Na terça-feira (13 de junho), pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um ex-presidente será acusado em um tribunal por violar a lei criminal federal. A decisão de indiciar Donald Trump reflete profundas divisões dentro da classe dominante e acelera uma crise que abalará os alicerces do establishment político americano nas próximas semanas e próximos meses.
Não faltam motivos políticos e constitucionais para processar Trump. Em seus quatro anos como presidente, ele passou por cima dos direitos democráticos mais básicos da população. Ele liderou uma tentativa de derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura em 6 de janeiro de 2021. Lançou uma iniciativa hitleriana para separar crianças imigrantes de seus pais. Incentivou os apoiadores fascistas a ficar “de prontidão” no período que antecedeu a eleição presidencial de 2020, a fim de intimidar os eleitores. Ele perdoou criminosos de guerra, declarou que “a tortura funciona” e ameaçou explodir locais culturais iranianos, violando o direito internacional e os princípios de Nuremberg.
No entanto, a acusação contra Donald Trump, liderada pelo Partido Democrata, não trata de nenhum desses crimes. Apesar de Trump e seus principais cúmplices nunca terem sido punidos por seus ataques aos direitos da população, a acusação do Departamento de Justiça contra Trump se baseia exclusivamente nas suas transgressões contra o aparato de segurança nacional.
A acusação se concentra na retenção, feita por Trump, de segredos de Estado relacionados aos planos de guerra do imperialismo norte-americano. Entre os documentos que a acusação afirma terem sido retidos por Trump após deixar o cargo estão aqueles que detalham as capacidades nucleares dos EUA e de seus inimigos, bem como planos de ataque contra vários países e contingências de guerra. O Estado guarda esses documentos como “ultrassecretos” porque não pode deixar que cheguem ao conhecimento da população.
Para salvaguardar seus planos de guerra secretos, a acusação do governo Biden se apoia quase que inteiramente na Lei de Espionagem de 1917 como fundamento legal.
Nada de progressista pode vir de um processo contra Trump com base na Lei de Espionagem. Há mais de um século, a Lei de Espionagem tem servido como o instrumento jurídico mais afiado na oficina da reação estatal, usado com o objetivo de suprimir a oposição à guerra imperialista.
A Lei de Espionagem, baseada explicitamente na Lei do Estrangeiro e de Sedição de 1798, surgiu na adolescência sangrenta do imperialismo americano, quando ele se deparou com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa.
O presidente Woodrow Wilson exigiu pela primeira vez a aprovação dessa lei em seu discurso sobre o Estado da União, em 7 de dezembro de 1915, quando os Estados Unidos ainda estavam formalmente neutros no turbilhão imperialista para o qual eram arrastados.
Denunciando aqueles “que lançaram o veneno da deslealdade nas artérias de nossa vida nacional”, Wilson exigiu que o Congresso “promulgue tais leis o mais rápido possível” para “fazer nada menos do que salvar a honra e o orgulho da nação”. Referindo-se ao crescimento das greves e à crescente popularidade do socialismo, especialmente entre os trabalhadores imigrantes, ele disse: “Essas criaturas de paixões, deslealdade e anarquia devem ser esmagadas. (...) A mão de nosso poder deve se fechar sobre elas imediatamente”.
O discurso de Wilson deu o tom para os debates em torno das duas ações mais importantes e inter-relacionadas do Congresso em 1917: a declaração de guerra contra a Alemanha e a Lei de Espionagem.
Em seu discurso formal ao Congresso solicitando uma declaração de guerra, Wilson culpou a intriga alemã pela dissidência interna: “Desde o início da presente guerra, a Alemanha encheu nossas ingênuas comunidades e até mesmo nossos escritórios do governo com espiões, e armou intrigas criminosas por toda parte contra nossa unidade nacional de pensamento, nossa paz interna e externa, nossas indústrias e nosso comércio”. Novamente ele exigiu a rápida aprovação de um projeto de lei para proteger os planos de guerra do Estado e esmagar a dissidência. Esse projeto de lei foi apresentado no início de abril, aprovado na Câmara por 261 votos a 109 em 4 de maio, aprovado no Senado por 80 votos a 8 em 14 de maio e assinado como lei por Wilson em 15 de junho.
