O início do século XXI testemunhou um ressurgimento do nacionalismo populista burguês em grande parte da América Latina. De certa forma, este desenvolvimento do nacionalismo compartilha de características comuns com o que foi visto no século passado em figuras como Juan Domingo Perón na Argentina, Getúlio Vargas no Brasil ou de Lazaro Cárdenas no México.
As eleições do presidente Hugo Chávez na Venezuela – que está caminhando para um mandato vitalício – e Evo Morales na Bolívia, o retorno do ex-líder sandinista Daniel Ortega para a presidência da Nicarágua, bem como a eleição de Rafael Correa no Equador, foram todas acompanhadas da retórica nacionalista para reverter o brutal e sangrento período de desagregação das economias latino-americanas das últimas décadas. Alguns dizem que a América Latina está realmente se movendo para a esquerda, para um novo tipo de socialismo, no entanto, em cada um destes países o domínio do capital permanece intacto.
Hugo Chávez, em particular, apresentou este movimento como uma continuação da velha cruzada de Simon Bolívar, El Libertador, quem há dois séculos dizia tentar libertar a América Latina das garras da dominação imperialista, mas que na realidade lançou as bases para a dominação imperialista durante séculos. Chávez chegou a ponto de entregar réplicas da espada de Bolívar para Morales, Correa e Ortega durante suas respectivas posses.
Certos setores da esquerda latino-americana que se especializaram em semear ilusões em tais lideranças e acompanharam a Chávez, envolvendo-se também no manto de Bolívar e na perspectiva do presidente venezuelano de um retorno continental da “Revolução Bolivariana”.
Mas, quem foi Bolívar, e qual foi realmente sua herança?
Marx e a biografia pouco heroica de Simon Bolívar
Em artigo escrito em 1858, intitulado Bolívar y Ponte, Marx relata as falsas façanhas de El Libertador durante as guerras contra a Espanha. Marx apresenta Bolívar como um falsário, desertor, conspirador, mentiroso, covarde, saqueador, etc.
Marx tinha clareza do papel de classe desempenhado por Bolívar nestas lutas, mostrando-o como um típico representante de setores da tradicional burguesia criolla local: “Bolívar y Ponte, Simon, o ‘Libertador’ da Colômbia nasceu... em Caracas (...) Descendia de uma das famílias mantuanas, que, na época da dominação espanhola, constituíam a nobreza criolla na Venezuela”.
Para Marx, Bolívar, ao final dos conflitos contra a Espanha, com a vitória dos exércitos nacionalistas, foi transformado em um falso símbolo de toda a luta anti-imperialista latino-americana, fundando, o assim chamado “bolivarismo”, o qual consiste basicamente em proclamar a libertação nacional dos povos oprimidos contra o imperialismo sem, no entanto, alterar fundamentalmente as relações entre as classes sociais, quer dizer, sem alterar a estrutura socioeconômica.
Do ponto de vista de Marx a “revolução” Hispano-Americana conduzida por Bolívar teria sido, no melhor dos casos, uma imitação pálida das revoluções burguesas europeias, nunca indo além de um esforço para uma maior liberdade de comércio e de melhores condições para explorar os trabalhadores latino-americanos. Marx nunca glorificou Bolívar simplesmente porque nunca percebeu em sua trajetória político-militar uma só ação que pudesse indicar, para a classe trabalhadora latino-americana e mundial, qualquer progresso na luta pela liberdade humana. Ao contrário, Marx mostrava claramente a natureza e os limites de classe da assim chamada “Revolução Bolivariana”.
A emancipação dos negros escravos realizada por Bolívar, por exemplo, não estava relacionada a uma suposta consciência humanista do “herói”, mas ao medo instalado na burguesia criolla de uma possível revolução popular, após a independência, contra a própria classe dominante local. Para evitar tal suposta revolta popular, Bolívar inventou uma solução bastante original e que, por obra do destino, ficou registrada pelo punho do próprio “Libertador” numa carta endereçada a seu principal general, Santander, em 20 de abril de 1820.
