Publicado originalmente em inglês, no dia 13 de março de 2017
Esta é a primeira de cinco palestras que estão sendo apresentadas pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional em comemoração ao centenário da Revolução Russa de 1917. O título desta palestra é “Por que estudar a Revolução Russa?”. Sem muito suspense, responderei à pergunta não no final da palestra, mas no início desta apresentação.
Dez razões pelas quais a Revolução Russa deve ser estudada
Primeira razão: A Revolução Russa foi o evento político mais importante, consequente e progressista do século XX. Apesar do destino trágico da União Soviética – destruída pelas traições e crimes da burocracia Stalinista – nenhum outro acontecimento do século passado teve um impacto tão profundo na vida de centenas de milhões de pessoas em todas as partes do mundo.
Segunda razão: A Revolução Russa, culminando na conquista do poder político pelo Partido Bolchevique em Outubro de 1917, marcou uma nova fase na história mundial. A derrubada do Governo Provisório burguês provou que uma alternativa ao capitalismo não era um sonho utópico, mas uma possibilidade real que poderia ser alcançada através da luta política consciente da classe trabalhadora.
Terceira razão: A Revolução de Outubro confirmou, na prática, a concepção materialista da história formulada por Marx e Engels no Manifesto Comunista. O estabelecimento do poder dos Sovietes sob a liderança do Partido Bolchevique demonstrou um elemento essencial da teoria histórica de Marx: “que a luta de classes necessariamente conduz para a ditadura do proletariado...”[1]
Quarta razão: O desenvolvimento objetivo da Revolução Russa fundamentou a perspectiva estratégica primeiramente elaborada por Leon Trotsky entre 1906 e 1907, conhecida como a teoria da revolução permanente. Trotsky previu que a revolução democrática na Rússia – que implicava a derrubada da autocracia czarista, a destruição de todos os vestígios de relações econômicas e políticas semifeudais, a eliminação da opressão nacional – só poderia ser alcançada através da conquista do poder do estado pela classe operária. A revolução democrática, na qual a classe operária desempenhava o papel de líder em oposição à classe capitalista, se tornaria rapidamente uma revolução socialista.
Quinta razão: A tomada do poder pelo Partido Bolchevique em Outubro de 1917 e o estabelecimento do primeiro estado operário inspiraram um desenvolvimento imenso na consciência de classe e na percepção política da classe trabalhadora e das massas oprimidas em todo o mundo. A Revolução Russa marcou o início do fim do antigo sistema de governo colonial estabelecido pelo imperialismo no final do século XIX e início do século XX. Radicalizou a classe operária internacional e deu início a um movimento revolucionário mundial das massas oprimidas. Os principais ganhos sociais conquistados pela classe trabalhadora internacional, incluindo a formação de sindicatos industriais nos Estados Unidos na década de 1930, a derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, a implementação das políticas de bem-estar social da era pós-Segunda Guerra Mundial e o processo de descolonização, foram subprodutos da Revolução Russa.
Sexta razão: Em sua luta contra a guerra imperialista, o Partido Bolchevique provou, na teoria e na prática, que o internacionalismo socialista é o fundamento essencial da estratégia revolucionária e da luta prática pelo poder. Surgindo das contradições globais do sistema capitalista, o destino da Revolução Russa dependia do desenvolvimento da revolução socialista mundial. Como Trotsky iria explicar:
A conclusão da revolução socialista dentro dos limites nacionais é impensável. Uma das razões fundamentais da crise na sociedade burguesa é o fato das forças produtivas criadas por ela não poderem mais se reconciliar com o quadro do estado nacional. Daí seguem, por um lado, as guerras imperialistas, e, por outro, a utopia de um Estados Unidos da Europa burguês. A revolução socialista começa na arena nacional, desdobra-se na arena internacional, e é completada na arena mundial. Assim, a revolução socialista torna-se uma revolução permanente num sentido mais novo e mais amplo da palavra: ela é completada apenas na vitória final da nova sociedade em todo o nosso planeta. [2]
É difícil acreditar que essas palavras foram escritas há 88 anos. Em meio às crescentes tensões geopolíticas internacionais e ao caos envolvendo a União Europeia, se poderia acreditar que a referência de Trotsky às “guerras imperialistas” e “a utopia dos Estados Unidos da Europa” acabara de ser publicada online na edição de hoje do Le Monde ou do Financial Times. A relevante, atual e duradoura observação de Trotsky atesta o fato de que os problemas históricos com que se deparou nas primeiras décadas do século XX permanecem sem solução nas primeiras décadas do século XXI.
Sétima razão: A Revolução Russa exige sério estudo como um episódio crítico no desenvolvimento do pensamento social científico. A realização histórica dos Bolcheviques em 1917 tanto demonstrou quanto atualizou a relação essencial entre a filosofia materialista científica e a prática revolucionária.
A evolução do Partido Bolchevique justificou a afirmação de Lênin em Que Fazer?: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário.” [3] Como Lênin insistiu continuamente, o marxismo é a forma mais desenvolvida do materialismo filosófico, que criticamente reformulou e assimilou as realizações genuínas do idealismo alemão clássico, principalmente de Hegel (isto é, a lógica dialética e o reconhecimento do papel ativo da prática social que evolui historicamente na cognição da realidade objetiva).
