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Disputa eleitoral na Venezuela desencadeia crise regional

Publicado originalmente em 28 de março de 2024

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano, controlado pelo Presidente Nicolás Maduro, bloqueou na segunda-feira o registro de Corina Yoris como candidata presidencial da oposição apoiada pelos EUA nas eleições marcadas para 28 de julho.

Nicolás Maduro e Jorge Rodriguez, presidente da Assembleia Nacional e negociador-chefe, anunciam os recentes acordos com a oposição apoiada pelos EUA e o governo Biden, 20 de outubro [Photo: @NicolasMaduro]

Yoris, uma professora de filosofia de 80 anos, foi nomeadao no último minuto como representante homônimo de Maria Corina Machado, que foi escolhida como candidata pela Plataforma Unitária da oposição, mas continua desqualificada pelos tribunais.

Na terça-feira, o CNE concedeu uma prorrogação e permitiu à coligação registrar como candidato o ex-embaixador Edmundo González Urrutia. A Plataforma Unitária aceitou essa decisão como provisória “até conseguirmos registrar a nossa candidatura unitária”. Machado disse que irá continuar fazendo campanha para que Yoris seja colocada na chapa, dada a regra de que o candidato pode ser alterado até 10 dias antes da votação, ou seja, 18 de julho.

Machado e o seu partido Vente Venezuela representam a ala mais radical e fascista da coligação. Ela tem sido uma das mais firmes promotoras de operações golpistas apoiadas pelos EUA contra Maduro, incluindo sanções socialmente devastadoras, chamados por um golpe militar e até por uma intervenção militar estrangeira.

Juntamente com figuras como Giorgia Meloni, Javier Milei e Eduardo Bolsonaro, ela é signatária da carta do “Fórum de Madri” lançada pelo partido fascista espanhol Vox, e Machado defende a privatização da empresa petrolífera estatal PDVSA e de outras empresas.

O fato de tal figura estar organizando comícios cada vez maiores, inclusive em áreas profundamente empobrecidas, e das pesquisas de opinião mostrarem que ela derrotaria Maduro não reflete o apoio das massas à sua política de direita, mas sim a vontade popular de aceitar qualquer pessoa com chances de derrotar Maduro e a mudança das atuais condições sociais e econômicas intoleráveis. A eleição do fascista Javier Milei contra o peronismo representou tendências semelhantes na Argentina.

Contudo, as ações do governo Maduro carecem de todo conteúdo progressivo. Ele tem utilizado o CNE apenas como um instrumento nas negociações com o imperialismo norte-americano.

Para dividir a Plataforma Unitária, o CNE aprovou a candidatura de Manuel Rosales, governador do estado de Zulia, e Enrique Márquez, ex-chefe eleitoral. O órgão também aprovou os candidatos dos partidos tradicionais no poder antes de Hugo Chávez, os partidos Ação Social Democrática (AD) e social cristão COPEI. Vários outros candidatos de partidos alinhados ao Partido Socialista Unido (PSUV) de Maduro foram autorizados a concorrer. Porém, nas atuais condições, é amplamente esperado que Maduro vença a sua terceira eleição.

A decisão de última hora de deixar a Plataforma Unitária registrar um candidato serve para ganhar tempo. A administração Biden declarou que, a menos que a Plataforma Unitária seja autorizada a apresentar o seu candidato escolhido, ela permitirá que a licença dos EUA para a venda de petróleo e gás da Venezuela expire em 18 de Abril. Por sua vez, Maduro espera uma renovação antes que acabe o tempo para Yoris estar na chapa ou, nesse caso, Machado.

A administração Maduro também reprimiu qualquer oposição de esquerda, com o CNE a bloquear a candidatura de Manuel Isidro Molina ao Partido Comunista e à coligação eleitoral do Movimento Popular Alternativo (MPA) que lidera. A liderança stalinista do PCV rompeu com Maduro em 2020, quando a aproximação do governo com Washington e a AD, a COPEI e outros partidos da oposição colocou em perigo a sua própria posição e privilégios dentro do governo.

