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Rio Grande do Sul vive crise humanitária após inundação histórica

Desde o final de abril, o Brasil tem enfrentado os efeitos devastadores de chuvas e inundações históricas que atingiram praticamente todo o Rio Grande do Sul, um estado de quase 11 milhões de habitantes. É uma das maiores tragédias climáticas no Brasil e pode ser explicada por uma série de fatores ligados ao clima, sobretudo o aquecimento global, produzido pelo capitalismo e intensificado no último ano pelo fenômeno El Niño.

Vista aérea do centro da cidade de Porto Alegre inundado [Photo: Agência Brasil/Gilvan Rocha]

As altas temperaturas do oceano no Atlântico Sul têm aumentado a frequência e a intensidade de sistemas meteorológicos que levam frio e umidade para a região Sul do Brasil. Mas esse frio e umidade foram impedidos de se propagar para o resto do país em função de uma massa de ar quente com temperaturas acima da média no Centro-Oeste e Sudeste. Em vez de se propagar, a umidade se encontrou com outra vinda da região Amazônica, condensando-se em chuvas recordes no Rio Grande do Sul.

Nas cidades gaúchas Fontoura Xavier e Caxias do Sul, por exemplo, choveu respectivamente 778 mm e 694 mm entre 22 de abril e 6 de maio. Isso equivale ao volume médio esperado para todos os cinco primeiros meses do ano.

Como consequência, cidades inteiras ficaram debaixo d’água. Segundo o boletim da Defesa Civil de 27 de maio, 94% dos municípios do estado (469 dos 497) foram afetados, atingindo mais de dois milhões de pessoas. Já foram confirmadas 169 mortes e ainda há 56 pessoas desaparecidas. Mais de 800 pessoas ficaram feridas.

As enchentes destruíram grande parte da infraestrutura no Rio Grande do Sul. Pontes foram arrastadas pela água e 100 rodovias ficaram parcial ou totalmente intransitáveis, dificultando não só o resgate e o deslocamento de moradores, mas também o transporte de medicamentos e alimentos.

O sistema de saúde teve cerca de 100 hospitais afetados, sendo que 17 tiveram que suspender totalmente o atendimento. Segundo uma reportagem do jornal Folha de São Paulo publicada em 20 de maio, um único hospital, o Pronto Socorro de Canoas, estima um prejuízo de R$ 35 milhões, valor que ainda nem inclui mobília, nem tecnologia da informação, encanamento, tubos de oxigênio, entre outros.

A rede estadual de Educação teve 40% de suas escolas atingidas de alguma forma. O fornecimento de energia elétrica, o abastecimento de água e o sistema de esgoto foram gravemente prejudicados. Na capital Porto Alegre, uma estação de tratamento de água foi destruída e não tem previsão de voltar a funcionar, enquanto as outras cinco operam com a capacidade reduzida.

Há dificuldade de encontrar água potável e outros suprimentos básicos. Vestuário, cobertores e itens de higiene chegam às vítimas graças a doações enviadas de todas as partes do país. No dia 18 de maio, o jornal Correio Braziliense reportou que os prefeitos da capital e de mais cinco municípios da região metropolitana alertaram para o risco de desabastecimento de alimentos e pediram aos governos federal e estadual a criação de corredores humanitários para gêneros alimentícios básicos.

O Aeroporto Internacional Salgado Filho, na capital Porto Alegre, segue com as operações suspensas por tempo indeterminado e deve permanecer fechado por até seis meses. Os três portos do estado, responsáveis por conectar 30% do PIB (Produto Interno Bruto) estadual ao mercado internacional, também foram afetados e, até agora, apenas um retomou as operações.

Foi só depois de 20 dias do início das fortes chuvas que a água começou a baixar na capital e em outros municípios. Mas a situação permanece crítica em vários pontos e, em todo o estado, ainda há cerca de 56 mil pessoas vivendo em abrigos e 580 mil desalojadas (em casas de amigos ou parentes), segundo o boletim de 27 de maio da Defesa Civil.

O secretário de Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul já declarou que parte dos 770 locais de acolhimento que atendem as pessoas desalojadas pela chuva deve permanecer por meses.

A política capitalista de desastres climáticos

A tragédia no Rio Grande do Sul acontece em meio a uma intensificação dos desastres climáticos, que tem agravado ainda mais a desigualdade social no país que está entre os mais desiguais do mundo. Aproximadamente 16,6 milhões dos seus 215 milhões de habitantes vivem em favelas, onde as moradias são mais vulneráveis a esses desastres.

Só nos últimos anos, entre final de 2021 e o início de 2023, enchentes e deslizamentos de grandes proporções foram registrados no sul da Bahia, no norte de Minas Gerais, na região serrana do Rio de Janeiro, na capital de Pernambuco e no litoral de São Paulo. O desastre mais letal em decorrência das chuvas até hoje foi em janeiro de 2011, na região serrana do Rio de Janeiro, com deslizamentos e inundações que mataram 918 pessoas.

Enquanto muitos estados litorâneos sofrem com as consequências do aumento de chuvas, outras regiões enfrentam secas recordes. Em 2021, as regiões Centro-Oeste e Sudeste do Brasil viveram a maior seca em 91 anos. Em 2023, a região Amazônica enfrentou sua pior seca em 120 anos.

