As posses dos presidentes da Venezuela e do Equador foram marcadas por frases que faziam referência ao “socialismo” e à “revolução”.
Durante uma cerimônia de cunho quase religioso, realizada dia 10 de janeiro em Caracas, o presidente reeleito da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou os planos para nacionalizar a CANTV, a companhia nacional de telefonia, que foi privatizada em 1991 juntamente com a indústria de energia. Ele também anunciou os planos para aumentar o controle do Estado sobre os campos de petróleo do país.
“Tudo aquilo que foi privatizado, será nacionalizado,” declarou Chávez. “Nós estamos nos dirigindo rumo ao socialismo, e nada nem ninguém poderá nos deter”. Ele continuou: “eu estou realmente no rumo de [Leon] Trostky - da revolução permanente”.
No Equador, Rafael Correa assumiu o poder em 15 de janeiro, numa cerimônia na qual ele anunciou os planos de iniciar uma “revolução radical” e declarou sua adesão ao “novo socialismo”, que está, segundo ele, espalhando-se por toda a região. Ele ameaçou limitar os pagamentos da imensa dívida externa equatoriana e renegociar os contratos estrangeiros de petróleo. Ele também ameaçou fechar a base aérea americana em Manta.
Correa discursou a um público que incluiu 17 chefes de Estado, como Chávez, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da Nicarágua Daniel Ortega (o líder sandinista que tinha tomado posse alguns dias antes), o presidente boliviano Evo Morales e Mahmoud Ahmadinejad, do Irã. Ele declarou que “a revolução dos cidadãos apenas começou, e nada e ninguém pode detê-la”.
Essas duas posses, marcadas por uma retórica radical e “socialista” que condena Washington, combinando com o tour do presidente iraniano à região em busca de aliados, espalhou uma nova onda de coberturas sensacionalistas da imprensa americana sobre a “virada à esquerda” da América Latina.
Vale notar que um dos antecessores de Correa, o ex-coronel do exército equatoriano Lucio Gutierrez, foi considerado como parte dessa virada quando ele chegou ao poder em 2002 com base em uma plataforma bastante semelhante à de Correa. Depois de pouco mais de dois anos no cargo, ele deixou o palácio presidencial por protestos em massa provocados por sua adoção de políticas econômicas de direita, sua aliança com Washington e a corrupção desenfreada de seu regime.
O anúncio de Chávez sobre as “novas nacionalizações” causou uma queda recorde na bolsa de valores de Caracas, onde a CANTV é a maior empresa de capital aberto, assim como derrubou as cotações das empresas venezuelanas em Wall Street.
Sem dúvida, estes eventos marcam uma mudança política que está em curso na América Latina, devastada pela exploração econômica e social realizada por meio do chamado “consenso de Washington”, modelo que conduziu a um profundo processo de privatizações e de políticas de livre-mercado. Essa mudança foi facilitada pelo relativo declínio econômico do capitalismo americano em relação aos seus rivais na Europa e na Ásia, e pela demasiada preocupação de Washington com suas aventuras militares no Oriente Médio.
Isso resultou na derrota dos tradicionais partidos de direita e a vitória de candidatos que se autodenominam ou que foram historicamente identificados com a “esquerda”, não apenas na Venezuela e Equador, mas também na Bolívia, Brasil, Chile, Peru, Uruguai, Argentina e Nicarágua.
Embora esses governos possuam diferentes origens políticas e não concordem de forma absoluta quanto à política, todos eles têm, de uma forma ou de outra, uma retórica populista, denunciando o “neoliberalismo” e criticando a política dos EUA. Eles têm apelado para a revolta popular, expressão da profunda desigualdade social existente em todo o continente. Em muitos casos, estes governos lançaram programas de assistência social extremamente limitados a fim de assegurar o apoio das camadas mais miseráveis da sociedade.
Mas, apesar das declarações de Chávez e Correa de que eles estariam conduzindo a um “socialismo do século XXI”, esses governos têm defendido a propriedade privada capitalista, obedecendo às receitas gerais das instituições financeiras internacionais, e têm mantido intactas as forças militares e repressivas tradicionais dos Estados que lideram.