Ao mesmo tempo, os apelos vergonhosos do governo a Washington e às suas zonas econômicas especiais, os enormes benefícios fiscais para as empresas, as privatizações, os ataques contra os salários e os cortes sociais, tudo isso enquanto os seus parceiros na boliburguesia continuam a enriquecer através de contratos corruptos, tornou praticamente impossível fornecer uma cobertura de “esquerda” ao PSUV.

Embora as brutais sanções econômicas impostas sob o imperialismo norte-americano sejam as principais responsáveis pelo empobrecimento massivo dos trabalhadores venezuelanos, o principal serviço de Maduro ao imperialismo tem sido impor uma “terapia de choque” com a qual o argentino Milei só poderia sonhar, ao mesmo tempo que suprimiu a luta de classes com a ajuda do PCV e os seus defensores da pseudoesquerda.

Após uma “recuperação” limitada em 2022, a taxa de pobreza estimada pela Universidade Católica Andrés Bello “estagnou” novamente. No ano passado, 82,8% dos agregados familiares eram pobres ou não podiam pagar a cesta básica de bens e serviços, enquanto mais da metade enfrenta pobreza extrema, o que significa que não podem comprar alimentos básicos. Além disso, desde 2014, mais de 7 milhões de venezuelanos deixaram o país.

Agora o PSUV procura permanecer no poder para que a boliburguesia colha os frutos da superexploração dos trabalhadores venezuelanos.

A administração de Joe Biden deu uma resposta algo silenciosa à crise eleitoral, esperando solidificar o acesso ao petróleo venezuelano para compensar os efeitos da sua guerra contra a Rússia, na Ucrânia, e uma potencial guerra mais ampla no Oriente Médio, bem como outras regiões geográficas consideradas estratégicas.

A visita clandestina do ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson à Venezuela para persuadir Maduro a não aprofundar as suas relações com a Rússia foi, sem dúvida, realizada com a aprovação dos governos britânico e norte-americano. Além disso, a Shell e a British Petroleum, sediadas no Reino Unido, estão negociando acordos em campos de gás com Caracas.

Milei dá refúgio à extrema direita venezuelana

Agindo a mando do imperialismo norte-americano, os governos do Uruguai, Costa Rica, Equador, Guatemala, Paraguai e Peru emitiram uma declaração para protestar contra a decisão de bloquear os candidatos escolhidos pela Plataforma.

Os governos dos presidentes Lula da Silva do Brasil e Gustavo Petro da Colômbia, geralmente amigáveis com Maduro, uniram-se para exigir que Caracas permitisse a candidatura de Corina Yoris. Em resposta, o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Yvan Gil, disse que a Colômbia estava agindo “pela necessidade de agradar aos desejos do Departamento de Estado dos EUA”.

Significativamente, em dezembro, Lula trabalhou em estreita colaboração com Washington para enfrentar as ameaças de Maduro de invadir e tomar territórios disputados da Guiana, uma antiga colônia britânica localizada entre a Venezuela e o Brasil. Depois, o presidente fascista Javier Milei permitiu que seis associados de Machado que enfrentavam mandatos de prisão se refugiassem na embaixada argentina em Caracas na terça-feira.

Na semana passada, a agência de inteligência venezuelana SEBIN prendeu a presidente e vice-presidente do partido de Machado, Vente Venezuela, e emitiu mandatos de prisão contra sete dos seus associados, incluindo vários que haviam sido mencionados como possíveis substitutos de Machado. Isso aconteceu após a prisão de seis gestores de campanha regionais da oposição e de dezenas de outros, incluindo militares.

Os procuradores do governo afirmam que essas figuras estavam envolvidas em várias conspirações para desestabilizar o governo, levar a cabo um golpe de Estado e assassinar o presidente.

Maduro disse que dois indivíduos armados que supostamente confessaram pertencer ao Vente Venezuela, que ele descreveu como um “partido fascista de extrema direita”, foram presos na segunda-feira a poucos metros de onde ele discursava em um palco em Caracas.

