Publicado originalmente em 11 de março de 2024
O sucesso abrangente de Oppenheimer de Christopher Nolan no Oscar possui um genuíno e amplo significado.
O drama biográfico sobre a vida e carreira do físico teórico J. Robert Oppenheimer (1904-1967), conhecido como o “pai da bomba atômica”, ganhou merecidamente sete prêmios importantes no domingo, de melhor filme, diretor, ator principal e coadjuvante, fotografia, edição e trilha sonora.
A escala de alcance do filme é socialmente significativa. O trabalho de Nolan já foi visto por mais de 100 milhões de pessoas em dezenas de países, resultando em cerca de US$1 bilhão em receitas de bilheteira, e arrecadou 333 prêmios de cinema a nível internacional.
Esse nível de realização é quase inédito para um trabalho longo, intelectualmente exigente e artisticamente complexo. O grande sucesso de Oppenheimer entre o público, “surpreendente” e “inesperado” para os comentadores filisteus, reflete mudanças moleculares no pensamento e no sentimento em resposta a décadas de guerra, decadência social e enfraquecimento da democracia, bem como o perigo de conflitos mais vastos e mais catastróficos, incluindo a conflagração nuclear. Esse não é um sentimento politicamente articulado, nem entre os artistas nem na população em geral, mas inquestionavelmente expressa uma ansiedade generalizada e um poderoso descontentamento antissistema.
Ironicamente, no preciso momento em que o filme de Nolan recebia várias homenagens, o público tomou consciência de quão imprudentemente a administração Biden e os seus aliados da OTAN estavam avançando para um confronto com a Rússia que envolve planejamento e preparação para uma catastrófica guerra nuclear. O interesse em Oppenheimer é um dos indicadores de que não existe apoio popular para um desenvolvimento tão monstruoso e sangrento.
A audiência do drama biográfico de três horas continua crescendo. A Nielsen Media Research informou que o filme registrou 821 milhões de minutos de exibição durante sua primeira semana de transmissão em meados de fevereiro no Peacock. A plataforma de streaming anunciou que durante esse período de sete dias, Oppenheimer se tornou o seu filme mais assistido.
O filme de Nolan possui interesse genuinamente amplo. Uma pesquisa YouGov realizada no final de fevereiro estimou que 22% da população americana (o que se traduziria em mais de 50 milhões de adultos) havia visto o filme, e 90% havia “amado” ou “gostado” dele, e, de acordo com os pesquisadores, mais americanos “dizem que deveria ganhar [o prêmio de Melhor Filme] do que qualquer outro indicado”, e o mesmo vale para “quem vai ganhar”. Não existe um conhecimento generalizado sobre Oppenheimer ou sobre os acontecimentos históricos retratados no filme, mas há evidentemente um sentimento profundo de que lidar com este material é essencial e urgente.
O Oscar é uma medida notoriamente pouco confiável da excelência artística ou de visões sociais consistentemente progressivas. A votação expressa as opiniões de uma certa camada social pequeno-burguesa, que pode ser influenciada por uma série de fatores, incluindo políticas raciais e de gênero. Isso apenas torna o resultado da votação dos cerca de 10 mil membros da Academia ainda mais revelador dessa vez. Mais do que qualquer outra coisa, os prêmios confirmam e consolidam um processo de oito meses durante os quais Oppenheimer se tornou um fenômeno cultural e social global.
O caso no domingo foi relativamente moderado. Em primeiro lugar, os participantes foram confrontados com uma multidão furiosa que protestava contra o assassinato em massa por Israel em curso em Gaza, gritando: “Sem Oscar durante o genocídio!” e “Cessar-fogo! Agora!” Os cartazes diziam “Olhos em Rafah”, “Enquanto você assiste, bombas estão caindo”, “Deixe Gaza viver” e “Para que serve a arte que ignora o genocídio?” Os manifestantes bloquearam temporariamente o trânsito, antes de serem afastados pela polícia de Los Angeles, e atrasaram o início da cerimônia de entrega de prêmios. Ao entrar no local, o ator Mark Ruffalo gritou “O protesto palestino encerrou o Oscar esta noite. A humanidade vence!”.
Os participantes que apoiaram o Artists4Ceasefire, um grupo de atores e outros que emitiram uma carta aberta em outubro, usaram distintivos vermelhos na cerimônia do Oscar, apelando à suspensão imediata do massivo massacre. A cantora Billie Eilish, que ganhou o prêmio de melhor canção original, usou o distintivo, junto com seu irmão Finneas, Ruffalo, Mahershala Ali, Ramy Youssef, Ava DuVernay, Riz Ahmed, Swann Arlaud e outros.
