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Perspectivas

A eleição de Marcos nas Filipinas e o canto de morte da democracia

Publicado originalmente em 11 de maio de 2022

Há 36 anos, em fevereiro de 1986, milhões de filipinos se reuniram em Edsa, a principal via de Manila, desafiando abertamente o brutal regime de Ferdinand e Imelda Marcos. Com imensa coragem, eles resistiram diante dos tanques e do poder militar da ditadura, que até recentemente disparava com armas de fogo contra manifestantes. Eles exigiam a nomeação de Corazon Aquino, eleito democraticamente como presidente, e a expulsão dos odiados Marcos, que governavam o país em uma ditadura militar por catorze anos. Um setor dos militares abandonou o presidente, e Washington retirou seu apoio. Os Marcos fugiram do país. O evento em Edsa ficou conhecido como Poder Popular e era motivo de um imenso orgulho.

Na segunda-feira, Ferdinand Marcos Jr. foi eleito presidente das Filipinas, derrotando seu concorrente mais próximo por mais de 12 milhões de votos. Ele protagonizou uma campanha dedicada a reabilitar o legado ditatorial de seus pais, retratando o regime de lei marcial como uma “era dourada” na história das Filipinas. Atrás de si, arrasta forças abertamente fascistas, incluindo um partido político dirigido por ex-chefes de polícia dedicados à criação de bandos de vigilantes anticomunistas financiados pelo governo. Outro, a Juventude Duterte, é abertamente inspirada na organização da Juventude Hitleriana – com uniformes pretos, braçadeiras vermelhas e uma saudação fascista – e comprometida com a repressão violenta de supostos comunistas.

Ferdinand “Bongbong” Marcos Jr. em um comício em Quezon City, Filipinas, em 13 de abril de 2022. (AP Photo/Aaron Favila) [AP Photo/Aaron Favila]

Milhões de filipinos – muitos dos quais votaram no candidato da oposição liberal, Leni Robredo – observaram os resultados da eleição com um sentimento de vergonha nacional misturado à perplexidade: Como foi possível que o odiado legado dos Marcos tenha sido abraçado por uma aparente maioria de seus compatriotas?

O resultado é um produto do impacto do imperialismo americano na história do país, que se manifestou de forma aguda sob as condições da atual crise global da dominação capitalista.

O último século e meio da história das Filipinas foi uma confirmação impressionante, porém trágica, da Teoria da Revolução Permanente de Leon Trotsky. Trotsky argumentou que em países de desenvolvimento capitalista atrasado, a classe capitalista seria incapaz de desempenhar um papel progressista em uma revolução democrática. As tarefas desta revolução incluíam a derrubada do domínio colonial, a unificação nacional e a solução para o problema agrário. A classe capitalista, ligada aos mercados imperialistas e aos latifúndios, e hostil à classe trabalhadora em expansão, se voltaria contra a revolução e trairia os trabalhadores e camponeses. A luta pela democracia exigiria uma luta contra os capitalistas, e para travar tal luta seriam necessárias medidas socialistas. O sucesso de qualquer revolução socialista dependeria de sua propagação internacional.

A primeira revolução democrática na Ásia foi realizada nas Filipinas, que derrubou o colonialismo espanhol e estabeleceu a efêmera República Filipina, com sua própria constituição, um amplo conjunto de direitos e uma declaração de independência. Em várias etapas do desenvolvimento dessa revolução, a classe capitalista se voltou contra ela, assassinando seus líderes e vendendo a luta primeiro aos espanhóis e depois aos americanos.

A jovem República Filipina foi esmagada sob as botas do imperialismo americano em uma brutal guerra de conquista que matou mais de 200.000 filipinos. Os órgãos da democracia filipina, que incluíam o sufrágio de massas e a educação pública, foram extintos junto ao derramamento de sangue. O imperialismo americano alegou que os filipinos não estavam prontos para a democracia e precisavam da “assimilação benevolente” dos Estados Unidos. A elite filipina rapidamente fez as pazes com seus novos governantes, enquanto as massas filipinas lutaram com unhas e dentes em uma guerra perdida que durou até 1907.

A revolução e sua defesa plantaram raízes profundas de uma tradição democrática nas massas filipinas, sobretudo um compromisso com a liberdade de expressão e uma crença na igualdade. O espírito dessa tradição, no entanto, jamais foi posto em papel. Os americanos estabilizaram a dominação de seus aliados da elite filipina através da elaboração de uma constituição que consagrou a ditadura militar no código legal e excluiu o julgamento por júri.

As Filipinas pós-coloniais eram um país de duas democracias – a da tradição democrática das massas e a das instituições parlamentares formais da elite – sem qualquer conexão orgânica e histórica entre ambas. A tradição de massas se expressou na rebelião camponesa Huk do início dos anos 1950, que exigia uma reforma agrária e uma solução para o problema do campo. As instituições formais eram o aparelho de governo da elite, voltado para a preservação das propriedades existentes. Washington estabilizou repetidamente as instituições formais, esmagando o movimento de massas.