O próprio Rio Grande do Sul ainda se recuperava de enchentes ocorridas meses antes. Em junho de 2023, o estado foi devastado por um ciclone extratropical, que matou 16 pessoas e deixou mais de sete mil fora de casa. Apenas três meses depois, em setembro de 2023, outras 54 pessoas morreram em mais um desastre, até então considerado o maior da história do Rio Grande do Sul. E, novamente em novembro, após um grande volume de chuvas, cinco pessoas morreram e ao menos 28 mil precisaram deixar suas casas.

O mais recente desastre pelas enchentes no Rio Grande do Sul, no entanto, foi o maior já registrado no estado e, em termos de extensão e duração dos danos, um dos maiores na história do país.

Em todos esses desastres ambientais, a classe dominante, por meio de seus governos e imprensa, tentou atribuir a culpa ao volume supostamente inesperado das chuvas e às construções irregulares. Mas essa versão enganosa da realidade tem se desmascarado tão rápido quanto a subida da água que, numa chuva de poucas horas, chega ao pescoço dos trabalhadores.

Apesar de os governos demonstrarem surpresa, não faltam dados de especialistas para atestar que foi uma tragédia anunciada. Um relatório de 2015 do extinto programa “Brasil 2040”, encomendado pelo governo de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores) para projetar os efeitos das mudanças climáticas no país, já previa chuvas acima do normal no Sul e secas mais agudas no Nordeste e Centro-Oeste.

“No Rio Grande do Sul, a ficha caiu assim que eu vi os mapas [da atual enchente] do MetSul. Eram visualmente parecidos com as projeções feitas no programa [Brasil 2040]. Foi assustador”, comentou Natalie Unterstell, que participou como coordenadora do programa entre 2013 e 2015, em uma entrevista à BBC Brasil.

Depois do impacto inédito visto no Rio Grande do Sul, setores da classe dominante têm levantado “preocupações” com o Meio Ambiente – com interesse na crescente corrida pela transição energética global – e responsabilizado o negacionismo científico do ex-presidente fascistoide Jair Bolsonaro pela tragédia.

O atual governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, faz parte de uma geração política do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) que se renovou em um giro à direita. Leite chegou a declarar apoio a Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Em seu primeiro ano de mandato, em 2019, Leite alterou cerca de 480 normas do Código Ambiental do estado.

Essas mudanças acompanhavam a política do governo Bolsonaro, que na época tinha como ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – o mesmo que defendeu, durante uma reunião ministerial em 2020, “passar a boiada”, ou seja, aproveitar o foco da imprensa na cobertura da COVID-19 para alterar ou retirar regras ambientais.

Representando 12,6% do PIB da agricultura nacional, o Rio Grande do Sul está entre os dez principais produtores agrícolas do país, sendo responsável por 70% da produção nacional de arroz, além de carnes, soja e milho. No ano passado, o setor faturou mais de R$100 bilhões no estado.

Associado à exploração predatória da natureza, com ações massivas de desmatamento, o agronegócio é apontado como o maior inimigo dos ambientalistas. E, apesar de o bolsonarismo assumir mais abertamente os piores interesses desse setor, foi durante os governos do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016, que o agronegócio se fortaleceu e se expandiu.

No programa “Bom Dia, Presidente” do último dia 7 de maio, o presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva expressou seu orgulho do agronegócio brasileiro, enfatizando que não havia falta de recursos para o setor, tendo disponibilizado R$364,22 bilhões no Plano Safra 2023/2024 e com a promessa de um Plano 2024/2025 igualmente generoso.

O Observatório do Clima (OC), uma rede de entidades ambientalistas brasileiras, questionou o governo federal em uma entrevista à BBC Brasil, por ele não lutar suficientemente pelas pautas ambientais.

“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas. (...) Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, disse o secretário-executivo do OC, Marcio Astrini.

A crise climática exige uma resposta da classe trabalhadora internacional

Longe de se limitar ao Brasil, eventos climáticos extremos causados pelo aquecimento global têm sido um problema em todo o mundo. Nos últimos anos, ondas de calor recordes impulsionaram queimadas históricas na Europa, América do Norte, África e Chile. Inundações recordes atingiram a Líbia, Europa, China e Paquistão. Em cada um desses eventos, milhões de pessoas foram afetadas e continuam sofrendo os seus efeitos.

Assim como a resposta criminosa à pandemia de COVID-19 e o impulso em direção a uma Terceira Guerra Mundial, a crise climática é uma consequência do sistema capitalista de produção que prioriza o lucro privado em detrimento da vida humana e da preservação do próprio planeta. Sistemas de mitigação e prevenção de desastres ambientais têm sido abandonados em detrimento da austeridade e da militarização em um país após o outro.

E os efeitos das mudanças climáticas estão apenas no começo. Um relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), publicado em novembro passado, mostrou que as chuvas no Rio Grande do Sul podem aumentar de 20% a 60% nos próximos 30 anos, dependendo da região do estado. Cenários parecidos são previstos em todos os países do mundo.

Para combater essas tragédias anunciadas, é preciso expropriar a classe dominante mundial e alocar os vastos recursos para a coordenação de uma resposta global à crise climática que seja baseada na ciência. Isso só pode ser realizado por meio de uma ação internacional da classe trabalhadora.

As mortes e toda a devastação no Rio Grande do Sul não devem ser esquecidas, nem suas lições ignoradas. Novos desastres só poderão ser combatidos com uma luta consciente por uma reorganização da economia mundial em uma base socialista e internacionalista.

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