A inabalável defesa do materialismo filosófico e da concepção materialista da história por Lênin, registrada em obras de quase 30 anos (de 1895 a 1922), expressou sua profunda convicção intelectual de que “A tarefa mais elevada da humanidade é compreender essa lógica objetiva da evolução econômica (a evolução da vida social) em seus traços gerais e fundamentais, para que seja possível adaptar a ela a consciência social de um individuo e a consciência das classes avançadas de todos os países capitalistas da forma mais definida, clara e crítica possível.” [4] A conquista do poder pela classe trabalhadora em Outubro de 1917 foi um ponto alto histórico, ainda inigualável, na adaptação da consciência humana, tal como expressa na ação política da classe operária, à “lógica objetiva da evolução econômica”.
Oitava razão: O desenvolvimento do Bolchevismo como uma tendência política e o papel excepcional que desempenhou nos tumultuosos acontecimentos de 1917 reivindicaram o significado essencial da luta dos marxistas contra o oportunismo e seu irmão político, o centrismo. A luta de Lênin contra o oportunismo político do Menchevismo na Rússia, e sua luta contra a traição da Segunda Internacional ao internacionalismo socialista logo após o início da guerra imperialista em 1914, forjaram a identidade política do partido que liderou a luta pelo poder em 1917.
Aplicando a concepção materialista da história, Lênin tentou descobrir os interesses sociais e econômicos que se expressaram no conflito das distintas tendências políticas. Dessa forma, Lênin identificou o oportunismo – especialmente o da Segunda Internacional – como expressão dos interesses materiais de uma camada privilegiada da classe operária e setores da classe média aliados ao imperialismo.
Nona razão: Os bolcheviques forneceram à classe trabalhadora um exemplo do que é um partido revolucionário genuíno e o papel insubstituível de tal partido para assegurar a vitória da revolução socialista. Um estudo cuidadoso do processo revolucionário de 1917 não deixa dúvidas de que a presença do Partido Bolchevique, com Lênin e Trotsky em sua liderança, foi decisiva para assegurar a vitória da revolução socialista. O movimento da classe operária russa, apoiado por uma revolta revolucionária do campesinato, assumiu dimensões gigantescas em 1917. Mas nenhuma leitura realista dos acontecimentos daquele ano permite concluir que a classe trabalhadora teria chegado ao poder sem a liderança proporcionada pelo Partido Bolchevique. Tirando a lição essencial desta experiência, Trotsky insistiu mais tarde: “O papel e a responsabilidade da liderança [da classe operária] em uma época revolucionária é colossal.” [5] Essa conclusão permanece válida na situação histórica atual tal como em 1917.
Décima razão: O curso dos acontecimentos entre Fevereiro/Março e Outubro/Novembro de 1917 não é meramente de interesse histórico. A experiência desses meses cruciais fornece uma inestimável e duradoura visão sobre os problemas estratégicos e táticos que a classe trabalhadora encontrará durante um novo e inevitável conflito da luta revolucionária. Como escreveu Trotsky em 1924, “para as leis e os métodos da revolução proletária não há, até o presente momento, uma fonte mais importante e mais profunda do que a nossa experiência de Outubro.” [6]
Os crimes do stalinismo – uma reação burocrática nacionalista reacionária e anti-marxista contra o programa e os princípios do Bolchevismo – não invalidam a Revolução de Outubro e suas realizações genuínas, incluindo aquelas realizadas pelo Estado Soviético durante os 74 anos de sua existência. Neste novo período de crise global do sistema capitalista, um estudo renovado da Revolução Russa e a assimilação de suas lições é o pré-requisito inevitável para encontrar uma saída para o atual impasse social, econômico e político.
A catástrofe da Primeira Guerra Mundial
Esta é a primeira de cinco palestras. Espero que nos próximos dois meses essas palestras ampliem e validem as razões que dei para um estudo cuidadoso da Revolução Russa.
Exatamente cem anos atrás, esta semana, em 8 de março de 1917, foram realizadas reuniões e manifestações em Petrogrado, a capital da Rússia imperial, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Como a Rússia ainda utilizava o calendário Juliano, que estava 13 dias atrás do calendário Gregoriano utilizado praticamente em qualquer outro lugar, a data desse evento em Petrogrado foi 23 de Fevereiro de 1917. (Para o restante desta palestra, quando me referir aos eventos que aconteceram na Rússia, utilizarei a data do calendário então em uso.)
Quando esses protestos começaram, as grandes potências da Europa – Alemanha e Áustria-Hungria de um lado; França, Grã-Bretanha e Rússia do outro – estavam em guerra há dois anos e sete meses.
Entre Agosto de 1914 e início de Março de 1917, os governos de todos os países em guerra – independentemente de serem governados por parlamentos ou monarcas – eliminaram vidas humanas com indiferença criminal. Durante o ano de 1916, os campos de batalha da Europa foram encharcados com sangue. A Batalha de Verdun, travada durante 303 dias, de 21 de Fevereiro a 18 de Dezembro de 1916, custou a vida de aproximadamente 715.000 franceses e alemães. Isso equivale a 70.000 vítimas por mês. O número total de soldados mortos em Verdun foi de 300.000.
Simultaneamente, outra horrível batalha estava sendo travada na França, próximo ao rio Somme. No primeiro dia da batalha, Primeiro de Julho de 1916, o exército britânico sofreu mais de 57.000 baixas. Quando a carnificina terminou, em 18 de Novembro de 1916, o número de soldados britânicos, franceses e alemães mortos ou feridos já tinha ultrapassado um milhão.