A presidência argentina denunciou o corte do abastecimento de água e eletricidade à sua embaixada em Caracas e alertou contra “qualquer ação deliberada que ponha em perigo a segurança do pessoal diplomático argentino e dos cidadãos venezuelanos sob a sua proteção”.

O governo Milei anunciou então que enviaria dois gendarmes à embaixada e à residência do embaixador em Caracas. Além disso, durante uma entrevista à CNN na terça-feira, Milei disse que a Venezuela foi reduzida à “carnificina”, enquanto Israel não cometeu nenhum “excesso” em Gaza.

Ele então iniciou um ataque violento contra os presidentes regionais. Sobre o presidente colombiano Petro, Milei disse que “não se pode esperar muito de alguém que foi um assassino, um terrorista, um comunista”, referindo-se ao seu passado na guerrilha M-19 durante a década de 1980. Finalmente, o presidente argentino disse sobre o seu homólogo mexicano: “É uma honra para mim que um ignorante como López Obrador fale mal de mim”.

Essas ações seguem-se à visita do diretor da CIA, William Burns, a Buenos Aires em 20 de março, confirmando que o regime argentino está se tornando um centro de conspirações antidemocráticas a mando do imperialismo norte-americano, tal como na década de 1970.

Após a entrevista, Petro retirou seu embaixador em Buenos Aires e expulsou todos os diplomatas argentinos da Colômbia.

A quase ruptura das relações diplomáticas entre o segundo e o terceiro maiores países da América do Sul, porém, não pode ser explicada por meros insultos verbais.

A crise diplomática na América Latina só pode ser entendida como as dores do parto na eclosão de uma guerra mundial. Ela reflete as manobras de frações da classe dominante entre e dentro dos países em resposta à ruptura da ordem pós-Segunda Guerra Mundial e ao impulso do eixo EUA-OTAN para recolonizar e redividir o mundo, que atualmente assume a forma de conflitos econômicos e militares com a Rússia, o Irã e a China.

Tal como todas as formas de regionalismo burguês do terceiro mundo – pan-arabismo, pan-africanismo, etc. – as pretensões do “bolivarianismo” de alcançar a unidade latino-americana sobre uma base capitalista como contrapeso ao imperialismo atingiram o seu beco sem saída final.

Além disso, enquanto alguns como Maduro encobrem os seus interesses de classe subjacentes com a demagogia “pró-trabalhador”, todas as frações estão competindo por uma fatia maior do bolo proveniente da exploração da classe trabalhadora, enquanto os seus apologistas da pseudoesquerda varrem o chão em busca de migalhas.

Já com a eclosão da guerra da OTAN na Ucrânia contra a Rússia, conforme explicado por Eduardo Parati no evento de 1º de maio do WSWS no ano passado, “a América Latina está se transformando em um palco de disputas diplomáticas, econômicas e militares cada vez mais intensas”. O discurso continuou:

As oscilações do presidente venezuelano Nicolás Maduro entre as denúncias do regime de sanções dos EUA impostas ao país e a procura de uma aproximação com um governo dos EUA que continua procurando a sua derrubada expressam da forma mais direta a crise que confrontam os governos burgueses em todos os países latino-americanos.

Com as elites dominantes tentando fazer com que os trabalhadores paguem através de ataques sociais pelo aprofundamento das crises geopolíticas e econômicas, as mesmas contradições que arrastam a região e o mundo para a guerra irão alimentar novas lutas revolucionárias da classe trabalhadora contra a opressão imperialista e o sistema de lucro capitalista.

Para combater a guerra e a ameaça do fascismo, uma liderança trotskista deve ser construída armada com um programa para unir os trabalhadores em toda a América Latina, nos Estados Unidos e internacionalmente para derrubar o capitalismo. Um passo fundamental consiste em tirar as lições necessárias da traição das convulsões sociais de massa nos últimos 25 anos por detrás das promessas de “socialismo” e “anti-imperialismo” sob Hugo Chávez e outros movimentos nacionalistas burgueses da “maré rosa”.

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