Em muitos sentidos, as políticas defendidas por Chávez - o antigo tenente-coronel paraquedista e líder golpista - longe de representar o ressurgimento do socialismo, representa um eco de uma forma de nacionalismo econômico e populismo militar associado a figuras como Juan D. Perón, na Argentina, ou, num período posterior, o General Omar Torrijos, no Panamá e o General Juan Velasquez Alvarado, no Peru.
Em relação às novas “nacionalizações” venezuelanas, elas serão muito menos importantes do que aparentam. Apesar de Chávez apresentar sua proposta como o eixo estratégico para a Venezuela, que busca “recuperar sua posse sobre setores estratégicos”, os atuais alvos para a reestatização têm pouca importância relativamente.
A CANTV não é, de forma nenhuma, um monopólio na telefonia. As linhas fixas da companhia abrangem apenas 11% do mercado, enquanto a sua unidade de telefonia móvel, a Movilnet, controla apenas 35% de um mercado muito maior e mais lucrativo.
O maior acionista na CANTV é a empresa americana Verizon Communications Inc., que possui 28,5% de suas ações. Em abril passado, a Verizon iniciou um acordo para vender sua parte ao bilionário mexicano Carlos Slim, proprietário da Telmex, que já acumula uma parcela significativa do mercado de telecomunicações latino-americano.
A Telmex tem enfrentado uma dura competição da espanhola Telefônica, que possui ações minoritárias na CANTV, mas controla sua própria companhia de telefonia celular na Venezuela, a Movistar, que detém 48% do mercado. Especula-se que a nacionalização pode ser, em parte, uma tentativa de sabotar o acordo com Slim e favorecer a Telefônica, ao proteger a companhia espanhola de seu maior rival.
Outro motivo de tomar o controle da CANTV é tirar do mercado a maior companhia de capital aberto do país. As ações da companhia, que são negociadas tanto em Caracas (em bolívares), quanto em Wall Street (em dólares), servem como meio para os financistas venezuelanos enviar capital para fora do país e converterem seus investimentos em fundos estrangeiros, ocasionando a drenagem do capital e a manutenção da taxa de inflação do país em níveis elevados (18%).
Isso também está ocorrendo no setor de energia elétrica, que boa parte está sob o controle de duas companhias estatais. A maior empresa privatizada que poderia ser afetada, a Electricidad de Caracas, é controlada pela norte-americana AES Corp.
Plenas compensações aos acionistas
Representantes do governo deixaram claro que os acionistas da CANTV, assim como de qualquer companhia de energia que for reestatizada, serão inteiramente compensados com os fundos que o Estado acumulou a partir do lucro do petróleo venezuelano. “Os acionistas receberão o preço justo pelo valor de suas ações,” disse o ministro das finanças ao diário venezuelano El Universal.
Quando se trata de um setor estratégico da economia venezuelana - petróleo e gás natural - é claro que o plano do governo Chávez não representa nenhuma forma de “nacionalização”, ao menos não no mesmo sentido daquele praticado até mesmo por governos nacionalistas burgueses num período recente, como Peron na Argentina ou Cárdenas no México.
A Venezuela é o quinto maior exportador de petróleo do mundo, com reservas provadas de 78 bilhões de barris e reservas potenciais gigantescas no campo de petróleo de Orinoco, estimadas em mais de 1,2 trilhões de barris. Os EUA consomem 60% da produção venezuelana de petróleo.
A iniciativa de Chávez no setor petrolífero tem muito em comum com a “nacionalização” proclamada pelo presidente boliviano Evo Morales sobre as reservas de gás do país, ainda que Chávez aparente deixar de lado a cena dramática de enviar tropas aos campos de petróleo. Sua atitude é, essencialmente, uma tentativa de negociar com as companhias multinacionais que operam no campo de Orinoco - ExxonMobil, Conoco, Chevron e a francesa Total - na busca de um maior investimento na produção de petróleo da estatal PDVSA e uma maior partilha dos lucros obtidos por suas associadas.