Os debates e a aprovação da Lei de Espionagem coincidiram com as mudanças revolucionárias que se desenvolviam rapidamente na Rússia.
Em fevereiro, o levante revolucionário dos trabalhadores e camponeses russos forçou a queda da dinastia Romanov, e um governo provisório burguês foi estabelecido em seu lugar. Em abril, no mesmo momento em que a Lei de Espionagem era introduzida na Câmara, Lênin retornava à Rússia. Em meados de abril, o sentimento contra a guerra entre os trabalhadores russos explodiu quando uma carta secreta prometendo apoio contínuo à guerra, escrita aos Aliados pelo ministro das Relações Exteriores do Governo Provisório, Pavel Miliukov, foi divulgada ao público.
Washington acompanhou esses acontecimentos com a mais intensa preocupação e atenção, e promulgou a Lei de Espionagem para proteger o Estado da ameaça de revolução e eliminar os obstáculos à guerra imperialista.
Desde que se estabeleceu, a Lei de Espionagem tem servido como amparo legal para o enorme aparato de segurança nacional que foi erguido no último século por ambos os partidos. Em seu livro Secrecy (Sigilo), o ex-senador Daniel Patrick Moynihan escreveu que, com a aprovação da lei, “A era moderna começou”. Ele continuou:
Três novas instituições haviam entrado na vida americana: Conspiração, Lealdade e Sigilo. Cada uma delas tinha seu antecedente, mas agora com uma diferença. Elas haviam se institucionalizado; foram criadas burocracias para atendê-las. Com o tempo, haveria um Departamento Federal de Investigação (FBI) para vigiar conspirações domésticas, uma Agência Central de Inteligência (CIA) para monitorar o exterior, um estatuto de espionagem e órgãos de lealdade para eliminar traições ou subversão. E tudo isso seria mantido, e a segurança nacional garantida, por meio de sistemas complexos de sigilo.
Ao longo do século XX, a Lei de Espionagem foi utilizada por governos republicanos e democratas para perpetrar alguns de seus crimes mais atrozes.
Um dos primeiros alvos do governo Wilson foi Eugene V. Debs, o líder revolucionário do Socialist Party (Partido Socialista). Debs foi preso e condenado por violar a Lei de Espionagem após fazer um discurso anti-imperialista em Canton, Ohio, que atacava a guerra e a classe capitalista. “Cada um desses conspiradores aristocráticos e aspirantes a assassinos afirma ser um arquipatriota”, declarou Debs. “Cada um deles insiste que a guerra está sendo travada para tornar o mundo seguro para a democracia. Que farsa! Que podridão! Que pretexto mentiroso!” Debs concorreu à presidência em 1920 estando na prisão, e obteve quase um milhão de votos.
Outros foram presos por se manifestarem contra a Primeira Guerra Mundial, incluindo Emma Goldman, Kate Richards O'Hare, Charles Schenk e Jacob Abrams. Milhares de imigrantes foram presos e deportados por suas posições políticas em uma série de operações que o procurador-geral de Wilson, A. Mitchell Palmer, justificou em parte com base na Lei de Espionagem.
Durante a Segunda Guerra Mundial, depois que o procurador-geral de Franklin Delano Roosevelt, Francis Biddle, condenou 18 membros do Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores – SWP, na sigla em inglês) com base na Lei Smith, por se oporem à guerra, Biddle usou a Lei de Espionagem para impedir que o SWP distribuísse sua publicação, The Militant, pelo correio.
Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a Lei de Espionagem serviu como a espinha dorsal pseudolegal para a caça às bruxas anticomunista da década de 1950, incluindo, mais notoriamente, o assassinato de Ethel e Julius Rosenberg em 19 de junho de 1953, sob alegações fraudulentas de que eles conspiraram para conduzir espionagem atômica para a União Soviética. O governo decidiu acusar os Rosenberg sob a Lei de Espionagem em vez da Lei de Segredos Atômicos, pois a primeira previa pena de morte e a segunda não.