Nesta carta, Bolívar esclarece que a liberdade concedida aos negros que se alistassem no exército nacional não estaria ligada à necessidade de aumento do efetivo do exército, mas estaria sim diretamente ligada à necessidade de diminuição de seu perigoso número, ou, em outras palavras, do perigo de uma possível “Haitinização” revolucionária de todo o continente. O recrutamento dos negros às fileiras do seu exército servia assim para eliminá-los em combate.
Como proclamou Bolívar: “De acordo com o artigo 3˚ da Constituição: ‘todos os escravos úteis para os serviços das armas serão destinados ao exército.’”
“Salvo engano”, ele continua, “isto não é declarar a liberdade dos escravos e sim usar a faculdade que me dá a lei (...) Não será útil que estes adquiram seus direitos no campo de batalha e que diminua seu perigoso número por um meio poderoso e legítimo?” (Bellotto & Correa.Bolívar. Ática: SP, 1983, p.50)
Uma das partes mais interessantes do artigo de Marx sobre o “Libertador” é quando destaca o quanto o exército rebelde estava dependente do apoio externo, em especial do imperialismo industrial britânico e das milícias mercenárias oriundas da Europa, as quais, segundo Marx, foram decisivas nas lutas vitoriosas de libertação de Nova Granada (atuais Venezuela, Colômbia e Equador). Como escreve Marx: “[Em 1818] chegou da Inglaterra uma forte ajuda sob a forma de homens, navios e munições, e oficiais ingleses, franceses, alemães e poloneses afluíram de toda parte para Angostura... as tropas estrangeiras, compostas fundamentalmente por ingleses, decidiram o destino de Nova Granada... em 12 de agosto Bolívar entrou triunfalmente em Bogotá.”
Como podemos perceber, Bolívar livrou a América Latina do já retrógrado império espanhol apenas para pô-la, então, sob o jugo do imperialismo industrial britânico e posteriormente sob aquele do imperialismo do americano.
Enfim, Marx tinha tão pouca admiração por Bolívar que o acusa de ser uma paródia de Napoleão Bonaparte, um novo Bonaparte na América. Talvez até a paródia da paródia da paródia: o compara ao ditador golpista do Haiti, Soulouque, que já era a caricatura de Luís Napoleão III da França, o Bonaparte paródia do Bonaparte I. Como escreveu em Herr Vogt: “A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando grandes homens. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simon Bolívar”. E Marx, em carta de 14 de fevereiro de 1858, comenta com Engels: “Teria sido passar dos limites querer apresentar Napoleão I como o canalha dos mais covardes, brutal e miserável. Bolívar é o verdadeiro Soulouque”.
Hugo Chávez: o Bolívar do século XXI
No entanto, mesmo o caráter covarde, traidor e mentiroso com que Marx pintou a figura de Bolívar parece não ter sido suficiente para que, no século XX, a dita esquerda “marxista” latino-americana abandonasse de vez por todas a idolatria a este pseudo-herói. Ao contrário, essa esquerda o transformou em uma referência para a classe trabalhadora latino-americana, passando a inventar o “Bolivarismo” como um símbolo de toda uma suposta luta anti-imperialista latino-americana.
Como dissemos acima, neste início do século XXI, o exemplo mais claro de sobrevivência e ressurgimento do Bolivarismo Bonapartista latino-americano está representado na figura do Coronel Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Chávez, militar de carreira, protagonizou um golpe militar fracassado na Venezuela em 1992, sendo preso e libertado dois anos depois. Em 1998 foi eleito, pelo voto direto, presidente da República. Em 1999 criou uma nova Constituição mudando o nome do país para “República Bolivariana da Venezuela”.
Desde então, ano após ano, Chávez vem aumentando seu poder. Em 2005, graças ao boicote às eleições promovido pelos partidos de oposição, ganhou a maioria total na Assembleia Nacional. Agora, reeleito presidente em 2006, com 63 % dos votos, apesar de seu controle de 100% do Parlamento, aprovou no último dia 31 de janeiro a chamada “Lei Habilitante” que lhe concede poderes extraordinários, incluindo o direito de governar por decretos durante 18 meses. Várias vezes, já ameaçou a oposição com uma reforma constitucional que lhe permitiria infinitas reeleições, se perpetuando no poder de forma vitalícia.
Ao ser eleito pela primeira vez em 1998, Chávez prometeu acabar com a miséria que assola a maioria absoluta do povo venezuelano. Não obstante, de lá para cá, os pauperizados diminuíram somente de forma relativa no país: a pobreza, em geral, diminuiu de 49,9% da população em 1999 para 37,1% em 2005, e a chamada miséria absoluta passou de 21,7% para 15,9%. No entanto, esta mudança se deve à implementação de programas assistencialistas promovidos por Chávez nestes últimos anos e não a um aumento significativo da renda dos trabalhadores. De fato, os níveis de desemprego em 2005 são maiores do que quando assumiu o governo em fevereiro de 1999 (11,3% em 1999 contra 12,4% em 2005). De qualquer forma, pelo menos 53% da população total do país continua vivendo ou na pobreza ou na miséria absoluta, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Além disso, o relativo sucesso dos programas assistencialistas de Chávez deve-se em grande parte às riquezas naturais do subsolo venezuelano, sobretudo o petróleo. Por isso, o seu governo vem realizando processos de renegociação dos contratos com as corporações estrangeiras de energia, apresentando estas negociações como “nacionalizações”. Desta forma, a empresa petroleira PDVSA – Petróleos de Venezuela AS – passou a ter 51% das ações da empresa sob controle do estado, ficando os outros 49% sob controle do capital privado (predominantemente estrangeiro). De acordo com presidente bolivarista, o maior inimigo do povo da Venezuela seria o imperialismo americano, porém, este inimigo, ao mesmo tempo, se constitui no maior parceiro comercial do governo Chávez, sendo o principal comprador do petróleo venezuelano.
Chávez e sua dependência do petróleo
Segundo dados da CEPAL para 2005-2006, mais da metade das exportações da Venezuela, em especial de petróleo cru, tem como destino o mercado americano. O mesmo percentual é válido para a importação de produtos manufaturados: pelo menos metade do que a Venezuela importa de produtos acabados vem do inimigo/parceiro Estados Unidos.
Na verdade, o atual crescimento econômico da Venezuela está baseado na enorme demanda mundial por petróleo (o país é o quinto maior produtor mundial), do qual os EUA é seu maior consumidor. Em 1999, primeiro ano do governo Chávez, o país produzia menos de 2,8 milhões de barris/dia. Já em 2005, segundo dados da própria PDVSA, a produção diária atingiu a casa dos 3 milhões e trezentos mil barris/dia.
O que fica claro é que o bonapartismo chavista repousa totalmente na altíssima demanda mundial por petróleo. O aumento em torno de 20% da produção entre 1999 e 2005 ocorreu sob as circunstâncias de um aumento substancial do preço do barril no mercado mundial. Em 1999 o barril custava 25 dólares, em 2005 atingiu a casa dos 55 dólares. Em 2006, com a especulação em torno da invasão americana do Irã (quarto maior produtor), o barril de petróleo ultrapassou a casa dos 70 dólares, preço bem próximo daquele recorde de 1979 quando da revolução iraniana. Mesmo agora, no início de 2007, passados os boatos de possíveis novas guerras americanas, o preço do barril de petróleo continua acima dos 50 dólares (CEPAL).
Chávez e sua “revolução bolivariana” estão inteiramente amparados na altíssima demanda mundial por combustíveis fósseis, impulsionada em especial pelas guerras americanas no Oriente Médio. Neste sentido, George W. Bush não é na realidade o maior inimigo de Chávez, como afirma este, mas, exatamente o contrário: é graças a esta política militarista de Bush que Chávez consegue arrecadar dividendos fantásticos para a economia do país. Bush é, na verdade, se não o melhor amigo do seu governo, pelo menos seu maior parceiro nos negócios, pois, sem esta contraditória parceria, Chávez certamente não teria como implantar o enorme programa assistencialista de redução da pobreza e da miséria absoluta no país levado a cabo nos últimos anos. Este programa, no entanto, não significa nenhum desenvolvimento real da economia venezuelana como um todo, mas sim, um dos pilares fundamentais do bonapartismo de Chávez.
Para mostrarmos ainda mais claramente a dependência de Chávez do petróleo e da política belicista de Bush, basta comparar os dados da economia venezuelana desde a primeira posse de Hugo Chávez como presidente do país até os dias atuais. Nos anos de 1999, 2002 e 2003, o PIB da Venezuela teve uma queda monstruosa de cerca de 24%. Nos anos de 2004 e 2005, contudo, anos de alta produção petrolífera e de preços internacionais favoráveis, o PIB venezuelano cresceu em índices extraordinários que chegaram a 27,2%. Neste mesmo período, como já indicamos, o preço do barril de petróleo saltaou de 25 dólares para mais de 50 dólares. Porém, na média dos 7 anos de “Revolução Bolivariana” (1999-2005), descontando-se as altas e baixas do ciclo econômico, o PIB venezuelano cresceu a uma taxa média de medíocres 1,5% anuais. Em 1999, os rendimentos do governo com o petróleo alcançaram a cifra de 3.947.429 milhões de bolívares. Em 2005 estes rendimentos pularam para 40.703.315 milhões de bolívares, um aumento real de cerca de 1.000% (CEPAL, Estudio Económico 2005-2006).
Chávez não tem a intenção de romper com o imperialismo e com o domínio dos bancos sobre a economia do país. Para percebermos isto, basta observar a conta dos juros da dívida pública que o país paga anualmente aos banqueiros. Em 1999, Chávez pagou aos credores do país a cifra de 1.647.017 milhões de bolívares; já nos anos de 2003, 2004 e 2005, pagou a monstruosa cifra de 23.017.422 milhões de bolívares (um aumento de cerca de 1.400%).
Para termos uma ideia mais clara do compromisso de Chávez tanto com a burguesia imperialista quanto com parte de uma nova burguesia criolla nacional, basta darmos uma olhada nas cifras pagas aos credores financeiros pelos governos que o precederam e as posteriores. Entre 1990 e 1998, por exemplo, o Estado venezuelano pagou 4.863.869 milhões de bolívares em juros da dívida pública. Esta cifra paga ao longo de 9 anos é igual à cifra paga por Chávez em apenas em um único ano (CEPAL).
O “socialismo Bolivarista do século XXI” de Chávez é um socialismo que está totalmente adaptado às necessidades do capitalismo mundial. As corporações multinacionais, apesar das tão alardeadas “nacionalizações”, continuam a operar livremente no país e a ter seus lucros garantidos pelo próprio governo venezuelano, como dito no próprio site da estatal petroleira PDVSA: “O Executivo Nacional deixou claro que em caso algum se questiona a presença das empresas em nosso país e que as mesmas obtenham seus respectivos lucros, produto de seus investimentos, mas o que exigimos de maneira irredutível é que esta participação se faça no marco do respeito à nossa lei e à nossa soberania”.
Simon Bolívar, amparado na força do exército e numa suposta libertação das classes oprimidas, foi uma das grandes caricaturas latino-americanas do Bonaparte III do século XIX. Hoje, Chávez – que baseia seu poder econômico e político sobre a classe trabalhadora não em um programa socialista para a transformação da sociedade, mas em uma sustentação assegurada pelo exército e em uma política assistencialista tornada possível graças aos altos preços do petróleo – aparece como o simulacro moderno de Bolívar, ou melhor ainda, como o simulacro do simulacro, o Bonaparte Latino-Americano do século XXI.