Na Frente Oriental, as forças russas estavam posicionadas contra as da Alemanha e da Áustria-Hungria. Em junho de 1916, o regime czarista lançou uma ofensiva comandada pelo General Brusilov. No momento em que a ofensiva foi concluída em Setembro, o exército russo havia sofrido entre 500.000 a um milhão de baixas. Durante o último século, inúmeros historiadores condenaram a violência da Revolução Russa e a suposta desumanidade dos Bolcheviques. Mas os moralistas da academia não admitem o fato de que, antes da revolução ter reivindicado uma única vítima, mais de 1,75 milhão de soldados russos haviam morrido na guerra lançada pela autocracia czarista em 1914 com o apoio entusiasta da burguesia russa.
Ninguém poderia ter previsto que os protestos específicos planejados para 23 de Fevereiro marcariam o começo da revolução. No entanto, já era previsto que a guerra daria lugar à revolução. Já em 1915, Trotsky escrevera: “Uma classe trabalhadora que passou pela escola de guerra sentirá a necessidade de usar a linguagem da força assim que o primeiro obstáculo sério os enfrentar dentro de seu próprio país.” Lênin tinha baseado a política anti-guerra dos Bolcheviques sobre a convicção de que as contradições do imperialismo como um sistema mundial, que tinha levado à guerra, também conduziriam à revolução socialista.
Numa conferência proferida em Zurique, em 22 de Janeiro de 1917 – o décimo segundo aniversário do massacre do Domingo Sangrento em São Petersburgo e que forneceu a faísca que acendeu a revolução de 1905 – Lênin aconselhou sua pequena audiência: “Não devemos nos enganar pela silêncio sepulcral na Europa. A Europa está grávida de revolução. Os horrores monstruosos da guerra imperialista, o sofrimento causado pelo alto custo de vida em todos os lugares geram um clima revolucionário; e as classes dominantes, a burguesia e seus servos, os governos, estão se movendo cada vez mais para um beco sem saída, do qual eles nunca podem se libertar sem tremendas convulsões.” [7]
E, no entanto, como é frequente no início de grandes eventos históricos, os manifestantes anônimos que se reuniram no dia 23 de Fevereiro não conseguiram previr as consequências de seus atos. Como eles poderiam ter imaginado, naquela manhã de quinta-feira, que estavam prestes a mudar o curso da história?
Naquele momento da guerra, a crise social na Rússia era tão aguda que as greves da classe trabalhadora e outras formas de protesto não eram incomuns. Petrogrado tinha sido abalada por uma greve maciça em 9 de Janeiro, envolvendo 140 mil trabalhadores de mais de 100 fábricas. Outra greve importante contou com 84.000 trabalhadores em 14 de Fevereiro. Mas ainda não estava claro que as tensões estavam crescendo rapidamente em direção à erupção da revolução em grande escala. Nicholas Sukhanov, o menchevique de esquerda que deixou registrado inúmeros acontecimentos de 1917, lembrou de uma discussão sobre o crescente distúrbio entre duas jovens datilógrafas em seu local de trabalho, em 21 de Fevereiro. Ele ficou surpreso quando uma dessas jovens disse a outra : “Se você me perguntar, te direi que isso é o começo da revolução.” O que essas meninas tolas sabem sobre revolução, Sukhanov pensou para si mesmo. “Revolução – altamente improvável! Revolução! – todos sabiam que isso era apenas um sonho – um sonho de gerações e de longas e penosas décadas. Sem acreditar nas moças, repeti-as mecanicamente: ‘Sim, o começo da revolução.’” [8]
Começa a Revolução de Fevereiro
Como se verificou, essas jovens sem educação política tinham um senso de realidade melhor do que o menchevique experiente, no entanto profundamente cético. Em 22 de Fevereiro, a administração da enorme fábrica Putilov proibiu a entrada de 30.000 trabalhadores. No dia seguinte, numa cidade que fervia com as tensões da classe, contra o pano de fundo de uma guerra horripilante, começaram os protestos do Dia da Mulher.
Esses protestos não foram chamados em nome dos “99 por cento” dos russos, como a atual pseudo-esquerda de classe média afluente define seu círculo eleitoral, incluindo desde os totalmente empobrecidos até aqueles cujo patrimônio líquido é calculado em milhões.
Os manifestantes de Petrogrado de Fevereiro de 1917 eram aqueles que representavam os interesses da classe operária da capital imperial. Suas preocupações políticas não se concentravam em questões de estilo de vida individual, mas sim em questões de classe social. Eles gritaram “Abaixo a guerra! Abaixo o alto custo de vida! Abaixo a fome! Pão para os trabalhadores!” [9] As mulheres marcharam para as fábricas e apelaram para que os trabalhadores as apoiassem. Até o final do dia, mais de 100 mil trabalhadores estavam em greve.
À medida que os protestos cresciam nos dias seguintes, gradualmente ficou claro que o destino do regime estava em jogo. Nem mesmo a repressão violenta por parte da polícia não conseguiu deter as manifestações. A classe trabalhadora notou que os soldados que tinham sido convocados para restaurar a ordem pareciam cada vez mais solidários com os protestos e relutantes em executar as ordens de seus comandantes. No quarto dia, a classe operária havia se comprometido com a derrubada do regime. A violência homicida da polícia, que lançou metralhadoras contra os manifestantes e massacrou centenas, encontrou resistência implacável.