Em 1971, o governo Nixon acusou Daniel Ellsberg de violar a Lei de Espionagem depois de o ex-funcionário da RAND ter fornecido ao New York Times e ao Washington Post os documentos secretos do Pentágono, “Pentagon Papers”, que detalhavam os planos de guerra e os crimes do imperialismo dos EUA no Sudeste Asiático.
Embora as administrações presidenciais do século XX tenham evitado recorrer com tanta frequência à Lei de Espionagem, todo comedimento foi abandonado por Barack Obama, cujo Departamento de Justiça processou mais pessoas com base na Lei de Espionagem do que todos os presidentes anteriores juntos.
Os processos do governo Obama se dirigiram exclusivamente a impedir o vazamento de documentos militares para a imprensa. Entre os processados por Obama estão Jeffrey Alexander Sterling, ex-oficial da CIA que revelou ao jornalista James Risen, do New York Times, detalhes da espionagem secreta da CIA sobre o Irã; Thomas Drake, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (em inglês: National Security Agency - NSA) que tentou denunciar a espionagem da NSA ao Baltimore Sun; Chelsea Manning, que forneceu ao WikiLeaks informações sobre crimes de guerra dos EUA no Iraque e no Afeganistão; John Kiriakou, que vazou informações sobre a tortura ilegal de detentos; Edward Snowden, que forneceu a jornalistas uma grande quantidade de documentos mostrando que a NSA estava empenhada numa vigilância ilegal massiva da população mundial; e Daniel Hale, que vazou documentos militares internos sobre o programa do Pentágono de assassinatos com drones.
A decisão de processar Trump com base na Lei de Espionagem se dá enquanto o governo Biden continua seu esforço para extraditar o editor do WikiLeaks, Julian Assange, da prisão de Belmarsh, em Londres, onde ele está trancado em uma cela há quatro anos. Antes de ser confinado em Belmarsh, Assange foi forçado a se refugiar na embaixada do Equador em Londres, onde ficou praticamente detido por sete anos. O “crime” de Assange é o fato de ele ter publicado provas de crimes de guerra em massa praticados pelo imperialismo americano e seus aliados. Ele pode ser condenado a 170 anos de prisão sob as acusações da Lei de Espionagem.
Trump não é vítima do Estado. Ele é o ex-comandante em chefe das Forças Armadas dos EUA e um conspirador fascista. Mas a acusação de Donald Trump com base na Lei de Espionagem não pode resultar em nada progressista. É exatamente por isso que o Partido Democrata escolheu a Lei de Espionagem como seu meio legal para tentar remover Trump da arena política, e isso está de acordo com sua estratégia de oposição a Trump, baseada em concepções de política externa de direita, desde que ele assumiu o cargo em 2017.
Trump é o principal candidato republicano à presidência, e a perspectiva de seu retorno ao cargo é bastante real e perigosa. Mas a classe dominante sabe que a guerra que os EUA e a OTAN estão escalando contra a Rússia desencadeará uma profunda oposição, e prepara os mecanismos para suprimir e criminalizar o sentimento antiguerra e para esmagar greves que ameacem a produção. Não há dúvidas que a Lei de Espionagem será usada para esse fim.
Para suscitar apoio à sua guerra, a classe dominante está apelando para uma camada extremamente reacionária da classe média alta. O método da classe trabalhadora para se opor a Trump é totalmente diferente do método dos escândalos sexuais e da histeria anti-Rússia. Grandes lutas sociais surgem no horizonte à medida que os trabalhadores enfrentam os custos sociais e econômicos da escalada da guerra. Armada com uma perspectiva política socialista, independente tanto dos democratas quanto dos republicanos, a classe trabalhadora tem o poder de impedir tanto a ditadura fascista quanto a guerra imperialista.
(Publicado originalmente em inglês em 12 de junho de 2023.)