No palco, o ator Cillian Murphy, ao receber o prêmio de melhor ator por Oppenheimer, observou que “estamos todos vivendo no mundo de Oppenheimer – eu realmente gostaria de dedicar isso aos pacificadores em todos os lugares”.
O diretor Jonathan Glazer recebeu o prêmio por seu filme Zona de Interesse, sobre o comandante de Auschwitz, e leu uma declaração escrita em nome dele e de seus colegas no palco:
Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente, não para dizer ‘olhem o que eles fizeram naquela época’, mas ‘olhem o que fazemos agora’. Nosso filme mostra como a desumanização leva ao pior cenário, moldando nosso passado e presente.
Neste momento, estamos aqui como pessoas que refutam que o seu judaísmo e o Holocausto sejam sequestrados por uma ocupação que levou muitas pessoas inocentes ao conflito, sejam os israelenses vítimas do 7 de outubro ou [palestinos] do ataque em Gaza” – todas as vítimas desta desumanização, como podemos resistir?
Os comentários de Glazer, muitas vezes citados incorretamente ou fora do contexto, foram alvo de ataques furiosos de elementos pró-sionistas.
No geral, a cerimônia de premiação deixou no espectador a impressão de uma grande tensão social e psicológica reprimida. Os participantes, em geral, ainda mantiveram a guarda alta. Existe uma oposição generalizada, não só a Trump e aos fascistas republicanos (ridicularizados pelo apresentador Jimmy Kimmel), mas também ao belicista Biden. Porém, essa hostilidade ainda não encontrou uma expressão política clara.
Existia menos ostentação e envolvimento pessoal do que o normal. Os acontecimentos contínuos e a presença e centralidade de Oppenheimer e, até certo ponto, de Poor Things (os dois filmes juntos levaram 11 dos 17 prêmios para os quais foram indicados), geralmente atuaram para elevar a cerimônia, embora existiram situações tolas. Depois de todos os comentários, Barbie não ganhou nada (exceto a música de Eilish), também merecidamente.
As questões em Oppenheimer são tão urgentes e obviamente provocaram uma resposta tão forte do público que os fanáticos da política de identidade ficaram relativamente quietos após o evento de domingo, ou sentiram que a atmosfera não era propícia ao seu clamor reacionário. As novas e sujas regras e cotas de “diversidade” de Hollywood estão hoje em vigor, mas no atual momento as produções cinematográficas encontram formas de as contornar, o que pode nem sempre acontecer.
O exemplo do filme de Nolan aponta novamente para o fato da produção cinematográfica ser uma forma de arte vasta, complexa e coletiva, que implica esforços e competências em uma grande produção de centenas e até milhares de pessoas. Produzir uma obra que faça sentido convincente e coerente, trabalhada artisticamente, é uma tarefa imensa.
Obras importantes já está sendo feitas. Os melhores artistas possuem uma compreensão nítida e intuitiva de algumas das grandes questões sociais. A breve sequência envolvendo Harry Truman (Gary Oldman) em Oppenheimer, por exemplo, revela que o presidente americano é um criminoso de guerra brutal de uma maneira que transcende a própria opinião de Nolan. A sua arte ultrapassa a compreensão dos próprios artistas neste momento, embora esta última esteja inquestionavelmente ganhando espaço.
Poderíamos dizer que muitos artistas possuem uma sensação crescente de que o capitalismo é o problema, mas o caráter exato das suas contradições insolúveis e, acima de tudo, a natureza da solução permanecem fora da sua consciência.
Leon Trotsky destacou que a arte encontra as formas necessárias “para os estados de espírito sombrios e vagos, aproxima o pensamento e o sentimento ou os contrasta, enriquece a experiência espiritual do indivíduo e da comunidade, refina o sentimento, torna-o mais flexível, mais responsivo, amplia antecipadamente o volume do pensamento e não pelo método pessoal da experiência acumulada, educa o indivíduo, o grupo social, a classe e a nação.”
Os acontecimentos, criando novos impulsos, estão rompendo a “concha do subconsciente”. Os horrores em Gaza estão inquestionavelmente abrindo muitos olhos, mesmo que os cineastas e outros artistas ainda não formulem a sua compreensão do mundo em termos políticos definidos. Esse é um processo mais complicado e longo. Acima de tudo, depende do desenvolvimento político das massas populares e do surgimento de um movimento na classe trabalhadora que ataque direta e conscientemente os fundamentos do capitalismo. Isso virá. O evento de domingo foi um notável marco.