Publicado originalmente em 25 de outubro de 2024
A cúpula de três dias do BRICS (sigla para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi concluída em 24 de outubro em Kazan, na Rússia. Representantes de 36 países estiveram presentes, com o presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, comparecendo ao lado dos chefes de Estado dos cinco países originais do BRICS.
A cúpula de Kazan colocou em evidência a desesperadora crise econômica e geopolítica por trás do capitalismo mundial. Ela ocorreu no momento em que o imperialismo americano e seus aliados europeus continuam a guerra contra a Rússia na Ucrânia, ao mesmo tempo em que apoiam o genocídio em Gaza e apoiam um possível ataque israelense ao Irã. Vários países presentes em Kazan - especialmente Irã, Rússia e China - são agora denunciados como um “Eixo do Mal” na iimprensa dos EUA.
Diante da agressividade implacável das potências imperialistas, os países do BRICS estão tentando cultivar aliados regionais e reduzir a dependência internacional do dólar americano.
O comunicado da cúpula de Kazan adotado na quarta-feira reivindicou o fim da guerra na Ucrânia “por meio do diálogo e da diplomacia” e expressou “grave preocupação” com a “morte em massa e ferimentos de civis, deslocamento forçado e destruição generalizada da infraestrutura civil” em Gaza. Também criticou o ataque israelense e o bombardeio do sul do Líbano.
Também citou “o efeito perturbador de medidas coercitivas unilaterais ilegais, incluindo sanções ilegais” na vida econômica. Desde o término unilateral do tratado nuclear com o Irã pelos EUA em 2018 e a eclosão da guerra na Ucrânia em 2022, Washington cortou o acesso, primeiro do Irã e depois da Rússia, ao dólar americano e ao sistema SWIFT de pagamentos interbancários internacionais, estrangulando suas economias. Além disso, em meio ao desastre militar da OTAN na Ucrânia, Washington está impondo sanções aos bancos chineses que financiam o comércio com a Rússia.
As ameaças de Washington e de seus aliados europeus de se apoderarem das reservas russas de dólares alarmaram muitos países que fazem parte ou podem vir a fazer parte do BRICS, inclusive a Arábia Saudita, que tem grandes reservas de dólares provenientes de suas vendas de petróleo, mas que agora tem laços comerciais estreitos com a China.
Por isso, a cúpula de Kazan estabeleceu e analisou sistemas de pagamentos que excluem o dólar e institui mercados financeiros fora do controle dos EUA. Ela endossou “o uso de moedas locais em transações financeiras entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais”. Também endossou “a iniciativa do lado russo de estabelecer uma plataforma de comércio de grãos (commodities) dentro do BRICS (a Bolsa de Grãos do BRICS)”. A maior parte do petróleo russo e iraniano já é comercializada fora do dólar, principalmente com a China e a Índia, a fim de evitar as sanções dos EUA.
O comunicado da cúpula também instruiu o mecanismo de cooperação interbancária (ICM) do BRICS a “estudar a viabilidade do estabelecimento de uma infraestrutura independente de liquidação e depósito transfronteiriço, o BRICS Clear”, que poderia rivalizar com o SWIFT.
A Rússia e a China também estão acelerando suas compras de ouro, uma possível moeda forte alternativa ao dólar americano. Segundo informações, isso é fundamental para que eles possam continuar negociando, mesmo quando os órgãos reguladores dos EUA ameaçam os bancos chineses com sanções ao tentarem encerrar o comércio com a Rússia em meio à guerra na Ucrânia. No mês passado, em um artigo intitulado “Aumento de 601%: Rússia desencadeia uma inédita onda de compra de ouro”, o Jerusalem Post observou:
A Rússia e a China desenvolveram uma nova abordagem, utilizando o ouro como meio de pagamento de bens e serviços. O processo envolve a compra de ouro na Rússia, seu transporte para Hong Kong para venda e o depósito dos lucros em contas bancárias locais. Essa solução alternativa permite que os dois países continuem negociando e, ao mesmo tempo, evitem as sanções.
No entanto, esse método alternativo tem enfrentado obstáculos. As entidades russas tiveram que recorrer à contratação de despachantes para transportar fisicamente os documentos através das fronteiras e obter as aprovações necessárias dos banqueiros chineses.
Em uma coletiva de imprensa antes da cúpula, Putin comentou: “O mundo inteiro começou a pensar se os dólares americanos deveriam ser usados, já que os Estados Unidos, por motivos políticos, restringem o uso do dólar americano como unidade de pagamento internacional universal”. Ele acrescentou que 95% do comércio exterior da Rússia e, em especial, 95% de seu comércio com a China, são negociados em moedas nacionais, e não em dólar.
Washington e seus aliados imperialistas europeus veem essas iniciativas com indignação. O imperialismo americano há muito tempo procura incentivar ou obrigar outros países a usar o dólar. Principalmente após a dissolução stalinista da União Soviética em 1991, ele empreendeu uma onda de guerras imperialistas no Oriente Médio, rico em petróleo, com base em cálculos financeiros que vão muito além de simplesmente permitir que as corporações petrolíferas americanas e europeias saqueassem países como o Iraque ou a Líbia.
Em meio a um declínio contínuo de sua competitividade, os Estados Unidos vêm apresentando, há décadas, grandes déficits comerciais e de conta corrente de centenas de bilhões de dólares por ano. O país financiou esses déficits, obtendo os bens de que precisava do setor industrial mundial, imprimindo dólares - muitas vezes em resgates maciços. Outros países passaram a aceitar esses dólares, embora não precisassem deles em quantidades tão grandes para comprar produtos fabricados nos EUA, pois compravam mercadorias de outros países que eram vendidas em dólares nos mercados controlados pelos EUA, como energia ou grãos.
Portanto, os estrategistas imperialistas dos EUA estavam determinados a evitar exatamente o tipo de evento que a cúpula do BRICS colocou em ação: estabelecer um comércio internacional de commodities críticas que não fosse realizado em dólares e em mercados que escapassem do controle geopolítico dos EUA e da OTAN.
Esse perigo era bem compreendido nos círculos oficiais da OTAN. Em 2019, o Saxobank da Dinamarca publicou um estudo sobre o que aconteceria se o comércio da Eurásia não fosse mais denominado em dólares, prevendo que isso “tiraria uma parte considerável do comércio global do dólar americano, deixando os Estados Unidos cada vez menos com os fluxos de entrada necessários para financiar seus déficits de dois dígitos”. Ele previu que “o dólar americano perderá 20%” em relação a uma média de moedas asiáticas “dentro de meses, e 30% em relação ao ouro”.
De fato, em meio à cúpula do BRICS, as autoridades dos EUA emitiram uma enxurrada de ameaças contra os países do BRICS. Essas ameaças visavam principalmente a Rússia e a Coreia do Norte, acusando a Coreia do Norte de enviar tropas para a Rússia para lutar na Ucrânia - embora isso também aumente as tensões na Ásia-Pacífico, visando a China.
“Estamos vendo evidências de que há tropas norte-coreanas que foram para (...) a Rússia”, disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, a repórteres em uma coletiva de imprensa em Roma. Ele continuou: “Se eles são co-beligerantes - se sua intenção é participar dessa guerra em nome da Rússia - essa é uma questão muito, muito séria”. O Departamento de Defesa dos EUA comentou: “Os impactos de tal ação seriam sentidos não apenas na Europa, mas também na região do Indo-Pacífico”.
O porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca dos EUA, John Kirby, disse que os soldados norte-coreanos na Ucrânia seriam “um jogo justo” e poderiam ser alvos das forças lideradas pelos EUA na Ucrânia.
Isso aponta para a principal fraqueza da cúpula do BRICS. Trata-se de uma coalizão de governos capitalistas que esperam desenvolver uma ordem mundial “multipolar”, para que possam coexistir de forma mais ou menos pacífica com as potências imperialistas da OTAN, como a burocracia stalinista também tentou fazer antes de liquidar a União Soviética. Embora busque uma acomodação com o imperialismo, as potências imperialistas, por sua vez, são totalmente imprudentes e implacáveis na busca de seus interesses por meio do genocídio e da guerra. Elas não buscam a multipolaridade, mas a hegemonia mundial.
Os regimes burgueses dos países do BRICS também estão dolorosamente conscientes do vasto crescimento de uma classe trabalhadora de bilhões de pessoas em seus países nas últimas décadas. A presença em Kazan do ditador egípcio sanguinário al-Sisi, famoso por afogar em sangue as lutas revolucionárias dos trabalhadores egípcios em um golpe de 2013, é apenas uma indicação de sua hostilidade aos trabalhadores. O comunicado da cúpula também pediu um “FMI com recursos adequados”, o fundo que impõe austeridade aos trabalhadores dos países candidatos ao BRICS, como o Paquistão e o Sri Lanka.
Putin, em sua coletiva de imprensa antes da cúpula, argumentou que o BRICS reúne países em uma base comum de capitalismo e crenças tradicionais. Ele disse: “Todos os nossos chamados valores tradicionais da cultura chinesa, da cultura cristã e da cultura islâmica são, na verdade, os mesmos se lidos e traduzidos de um idioma para outro”.
Há oposição e indignação compartilhadas entre os trabalhadores dos países do BRICS, assim como nos países da OTAN, em relação às ameaças da OTAN de invadir a Ucrânia para combater a Rússia, ou ao apoio da OTAN ao genocídio de Israel em Gaza. Entretanto, isso não torna a perspectiva de construir um mundo capitalista “multipolar” uma proposta viável para se opor ao imperialismo.
Os BRICS são uma coalizão heterogênea de regimes que compartilham pouco mais do que a consciência da ameaça mortal representada pelo papel dominante do imperialismo americano e do dólar. Entre eles, há tensões explosivas. Os países membros ou candidatos ao BRICS, incluindo Índia e Paquistão ou Irã e Arábia Saudita, já travaram ou ameaçaram travar guerras entre si várias vezes.
A única perspectiva viável para lidar com a escalada implacável de guerra das potências imperialistas é construir um movimento revolucionário, socialista e antiguerra contra a guerra imperialista e o capitalismo na classe trabalhadora internacional.