As instituições da democracia formal nas Filipinas não surgiram das grandes lutas de massas, mas em oposição a elas. A vitrine da “democracia” americana na Ásia exibia somente produtos artificiais.

Quando os camponeses do centro de Luzon se revoltaram, Edward Lansdale, chefe da CIA na Ásia, supervisionou a condução da guerra, tanto militar quanto psicológica, para esmagar a rebelião. Ele escolheu a dedo Ramon Magsaysay para concorrer à presidência e coordenou efetivamente sua eleição. Magsaysays presidiu o sangrento processo de derrota da revolta camponesa.

As massas estavam lutando para realizar as tarefas da revolução. A classe capitalista se apoiou constantemente no imperialismo americano e nos latifúndios. Aqui, o stalinismo desempenhou um papel crítico. A serviço dos interesses nacionais privilegiados da burocracia de Moscou, o stalinismo instruiu os partidos comunistas de todo o mundo que parte da classe capitalista desempenharia um papel progressista na revolução democrática, e a tarefa dos trabalhadores era aliar-se a este setor. Com base nesse programa, eles trocaram o apoio da classe trabalhadora por relações políticas e comerciais favoráveis com os capitalistas ao redor do mundo. Essa foi uma traição fundamental da classe trabalhadora.

O Partido Komunista ng Pilipinas (PKP) foi fundado em 1930 com base no programa do stalinismo. O PKP, seguindo a política de Frente Popular da burocracia de Moscou, instruiu trabalhadores e camponeses filipinos a apoiarem o domínio colonial americano nas Filipinas porque Washington era considerado um aliado na luta antifascista. Foi sob instruções do PKP que o exército camponês Huk, que lutou corajosamente contra a ocupação japonesa, entregou suas armas aos militares americanos quando o general MacArthur retornou às Filipinas. Muitos dos camponeses desarmados foram presos, alguns foram executados e enterrados em valas comuns. A elite que havia colaborado com a ocupação japonesa foi reabilitada, suas propriedades foram tomadas dos camponeses e devolvidas a eles.

Ferdinand Marcos impôs a lei marcial em 1972, citando as cláusulas escritas na constituição elaborada pelos Estados Unidos, para esmagar o imenso crescimento das lutas sociais entre trabalhadores e jovens que ameaçavam o domínio capitalista. Houve um consenso de quase todos os setores da burguesia filipina, incluindo os opositores de Marcos, de que a ditadura era necessária. O presidente americano Richard Nixon informou Marcos antecipadamente de que os EUA apoiariam – “e até o limite” – sua imposição de um regime militar. Quando Marcos declarou a lei marcial, Washington triplicou sua ajuda militar para as Filipinas.

O caráter do regime da lei marcial, financiado e treinado por Washington, ficou gravado na memória de uma geração anterior: corpos torturados eram rotineiramente jogados pelos militares em terrenos baldios ao redor de Metro Manila, bilhões de dólares foram roubados dos cofres do Estado, 70.000 pessoas foram presas sem mandado, milhares de pais ou mães desapareceram, saíram um dia e nunca voltaram para casa.

Quando o movimento de massas do Poder Popular derrubou o odiado tirano em fevereiro de 1986, Washington interveio no último momento. A Casa Branca de Reagan reconheceu que se não ajudasse na remoção de Marcos, perderia o controle da antiga colônia de Washington. Reagan informou Marcos de que era hora de partir, e a família Marcos, com seus bilhões roubados intactos nos bancos suíços, foi levada de helicóptero do palácio presidencial para um exílio confortável no Havaí.

Esse foi um ponto de viragem na história das Filipinas. Era uma situação revolucionária. Nada tinha ainda sido estabilizado. Greves de massas irromperam por todo o país. Foram os stalinistas do Partido Comunista das Filipinas (CPP), que romperam com o PKP nos anos 1960 para seguir a linha de Mao Tsé-Tung, que cultivaram ilusões no governo de Corazón Aquino e estabilizaram a dominação política da elite. No Primeiro de Maio de 1986, José Maria Sison, líder do CPP, subiu ao palco diante de milhares de trabalhadores ao lado da presidente Aquino e de Fidel Ramos, comandante do Exército de Aquino e arquiteto chefe do regime de tortura da ditadura Marcos, enquanto a banda tocava “A Internacional”.

Aquino, dona da maior plantação de açúcar do país, não tinha a menor intenção de implementar uma verdadeira reforma agrária. Quando os camponeses se manifestaram no início de 1987, apelando à presidente pela reforma agrária, ela mandou seus militares abrir fogo sobre os manifestantes, matando um monte deles.