O resultado da luta agora dependia dos regimentos estacionados em Petrogrado. Historiadores contemporâneos comprovaram a descrição de Trotsky da crescente interação fraterna entre trabalhadores e soldados. O professor universitário Rex Wade escreve em seu relato da Revolução de Fevereiro:
Os soldados de 1917 não eram os mesmos que haviam suprimido a revolução em 1905. A maioria eram novos recrutas, apenas parcialmente acostumados à disciplina militar. Muitos eram da região de Petrogrado... Entre os dias de 23 e 26 de Fevereiro, houve centenas de conversas entre esses soldados e as multidões, lembrando de seus interesses comuns, da injustiça geral e das dificuldades da população (incluindo as das próprias famílias dos soldados), e do desejo comum de acabar com a guerra. A experiência de disparar sobre as multidões perturbou os soldados seriamente. Discussões aquecidas sobre os eventos estavam acontecendo em muitas unidades. [10]
O processo de fraternização teve seu impacto na disciplina militar. Para citar a brilhante narração de Max Eastman do documentário From Tsar to Lenin: “Pela primeira vez na história, os soldados do czar deixaram-no na mão. Em vez de usarem seus rifles para restaurar a ordem, eles completaram a desordem se juntando às pessoas nas ruas.”
“Espontaneidade”, Marxismo e consciência de classe
Em relatos posteriores da Revolução, memorialistas, jornalistas e historiadores contrastaram o levante de massas de Fevereiro com a insurreição liderada pelos Bolcheviques de Outubro. Com demasiada frequência, o objetivo dessa comparação tem sido o de denigrir o papel da liderança consciente, implicando ou afirmando que a presença de uma liderança politicamente consciente afasta a pureza moral da ação revolucionária. A presença de uma liderança é identificada como conspiração política, interrompendo o normal e legítimo fluxo dos eventos.
O uso da palavra “espontâneo” visa transmitir uma ausência total de consciência política, com as massas agindo com um pouco mais do que meros instintos democráticos. Por uma questão em torno do fato histórico, essa concepção de “espontaneidade” inconsciente mistifica, distorce e falsifica a revolução de Fevereiro de 1917. É verdade que a classe operária russa e as massas de soldados, muitas de origem camponesa, não previram claramente as consequências de suas ações; nem suas ações foram guiadas por uma estratégia revolucionária elaborada.
Mas as massas trabalhadoras possuíam um nível suficiente de consciência social e política, formado por muitas décadas de experiência direta e hereditária, o que lhes permitiu avaliar os acontecimentos de Fevereiro, tirar conclusões e tomar decisões.
Seu pensamento foi profundamente influenciado por uma cultura que se desenvolveu sob o peso da terrível opressão, marcada por tragédias sociais e pessoais, e inspirada em exemplos surpreendentes de auto-sacrifício heroico.
Em 1920, analisando as origens do Bolchevismo, Lênin homenageou a longa luta pelo desenvolvimento de uma cultura e movimento político socialista com raízes profundas na classe operária e capaz de influenciar a ampla massa da população oprimida.
Durante cerca de meio século – aproximadamente entre os anos quarenta e anos noventa do século passado –, o pensamento progressista na Rússia, oprimido por um czarismo brutal e reacionário, buscou ansiosamente uma teoria revolucionária correta e seguiu com o maior esforço e rigor cada “última palavra” dita sobre isso na Europa e América. A Rússia alcançou o marxismo – a única teoria revolucionária correta – depois de meio século da agonia que experimentou de tormentos e sacrifícios incomparáveis, de heroísmo revolucionário incomparável, energia incrível, busca constante, estudo, julgamento prático, desapontamentos, verificação e comparação com a experiência europeia. Graças à emigração política causada pelo czarismo, a Rússia revolucionária, na segunda metade do século XIX, adquiriu uma riqueza de ligações internacionais e excelentes informações sobre as formas e teorias do movimento revolucionário mundial, como nenhum outro país possuía. [11]
Durante os 35 anos que precederam a Revolução de Fevereiro, o movimento da classe trabalhadora na Rússia desenvolveu-se em estreita e contínua interação com as organizações socialistas. Essas organizações – com seus panfletos, jornais, palestras, escolas e atividades legais e ilegais – desempenharam um imenso papel na vida social, cultural e intelectual da classe trabalhadora.
É impossível remover essa onipresente presença socialista e marxista da vida e da experiência da classe operária russa, desde o início da década de 1880, passando pela revolta de 1905, e até o início da Revolução de Fevereiro. O trabalho pioneiro de Plekhanov, Axelrod e Potresov não tinha sido em vão. Foi precisamente a extraordinária interação, durante muitas décadas, da experiência social da classe trabalhadora e da teoria marxista, atualizada nos persistentes esforços do quadro do movimento revolucionário, que formou e alimentou o alto nível intelectual e político da assim chamada consciência 'espontânea' das massas em Fevereiro de 1917.
