. Dentro da antiga União Soviética, essa euforia autoenganadora teve seu equivalente na crença, especialmente entre intelectuais e profissionais bem-posicionados, de que a restauração do capitalismo traria riquezas incalculáveis para a Rússia e um florescimento da democracia. Os sonhos não realizados da Revolução de Fevereiro de 1917 se concretizariam. O governo provisório burguês, derrubado pelos bolcheviques em outubro, renasceria. Todos aqueles com talento, ambição e conexões poderiam se tornar ou empresários ricos ou, pelo menos, membros de uma nova e próspera classe média. Onde quer que o marxismo tivesse posto um sinal negativo, os pequeno burgueses emergentes colocavam um sinal positivo.
O segundo elemento dessa euforia era a ideia de que a Rússia, após descartar suas lutas revolucionárias e utópicas, seria um país “normal”, amavelmente acolhido pela comunidade das nações ocidentais. As referências aos escritos de Lenin sobre o imperialismo, sem mencionar os de Trotsky, eram recebidas com risadinhas. A Rússia tinha finalmente caído em si; e ninguém mais levava a sério o “marxismo-leninismo”. Devo acrescentar que encontrei as mesmas concepções entre os acadêmicos ucranianos que encontrei em Kiev.
Em todo caso, essas grandes ilusões – na prosperidade capitalista universal, no florescimento da democracia e na integração pacífica no sistema mundial dominado pelos Estados Unidos – foram totalmente quebradas.
A “terapia de choque” econômica e o colapso de 1998 levaram à falência amplos setores da classe média aspirante. A democracia com a qual a classe média sonhava entrou em colapso em meio ao bombardeio do parlamento russo em outubro de 1993. A restauração capitalista produziu um sistema oligárquico corrupto, com desigualdade social maciça, dominado por um regime bonapartista semiautoritário. E, finalmente, em vez de pacificamente se integrar à comunidade das nações, a Rússia se viu sob implacável pressão militar e econômica de seus “parceiros ocidentais”. As promessas recebidas, relativas à não-expansão da OTAN, revelaram-se inúteis. Todos os esforços feitos pela Rússia para afirmar seus interesses independentes foram recebidos com sanções econômicas e ameaças militares.
Na forma da crise da Ucrânia, a Rússia está enfrentando as consequências trágicas e potencialmente catastróficas da dissolução da União Soviética. Putin está procurando superar essa crise através de medidas reacionárias e politicamente falidas – isto é, através de uma guerra que visa fortalecer as fronteiras do Estado nacional russo. É significativo que o discurso de guerra de Putin tenha começado com uma denúncia de Lenin, a Revolução de Outubro e a criação da URSS. Ironicamente, em seu ódio ao marxismo e ao bolchevismo, os pontos de vista de Putin estão completamente alinhados com seus inimigos da OTAN.
Rejeitando a política externa da União Soviética, Putin está tentando ressuscitar a política externa do czar Nicolau e apelando por apoio à “Mãe Rússia”. Com base nessa política pateticamente retrógrada, ele produziu uma versão moderna da desastrosa Guerra Russo-Japonesa de 1904, que minou fatalmente o regime Romanov e colocou a Rússia no caminho da revolução. Há razões para acreditar que esta guerra levará a um resultado semelhante, mas não será o tipo de revolução que o governo Biden acolherá. A classe operária russa é uma força social enormemente poderosa, com uma extraordinária e historicamente inigualável tradição de luta revolucionária. Décadas de repressão política – cuja expressão mais criminosa foi o extermínio físico da intelligentsia marxista revolucionária e da vanguarda da classe trabalhadora durante o terror stalinista – separaram a classe trabalhadora dessa tradição. Mas esta crise completa o descrédito do regime pós-soviético e criará as condições para a renovação do internacionalismo socialista na Rússia.
Não é apenas na Rússia que as ilusões pós-1991 foram quebradas. Dentro dos Estados Unidos e em todos os países capitalistas, a intersecção de crises sociais, econômicas e políticas produzirá um ressurgimento da oposição ao capitalismo e às políticas imprudentes do imperialismo que levaram o mundo ao limiar da guerra nuclear. É claro que o resultado que eu prevejo não está garantido, mas sou incapaz de imaginar outra solução progressista para a crise mundial crescente.
Não seria possível demandar que a discussão no seminário online abordasse de forma abrangente todas as complexas questões colocadas pela erupção da guerra Russo-Ucraniana. No entanto, na medida em que reflete as discussões que agora ocorrem nas faculdades em todo o país, tipifica a atitude perigosamente acrítica e complacente em relação a uma crise que ameaça se transformar em catástrofe. Espero que a análise apresentada pelo World Socialist Web Site encoraje os estudiosos sérios a se manifestar contra essa perigosa escalada e a usar todos os meios disponíveis para elevar a opinião pública, contrapondo o conhecimento histórico à propaganda chauvinista e belicista.
Espero que esta carta responda mais do que adequadamente ao seu pedido de opinião sobre o seminário online.
Com os melhores cumprimentos,
David North