As gigantes empresas de energia norte-americanas provavelmente concordarão com essas negociações como forma de continuar mantendo um rígido controle - mesmo que com alguma redução - sobre as reservas do petróleo venezuelano, que é uma imensa fonte de lucro.
O ministro do petróleo, Rafael Ramirez, deixou claro na última segunda (15) que o governo não tem nenhuma intenção de fazer mudanças nos contratos existentes de gás natural, assinados pelo próprio governo Chávez em 1999, quando abriu esse setor para a exploração e investimentos privados.
Os mais importantes agentes financeiros de Wall Street receberam as declarações sobre “o socialismo do século XXI” e sobre a “revolução permanente” com desdém.
“Nós continuamos considerando que Chaves não tenha a intenção de eliminar o setor privado em toda a Venezuela; a nacionalização da CANTV e de outras antigas empresas de utilidade pública carrega uma medida simbólica,” afirmou o JP Morgan.
“Nós não consideramos que haja risco da abolição maciça da propriedade privada,” concorda a Merrill Lynch.
O passado recente é esclarecedor. Durante o último ano, o setor privado na Venezuela cresceu a uma taxa de 10,3%, mais que o dobro da taxa de crescimento do setor público. Durante o mesmo período, houve um crescimento insignificante do setor produtivo do país, com a taxa oficial de desemprego permanecendo em aproximadamente 10%.
O maior crescimento ocorreu no setor financeiro na Venezuela, que aproveita uma das mais lucrativas condições de todo o mundo. Como o Financial Times observou, sarcasticamente, em agosto de 2006: “banqueiros enfrentam tradicionalmente esquadrões de fogo em tempos de revolução. Mas na Venezuela, eles estão fazendo uma festa”.
O artigo continua, “mais do que nacionalizar os bancos, a distribuição ‘revolucionária’ do dinheiro do petróleo tem gerado indivíduos ricos que estão, de maneira crescente, fazendo de Caracas um atrativo para banqueiros suíços e outros banqueiros internacionais. E não é apenas os banqueiros privados que estão lucrando na revolução”.
O jornal comentou que em 2005, os ativos dos bancos na Venezuela cresceram cerca de 30%, de US$ 29,3 bilhões para US$ 39,8 bilhões.
Em outras palavras, apesar dos programas de assistência social financiados por Chávez por meio dos elevados rendimentos do petróleo, o comando da economia venezuelana continua firmemente sob o controle do capital financeiro doméstico e internacional.
O crescente caráter bonapartista de seu governo - incluindo sua proposta de uma nova lei que permita que ele governe por decreto durante 18 meses - reflete o imenso abismo social entre ricos e pobres, que continua a dominar a sociedade venezuelana.
As medidas sociais de Chávez, mesmo limitadas, combinadas com sua retórica anti-imperialista, estão provocando uma crescente ira em Washington. Em seu testemunho perante o Congresso, na semana passada, sobre as “ameaças globais,” o diretor da Agência Nacional de Inteligência, John Negroponte, descreveu o governo Chávez como uma ameaça à “democracia”.
Em 2002, Washington respondeu a essa “ameaça” orquestrando um golpe de direita, que foi evitado pela reação em massa organizada pelos trabalhadores e pobres venezuelanos. É certo que a CIA está elaborando planos para outra tentativa de derrubar o governo Chávez.
Não se sabe qual a familiaridade de Hugo Chávez com a teoria da revolução permanente de Trotsky, além das palavras impressas na capa do livro. Mas isso não importa. A perspectiva central da revolução permanente segue correta para a Venezuela e para a América Latina como um todo.
É impossível que esses países se livrem, por si próprios, do jugo do imperialismo, com base numa revolução nacional liderada por qualquer seção da burguesia ou de seus representantes - incluindo oficiais militares radicalizados. Essa tarefa só pode ser realizada por meio da mobilização independente da classe trabalhadora como uma classe internacionalmente revolucionária, mobilização esta que conduza à superação do capitalismo.