Pesquisas históricas sérias provaram o papel direto e crítico que os trabalhadores altamente conscientes tiveram na organização e direção do movimento de Fevereiro, levando-o a derrubada da autocracia. A resposta dada por Trotsky à pergunta “Quem liderou a revolução de Fevereiro?” é inteiramente correta: “Trabalhadores conscientes e temperados educados em grande parte pelo partido de Lênin.” [12] Porém, Trotsky apressou-se em acrescentar: “Essa liderança provou ser suficiente para garantir a vitória da insurreição, mas não foi suficiente para transferir imediatamente para as mãos da vanguarda proletária a liderança da revolução.” [13]
O surgimento do “Poder Dual”
Na tarde de segunda-feira, 27 de Fevereiro, o regime dinástico dos Romanov, que tinha governado a Rússia desde 1613, foi varrido pelo movimento de massas de trabalhadores e soldados. Com a destruição do antigo regime, surgiu imediatamente a questão política do que substituiria a autocracia. Os confusos e assustados representantes políticos da burguesia russa reuniram-se no Palácio Tauride. Estabeleceram uma Comissão Temporária da Duma Estatal que, pouco tempo depois, se constituiu como Governo Provisório. A principal preocupação da burguesia, aterrorizada pelo movimento de massas, era fazer com que a revolução estivesse sob controle o mais rápido possível, limitando ao máximo qualquer prejuízo material dos ricos e donos da propriedade privada e continuando com a participação da Rússia na guerra imperialista.
Ao mesmo tempo, dentro do mesmo edifício, os representantes eleitos do povo se reuniram em um Soviete de Deputados Trabalhadores e Soldados para defender e promover os interesses das massas revolucionárias. Na formação deste instrumento do poder real e potencial dos trabalhadores, a classe operária russa estava baseando-se da experiência da Revolução de 1905. Mas enquanto em 1905 o Soviete de São Petersburgo – presidido por Leon Trotsky – emergiu apenas nas semanas do movimento de massas da classe trabalhadora, o Soviete de Petrogrado surgiu na primeira semana da Revolução de 1917.
As divisões de classe dentro da sociedade russa, ainda não resolvidas pela derrubada da autocracia czarista, encontraram expressão no regime de Poder Dual. A existência de duas autoridades governamentais rivais, representando forças de classes hostis e irreconciliáveis, era inerentemente instável. Explicando o significado político desse fenômeno peculiar, Trotsky escreveu: “A divisão da soberania prevê nada menos do que uma guerra civil.” [14]
Durante os oito meses seguintes, o desenvolvimento da revolução prosseguiu através do conflito entre o Governo Provisório burguês e o Soviete dos Deputados Trabalhadores e Soldados. Se o resultado dessa luta pudesse ter sido determinado simplesmente com base em algum tipo de cálculo matemático das forças dos poderes em conflito, oito meses não teriam sido necessários para resolver a questão.
Desde o início, o Governo Provisório burguês era essencialmente impotente. Sua autoridade dependia quase inteiramente do apoio que recebia dos líderes políticos do Soviete – principalmente dos Mencheviques e Social-Revolucionários. Eles insistiam que a revolução da Rússia era de caráter exclusivamente burguês e democrático, que uma reviravolta socialista do capitalismo não estava na agenda, e que, portanto, o Soviete – o representante da classe trabalhadora e da massa de camponeses pobres empobrecidos – não poderia tomar o poder em suas próprias mãos.
Durante as primeiras semanas que se seguiram à vitoriosa Revolução de Fevereiro, a aquiescência do Comitê Executivo do Soviete não foi contestada. Mesmo o Partido Bolchevique – com Lênin ainda fora da Rússia e sua liderança nas mãos de Kamenev e Stalin – se inclinou em apoiar o Comitê Executivo ao Governo Provisório e, portanto, a continuidade da participação da Rússia na guerra. Essa linha de adaptação política continuaria até que Lênin retornasse à Rússia no dia 4 de abril.
O retorno de Lênin a Petrogrado
O regresso de Lênin à Rússia, e sua chegada à Estação Finlândia em Petrogrado, estão entre os episódios mais dramáticos da história mundial. Quando a Revolução começa na Rússia, Lênin se encontrava na Suíça, morando em um pequeno apartamento no segundo andar em Spiegelgasse, na parte antiga da cidade de Zurique. As circunstâncias da viagem de Lênin da Hauptbahnhof de Zurique – estação central de trem – para Petrogrado apareceriam como uma questão política importante no curso da revolução. Em meio à guerra, a possibilidade de um rápido retorno à Rússia de um pais sem saída para o mar como a Suíça exigia que ele viajasse pela Alemanha. Lênin compreendeu muito bem que os chauvinistas reacionários protestariam contra a sua decisão de viajar por um país que estava em guerra com a Rússia. Mas ganhar tempo era essencial. Em sua ausência, o Partido Bolchevique estava sendo levado à órbita dos líderes mencheviques do Soviete, que estavam buscando uma linha conciliatória com o Governo Provisório. Lênin negociou as condições sob as quais viajaria pela Alemanha, insistindo em um “trem selado”, impedindo a possibilidade de qualquer contato entre ele e representantes do Estado alemão.
Desde o momento em que Lênin recebeu notícias do início da revolução na Rússia, começou a formular uma política de irreconciliável oposição revolucionária ao Governo Provisório. Sua resposta inicial à revolução é registrada em uma série de comentários detalhados conhecidos como as Cartas de Longe.
As políticas que Lênin avançou nos primeiros dias da revolução se basearam em sua análise da guerra imperialista e foram uma continuação do programa anti-guerra revolucionário que ele havia defendido na Conferência de Zimmerwald, em Setembro de 1915. Lênin insistira que a guerra imperialista levaria à revolução socialista. A palavra de ordem que ele defendeu, “Transformar a guerra imperialista em uma guerra civil”, foi uma concretização programática dessa perspectiva. Lênin viu a derrubada da autocracia czarista como uma confirmação de sua análise. A revolta na Rússia não foi um evento nacional independente, mas a primeira fase da revolta da classe operária europeia contra a guerra imperialista, e, portanto, o início da revolução socialista mundial.
A análise de Lênin sobre os acontecimentos russos no contexto internacional da guerra mundial colocou-o em conflito não só com os líderes mencheviques do Soviete, mas também com seções importantes da liderança do Partido Bolchevique em Petrogrado. Os líderes mencheviques argumentaram que, com a derrubada do czar, o caráter político da participação da Rússia na guerra havia mudado. Tinha se tornado uma legítima guerra democrática de autodefesa nacional.
A resposta inicial do Partido Bolchevique, formulada por dirigentes de nível inferior da organização de Petrogrado, era reafirmar a postura intransigente contra a guerra pela qual Lênin havia lutado em Zimmerwald, reiterando seu apelo para transformar a guerra imperialista em uma guerra civil. Mas, à medida que mais altos dirigentes saíam do exílio da Sibéria para Petrogrado, a linha política do partido mudou.
A chegada de Kamenev e Stalin em Petrogrado em meados de Março levou quase imediatamente a uma mudança dramática na política. Adotando uma política defensista que justificava a continuidade na guerra, Kamenev, com o apoio de Stalin, publicou uma declaração no órgão bolchevique Pravda, em 15 de Março, dizendo: “Quando exército se posicionar contra exército, seria a mais cega de todas as políticas chamar um deles para abaixar suas armas e ir para casa... Um povo livre permanecerá firmemente no seu posto, respondendo bala por bala.” [15]
As “Teses de Abril”
Sukhanov deixou uma viva descrição do retorno de Lênin à Rússia. O Partido Bolchevique organizou uma animadora recepção para o regresso de seu líder. Os líderes do Soviete, reconhecendo que os anos de atividade revolucionária de Lênin tinham lhe rendido imenso prestígio entre os avançados trabalhadores de Petrogrado, sentiram-se obrigados a se juntar às boas-vindas oficial do partido. Lênin desceu do trem e recebeu um magnífico buquê de rosas vermelhas, que contrastava um tanto estranhamente com seu traje inteiramente convencional. Claramente encantado por ter chegado à capital da revolução, Lênin rapidamente se dirigiu à sala de espera da Estação da Finlândia. Lá ele encontrou uma delegação de líderes do Soviete, liderada por seu presidente, o menchevique nascido na Geórgia, Nikolai Chkheidze. Nervoso e com um sorriso gélido no rosto, a recepção oficial do presidente consistia em tentar convencer Lênin que ele evitasse o rompimento da unidade da esquerda. Lênin, lembrou Sukhanov, parecia prestar pouca atenção ao discurso do presidente do Soviete, como se não fosse para ele. Lênin olhou para o teto, buscou no público rostos familiares, e ajustou as flores do buquê que ainda segurava na mão. Assim que Chkheidze concluiu suas sombrias observações, Lênin começou a lançar seus raios:
Queridos camaradas, soldados, marinheiros e trabalhadores! Estou feliz em saudar em nome de vossas pessoas a revolução russa vitoriosa, e vos saúdo como a vanguarda do exército proletário mundial... A guerra imperialista é o início da guerra civil em toda a Europa... A hora não está muito distante, como na chamada do nosso camarada Karl Liebknecht, os povos vão virar as armas contra os seus próprios exploradores capitalistas... A revolução socialista mundial já começou... A Alemanha está fervendo... A qualquer hora agora todo o capitalismo europeu pode cair. A revolução russa realizada por vocês preparou o caminho e abriu uma nova época. Viva a revolução socialista mundial! [16]
Sukhanov registra o impressionante impacto das palavras de Lênin.
Foi tudo muito interessante! De repente, perante os olhos de todos nós, completamente absorvidos pela rotina de trabalho da revolução, surgiu um farol brilhante, ofuscante e exótico, que destruía tudo o que então “vivíamos.” A voz de Lênin, ouvida diretamente do trem, era uma “voz de fora.” Havia rompido sobre nós na revolução uma nota que não era, sem dúvida, uma contradição, mas que era nova, dura e um tanto ensurdecedora. [17]
Lembrando sua própria reação às palavras de Lênin, Sukhanov reconheceu que achava que Lênin estava certo mil vezes mais... em reconhecer o começo da revolução socialista mundial e estabelecer uma relação intrínseca entre a Guerra Mundial e a ruptura do sistema imperialista.” [18] Mas Sukhanov, que personificava a ambivalência política que caracterizava até mesmo os elementos mais de esquerda entre os mencheviques, não via a possibilidade de traduzir a perspectiva de Lênin, por mais correta que fosse, em ação revolucionária prática.
Lenin partiu da recepção na Estação da Finlândia para um breve jantar com seus velhos companheiros, e depois para uma reunião onde, ao longo de um relato informal que durou cerca de duas horas, forneceu um esboço do que, na sua forma acabada, entra na história como as Teses de Abril. Lênin explicou que a revolução democrática só poderia ser defendida e completada com uma revolução socialista, exigindo o repúdio da guerra imperialista, a derrubada do Governo Provisório burguês e a transferência do poder estatal para os Sovietes.
Sukhanov, que havia conseguido entrar na reunião, embora não fosse membro do partido, descreveu o encontro:
Não creio que Lênin, mal saído de seu trem selado, esperava expor em sua resposta todo a sua crença, e todo o seu programa e táticas para a revolução socialista mundial. Este discurso foi, provavelmente, em grande parte uma improvisação, e por isso faltava qualquer densidade especial ou plano elaborado. Mas cada parte do discurso, cada elemento, cada ideia, foi excelentemente elaborada; ficou claro que essas ideias há muito ocupavam Lênin e foram defendidas por ele mais de uma vez. Isso foi demonstrado pela surpreendente riqueza do vocabulário, toda a cascata deslumbrante de definições, nuances e ideias paralelas (explicativas), que só podem ser alcançadas através do trabalho racional fundamental.
Lênin começou, naturalmente, com a revolução socialista mundial que estava pronta para explodir como resultado da Guerra Mundial. A crise do imperialismo expressa na guerra só poderia ser resolvida pelo socialismo. A guerra imperialista... não poderia deixar de se transformar numa guerra civil, e só poderia ser encerrada por uma guerra civil, por uma revolução socialista mundial. [19]
O programa político de Lênin – que sinalizava o alinhamento de sua estratégia com a teoria da revolução permanente de Trotsky – não se baseava principalmente em uma avaliação das circunstâncias e oportunidades determinadas nacionalmente tal como existiam na Rússia. A questão essencial que se colocava à classe trabalhadora não era se a Rússia, como Estado nacional, alcançara um nível suficiente de desenvolvimento capitalista que permitiria uma transição para o socialismo. Em vez disso, a classe operária russa enfrentou uma situação histórica em que seu próprio destino estava intrinsicamente ligado à luta da classe operária europeia contra a guerra imperialista e o sistema capitalista que a originou.
Trotsky retorna à Rússia
Uma vez que Lênin tinha superado a resistência dentro de seu próprio partido, os bolcheviques conseguiram desenvolver a luta contra a influência política dos mencheviques e dos social-revolucionários. Esses esforços foram amplamente reforçados pelo retorno de Trotsky em Maio. Sua chegada a Petrogrado havia sido adiada porque as autoridades britânicas em Halifax, no Canadá, tinham retirado Trotsky do barco que viajava de Nova York para a Rússia, colocando-o em um campo de prisioneiros durante um mês. Protestos na Rússia contra a apreensão ilegal de Trotsky obrigou o Governo Provisório a exigir que os britânicos o soltasse.
Mas nem o Governo Provisório nem os líderes do Soviete ficaram satisfeitos ao saber da chegada de Trotsky. Poucos tinham esperanças de que ele pudesse conter a crescente radicalização da classe trabalhadora. Sukhanov lembrou: “Rumores indefinidos estavam circulando sobre ele, enquanto ele ainda estava fora do Partido Bolchevique, no sentido de que ele era ‘pior do que Lenin.’” [20]
Agora que as diferenças anteriores com Lênin haviam sido resolvidas, Trotsky entrou no Partido Bolchevique, assumindo um papel de liderança, depois apenas de Lênin. Muitos dos aliados políticos mais próximos de Trotsky, ativos no Grupo Interdistrital de Petrogrado (mezhrayontsi) seguiram sua liderança, se juntaram aos Bolcheviques e passaram a desempenhar papéis importantes na Revolução de Outubro, na Guerra Civil e no governo Soviético. Naturalmente, Stalin acabou assassinando a maioria dos mais importantes representantes dos mezhrayontsi que haviam sobrevivido até a década de 1930.
O Governo Provisório não poderia cumprir nenhuma das esperanças despertadas pela Revolução de Fevereiro. Não querendo sacrificar suas próprias ambições imperialistas e dependente do apoio do imperialismo britânico, francês e americano, o Governo Provisório se recusou a acabar com a guerra. Em desafio aos sentimentos das massas, o governo Kerensky lançou operações ofensivas em Junho que terminaram em desastre. A agitação do Partido Bolchevique, exigindo que os líderes do Soviete rompessem com o Governo Provisório e tomassem o poder em suas próprias mãos, receberam apoio crescente. À medida que crescia o prestígio do Partido Bolchevique, os esforços do Governo Provisório, da imprensa capitalista e dos principais Mencheviques e Socialistas-Revolucionários para insultar e desacreditar Lênin tornaram-se cada vez mais frenéticos.
A supressão das manifestações anti-governo em massa – os “Dias de Julho” – foi seguida por uma feroz campanha contra o Partido Bolchevique e, sobretudo, contra Lênin. O fato de ele ter viajado pela Alemanha para retornar à Rússia foi usado para alimentar uma campanha de difamação com o objetivo de preparar as condições políticas necessárias para o assassinato de Lênin.
O Estado e a Revolução
O Governo Provisório ordenou a prisão de Lênin em 7 de Julho. Compreendendo muito bem que aqueles que o capturassem o matariam antes mesmo de chegar à prisão, Lênin se escondeu. Ao longo dos dois meses seguintes, durante sua ausência forçada de Petrogrado, escreveu O Estado e a Revolução. Ele prefaciou o livro com uma explicação:
A questão do Estado está agora adquirindo uma importância especial tanto na teoria como na prática política. A guerra imperialista acelerou e intensificou imensamente o processo de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado... Os horrores e misérias sem precedentes da guerra prolongada tornam a posição do povo insuportável e aumentam a sua raiva. A revolução proletária mundial está claramente amadurecendo. A questão de sua relação com o Estado está adquirindo importância prática. [21]
Neste trabalho notável, Lênin realizou o que ele chamou de exercício de “escavação histórica”, restabelecendo os ensinamentos de Marx e Engels sobre a natureza do Estado como instrumento de domínio de classe, para a manutenção do poder e da dominação de uma classe sobre outra. A própria existência do Estado surge da existência e do caráter irreconciliável dos antagonismos de classe. Lênin atacou os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses que “‘corrigem’ Marx tentando justificar que o Estado é um órgão para a reconciliação de classes.” [22]
Lênin considerava O Estado e a Revolução como sendo de maior importância, e especificamente instruía que, no caso de sua morte prematura, uma atenção especial deveria ser dada à essa sua publicação.
Mas Lênin sobreviveu. Em Setembro, a situação política começou a mudar radicalmente para a esquerda. Confrontado com a ameaça de um golpe contra-revolucionário do general Kornilov, os líderes do Soviete foram obrigados a mobilizar e armar as massas. Trotsky, que estava na prisão desde Julho, foi libertado. Diante da resistência popular da classe trabalhadora, cuja organização os Bolcheviques desempenharam um papel crítico, os soldados de Kornilov desertaram o general e a tentativa de golpe desmoronou.
“Todo poder aos Sovietes”
Kerensky – que secretamente conspirava com Kornilov antes do golpe – estava politicamente desacreditado. Com Lênin ainda escondido, o Partido Bolchevique – avançando a palavra de ordem de “Todo poder aos Sovietes” – experimentou uma onda maciça de apoio popular. Grandes setores da classe trabalhadora abandonaram os Mencheviques, que ainda se recusavam a romper com o governo provisório e sancionar a transferência do poder estatal para os Sovietes.
Em Setembro, com a intensificação da crise econômica e política, e com uma revolta geral do campesinato por toda a Rússia, Lênin exortou o Comitê Central do Partido Bolchevique a iniciar preparativos concretos para a organização de uma insurreição para tomar o poder. Em 10 de Outubro, Lênin entrou em Petrogrado para participar de uma reunião do Comitê Central, que aprovou uma resolução em apoio a uma insurreição. No entanto, ainda existia uma oposição substancial dentro do partido contra a derrubada do Governo Provisório, bem como desacordos sobre a formulação de um plano estratégico para a insurreição.
Uma revisão detalhada da insurreição liderada pelos Bolcheviques não é possível dentro do escopo desta palestra. Isso exigiria um exame cuidadoso das diferenças significativas que surgiram dentro da liderança Bolchevique nos dias que antecederam a tomada do poder. As Lições de Outubro de Trotsky e, naturalmente, sua História da Revolução Russa fornecem relatos dos conflitos dentro do Partido Bolchevique e de seu significado político e histórico, que permanecem insuperáveis na compreensão da interação de elementos objetivos e subjetivos no processo revolucionário.
No entanto, há uma questão crítica relacionada com a Revolução de Outubro que deve ser abordada. A afirmação de que a derrubada do Governo Provisório em Outubro foi um golpe de Estado conspiratório, realizado sem qualquer apoio popular substancial, tem sido repetida sem parar e de todas as maneiras por opositores políticos dos Bolcheviques e historiadores reacionários durante um século inteiro. Ninguém mais que Kerensky, que viveu até 1970, e assim, poder-se-ia dizer, sobreviveu a si mesmo por mais de meio século, continuou a insistir, até sua morte aos 89 anos, que seu governo havia sido vítima de uma conspiração criminosa.
Por que os bolcheviques triunfaram
A difamação da Revolução de Outubro como um golpe sem apoio popular tem sido refutada por numerosos estudos acadêmicos, entre os quais as obras do historiador americano Alexander Rabinowitch são as mais abrangentes e impressionantes. Em seu prefácio para The Bolsheviks in Power, publicado em 2007 como o terceiro volume de seu estudo de uma vida inteira da Revolução Russa, o Professor Rabinowitch escreveu:
The Bolsheviks Come to Power, juntamente com o Prelude to Revolution, desafiaram as noções ocidentais predominantes da Revolução de Outubro como nada mais do que um golpe militar realizado por um pequeno e unido bando de fanáticos revolucionários brilhantemente liderados por Lênin. Descobri que, em 1917, o Partido Bolchevique de Petrogrado se transformou em um partido político de massa e que, ao invés de ser um movimento monolítico marchando atrás de Lênin, sua liderança foi dividida entre as alas esquerda, centrista e moderada de direita, cada uma das quais ajudaram a moldar a estratégia e as táticas revolucionárias. Descobri também que o sucesso do partido na luta pelo poder após a derrubada do czar em Fevereiro de 1917 se devia, de maneiras criticamente importantes, à sua flexibilidade organizacional, abertura e capacidade de resposta às aspirações populares, e cuidadosa conexões com operários de fábrica, soldados da guarnição de Petrogrado e marinheiros da Frota do Mar Báltico. A revolução de outubro em Petrogrado, concluí, era menos uma operação militar do que um processo gradual enraizado na cultura política popular, uma descrença generalizada com os resultados da revolução de Fevereiro, e, nesse contexto, a atração magnética para as promessas dos Bolcheviques de imediata paz, pão, terra para o campesinato e democracia de base exercida através de sovietes multipartidários. [23]
O Professor Rabinowitch cresceu em uma família que tinha estreitas conexões pessoais com os líderes Mencheviques. Ele estava pessoalmente familiarizado com Irakli Tsereteli, o líder da facção Menchevique no Soviete de Petrogrado. