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Presidente argentino Milei defende junta militar-fascista em aniversário do golpe de 1976

Publicado originalmente em 26 de março de 2024

No último domingo, Javier Milei se tornou o primeiro presidente argentino a marcar o aniversário do golpe militar de 24 de março de 1976 defendendo o regime de terror fascista que se seguiu e negando seus sangrentos crimes.

Presidente Javier Milei e ex-ditador Jorge Rafael Videla [Photo by LLA and Albasmalko / CC BY 3.0]

No início da manhã, Milei publicou um vídeo ao estilo de um documentário justificando o golpe militar apoiado pelos EUA e a ditadura como meios necessários para travar uma “guerra” contra “monstros”. O vídeo de 12 minutos também nega o número de mortos e “desaparecidos” durante o regime militar e termina com chamados para “enterrar” essa história e deixar o passado para trás.

A vice-presidente Victoria Villarruel, filha de um oficial sênior do exército que fez carreira defendendo oficiais militares condenados e que visitou várias vezes o ditador Jorge Rafael Videla na prisão, publicou um vídeo separado pedindo “Verdade, Justiça e Reparação para as vítimas do terrorismo”. Nele, ela defendeu que os apoiadores das guerrilhas de esquerda durante a década de 1970 ainda deviam ser punidos.

Embora o registro histórico desminta completamente suas alegações, a mídia corporativa começou a se adaptar e a dar diferentes graus de credibilidade às alegações do governo de que a junta militar agiu estritamente ou até mesmo principalmente contra os guerrilheiros de esquerda, ou que apenas cometeu “excessos” em suas operações, e que a estimativa amplamente aceita de 30 mil vítimas mortas e desaparecidas pela junta é “exagerada”.

Em 24 de março de 1976, os militares detiveram a presidente Isabel Martinez de Perón e a removeram da Casa Rosada de helicóptero. Após a morte por causas naturais do general Juan Domingo Perón 21 meses antes, ela herdou um governo em crise, que já havia começado a impor brutais cortes sociais, ataques aos padrões de vida em meio a uma inflação de 335% e massiva repressão, incluindo assassinatos de centenas de esquerdistas pelo esquadrão da morte peronista AAA, ou Triple A.

Os militares argentinos haviam iniciado ações coordenadas com as ditaduras militares do Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil, de acordo com a CIA, “contra elementos subversivos” no “início de 1974”. A CIA estava supervisionando essa colaboração através das fronteiras no que ficou conhecido como Operação Condor. As reuniões mais importantes foram realizadas nessa época na base do Campo de Mayo em Buenos Aires sob o comando dos peronistas segundo a obra The Condor Years, de John Dinges.

Imediatamente após o golpe, com planos que haviam sido meticulosamente preparados com antecedência, tropas e tanques avançaram contra as sedes de sindicatos e partidos de esquerda, bem como locais de trabalho, e iniciaram prisões em massa de militantes conhecidos. Em seguida, o general Jorge Rafael Videla, como comandante do Exército, fez o juramento de posse em um quartel-general e estabeleceu uma junta de governo com os comandantes da Marinha e da Força Aérea.

A repressão às poucas centenas de guerrilheiros no país – jovens e intelectuais politicamente equivocados que realizaram ataques isolados e nunca representaram uma grande ameaça ao poder do Estado – foi explorada para justificar o esmagamento de toda a oposição da classe trabalhadora ao massivo empobrecimento exigido pelo capital financeiro global.

O governo do presidente Gerald Ford, que estava em comunicação ativa com os conspiradores por pelo menos um mês antes do golpe, reconheceu a junta no mesmo dia e possuía um pacote de assistência econômica e militar pronto. O departamento de Estado, sob o comando de Henry Kissinger, conforme indicado em documentos oficiais, planejou um “governo militar de duração prolongada e de severidade sem precedentes”.

A ditadura militar permaneceria no poder até dezembro de 1983 e supervisionaria uma orgia de detenções e torturas de mais de 100 mil trabalhadores, jovens e intelectuais. Trabalhadores militantes, mesmo aqueles que haviam apenas participado de greves antes do golpe, foram sistematicamente sequestrados, torturados e jogados de aviões no Oceano Atlântico. Entre os assassinados estavam dezenas de trabalhadores das montadoras Mercedes Benz e Ford em Buenos Aires.

Já em 1978, de acordo com um memorando confidencial dos EUA da Diretoria de Inteligência Nacional (DINA) de Pinochet no Chile, o Batalhão 601 argentino havia “documentado 22 mil mortos e desaparecidos” desde 1975. Em uma entrevista em junho de 2002, Manuel Contreras, chefe da DINA, que coordenava suas atividades em estreita colaboração com os militares argentinos e a CIA, estimou que os militares argentinos haviam matado 30 mil pessoas durante sua guerra suja.

Um relatório do departamento de Estado de março de 1978 estimou, até aquele momento, entre 12 mil e 17 mil “desaparecidos”. A categoria principal incluía entre 3.750 e 5.000 trabalhadores de base e ativistas sindicais e, em segundo lugar, 3 mil familiares de trabalhadores.

Conforme observado em telegramas confidenciais dos EUA, um assessor explicou a Kissinger que um dos paralelos com a Alemanha nazista era que “para se recuperar economicamente, eles precisam quebrar o poder das estruturas tradicionais e, especialmente, do movimento dos trabalhadores...” Os mesmos cálculos estão sendo feitos hoje.

No domingo, em resposta às falsificações provocativas de Milei, centenas de milhares de trabalhadores e jovens saíram às ruas para homenagear as vítimas e protestar contra o governo, incluindo cerca de 400 mil pessoas que lotaram a Plaza de Mayo em Buenos Aires. O comparecimento foi muito maior do que nos anos anteriores.

Este ano, o dia 24 de março foi caracterizado por uma situação objetiva drasticamente alterada na Argentina e no mundo, incluindo a eclosão da guerra mundial e a promoção agressiva, por parte das elites governantes, de defensores da ditadura fascista em toda a América Latina, Europa e sudeste da Ásia.

As manifestações de domingo ocorreram em meio a uma onda de greves e protestos contra os ataques de Milei aos empregos, salários, aposentadorias e assistência social. Nos últimos dias, essas lutas se concentraram na oposição aos planos de Milei de demitir até 70 mil funcionários do setor público.

Até o momento, a burocracia sindical liderada pelo peronismo tem conseguido manter as greves divididas e limitadas, assinando acordos de venda que aceitam demissões e aumentos salariais muito abaixo da inflação, que atingiu 276% ao ano no mês passado.

Atualmente, 60% dos argentinos, incluindo 70% das crianças, vivem na pobreza.

Apesar da explosiva crise social e política, os discursos e comentários dos organizadores, dos dirigentes sindicais e da pseudoesquerda têm sido complacentes com a ameaça de um retorno às formas fascistas de governo. Além dos slogans vazios e sem sentido de “justiça” e “lembrança”, não houve nenhuma tentativa de extrair as lições históricas do golpe de 1976.

Em vez disso, tanto os peronistas quanto seus apologistas na chamada Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT-U) usaram a ocasião para continuar seus esforços canalizando a revolta social das massas para apelos e ilusões nas instituições capitalistas, incluindo os partidos peronistas no congresso, os tribunais e o próprio governo Milei.

Durante os anos que antecederam 1976, essas mesmas forças usaram métodos semelhantes para desarmar politicamente a classe trabalhadora, bloqueando uma luta independente pelo poder e preparando o terreno para o bem-sucedido golpe fascista-militar.

Além das declarações de Milei e Villarruel, os eventos que antecederam o aniversário mostraram que a classe dominante está se movimentando agressivamente para suprimir qualquer crítica ao histórico dos militares.

Ela busca minar a consciência democrática profundamente arraigada e a oposição popular aos militares a fim de restaurar seu papel na política nacional e nas operações repressivas, mobilizar as camadas mais reacionárias da sociedade contra a classe trabalhadora e preparar um retorno às formas ditatoriais de governo. Existe um elemento de desespero e imprudência nesses esforços.

Em 20 de março, o diretor da CIA, William Burns, chegou a Buenos Aires para se reunir com a liderança do aparato de inteligência e segurança. O momento foi extremamente provocativo e, dado o amplo papel da CIA na consolidação do poder da ditadura, a visita deixa claro que o imperialismo dos EUA planeja usar o mesmo nível de violência genocida contra qualquer oposição a seus interesses.

Além disso, o imperialismo americano claramente considera a Argentina e a região de forma mais ampla uma frente fundamental nos planos de recolonização do mundo, como uma importante fonte de gás natural, petróleo, lítio e outros minerais importantes, além de ser um dos principais produtores agrícolas e fontes de água doce do mundo.

Nos dias entre essa visita e os eventos de domingo, o ministro da Defesa Luis Petri enviou funcionários para se reunir com ex-autoridades da ditadura detidos na prisão militar Campo de Mayo. Eles tiraram fotos com ativistas e esposas dos oficiais exigindo sua libertação.

Patricia Bullrich, ministra da Segurança, fez então a declaração de que os militares e policiais condenados estão “presos injustamente”.

Essas provocações e rumores na mídia sobre possíveis indultos levaram a ONU e as Comissões Interamericanas de Direitos Humanos a emitir uma declaração conjunta em 24 de março pedindo que “os Estados não concedam indultos, anistias humanitárias ou benefícios” aos condenados por graves violações de direitos humanos. Alejandro Slokar, um juiz federal argentino, também fez uma declaração alertando que qualquer perdão, anistia ou comutação violaria as leis nacionais e internacionais existentes.

Em 21 de março, Petri e Bullrich realizaram uma coletiva de imprensa para anunciar um projeto de lei no Congresso para suspender a proibição instituída após a ditadura, impedindo os militares de “intervir e realizar operações de segurança doméstica”. O anúncio foi feito após o envio de tropas para a cidade de Rosário como “apoio logístico” para combater ostensivamente os cartéis de drogas.

Por fim, também em 21 de março, a organização HIJOS, uma rede nacional de filhos e filhas de vítimas mortas durante o regime militar, denunciou um ataque fascista contra um de seus membros. Mais tarde, durante a semana, a vítima, Sabrina Bölke, que também é funcionária do setor público, revelou que dois agressores armados a submeteram em 5 de março a tortura, abuso sexual e ameaças de morte.

Os agressores desenharam “VLLC” na parede de seu quarto – o acrônimo em espanhol do slogan do Milei “Viva a Liberdade, Carajo”. Em seguida, roubaram documentos pertencentes à HIJOS.

Esse foi o ataque mais significativo de grupos fascistas desde a tentativa de assassinato contra a ex-presidente peronista Cristina Fernandez de Kirchner em 2022 pelo membro de um grupo fascista, o Revolução Federal, que inclui fanáticos “libertários” pró-Milei.

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