Nenhuma reforma substantiva foi conquistada com a restauração das instituições da democracia formal. O país se abriu para as primeiras ondas da globalização capitalista. Os salários reais caíram. Dentro de uma década, buscar emprego no exterior tornou-se uma solução necessária para a classe trabalhadora, a fim de sustentar suas famílias. Famílias foram desintegradas e as condições de vida pioraram.

Ao longo de três décadas, a podridão no coração da democracia liberal tornou-se cada vez mais aparente. Os stalinistas estabilizaram repetidamente o governo capitalista, promovendo ilusões em uma ou outra facção da elite dominante. Em 2016 eles deram um apoio entusiasmado ao fascistoide Rodrigo Duterte, alegando que sua política vulgar, instável e brutal era de esquerda.

A eleição de Ferdinand Marcos Jr. é a culminação desse processo e um marco dentro dos acontecimentos globais. Em todo o mundo vemos o crescimento de forças de extrema-direita e autoritárias e o apodrecimento do liberalismo democrático em uma situação de imensa crise social.

Trata-se de um processo global interconectado. A eleição de Rodrigo Duterte em maio de 2016 precedeu a de Donald Trump por meio ano; ambos os sujeitos demonstraram um desprezo vulgar pelas normas básicas da democracia e aspiraram uma posição de tirano. Um ano antes da eleição de Marcos Jr., Trump tentou permanecer no poder por meio de um golpe fascista. No início deste ano, Joe Biden declarou que não tinha certeza se as instituições da democracia americana sobreviveriam à década.

Os partidos do liberalismo democrático foram cruciais para esses desenvolvimentos. Quando as forças abertamente fascistas batem na porta da democracia, o liberalismo estende um tapete de boas-vindas. Foi o Partido Liberal, do qual Robredo é presidente, que fez de Duterte uma figura política nacional nas Filipinas.

Os últimos seis anos da presidência de Rodrigo Duterte foram anos de reação violenta, marcados sobretudo pelo assassinato de quase 30.000 pobres filipinos em nome de uma guerra contra as drogas. Robredo anunciou em sua campanha que pretendia continuar a política de drogas de Duterte, mas que ela não se concentraria exclusivamente em matar. Ela também declarou sua intenção de continuar a força-tarefa anticomunista criada por Duterte, um aparelho de macartismo assassino. No final, ela prometeu uma versão moderada, mais polida, das políticas repressivas de seu antecessor.

Os democratas nos Estados Unidos fizeram todo o possível para normalizar as relações com os conspiradores republicanos que participaram da tentativa de golpe fascista de 6 de janeiro de 2021. Donald Trump, o homem que tentou derrubar a democracia americana, percorre o país fazendo discursos e o governo Biden não faz nada. Os democratas estão prontos para enfrentar uma derrota devastadora nas eleições de 2022 e ainda assim não farão nada para despertar uma base eleitoral de massas.

Desenvolvimentos similares ocorrem na França, no Brasil, no Reino Unido, na Índia e na Alemanha. O motor desse processo global é a crise avançada do capitalismo mundial. A inflação e a guerra fizeram disparar o preço dos bens essenciais. Mais de 20 milhões de pessoas morreram na pandemia porque seus governos, determinados a defender os lucros, recusaram-se a tomar as medidas básicas de saúde pública necessárias para deter a propagação do vírus. As condições de vida se tornaram insuportáveis para a maioria da população mundial.

A mobilização do apoio das massas exige falar diretamente sobre esses problemas sociais, para os quais os democratas liberais não têm solução. Nos Estados Unidos, eles só falam de raça, gênero e da guerra na Ucrânia; nas Filipinas, sobre corrupção.

É isso que alimenta a ascensão da extrema-direita. As mentiras populistas de Marcos, suas promessas de um retorno à era dourada, reverberaram entre a classe média baixa e os pobres dependentes do dinheiro de parentes fora do país – feirantes, donos de lojas de esquina – porque não viram uma alternativa que abordasse seriamente as condições horríveis que enfrentam. Marcos lhes proporcionou um bode expiatório, a democracia liberal, e uma saída, a lei marcial.

Os partidos liberais da democracia capitalista não têm mais nada de progressivo a oferecer, nem mesmo a defesa dos ganhos do passado. O direito ao aborto está sendo suprimido nos Estados Unidos; outros direitos serão derrubados em breve.

Estamos testemunhando o suspiro de morte da democracia. A desigualdade social esvaziou-a de tal forma que a igualdade formal tornou-se insustentável. A eleição de Marcos é um marco nesse processo global. Ele representa a reação nua e crua, prometendo ditadura e atraindo atrás de si fascistas e a canalha política.

Os direitos democráticos só podem ser defendidos verdadeiramente através de um programa que se dirige ao câncer social que corrói suas fundações. A luta para defender a democracia deve se tornar a luta pelo socialismo.

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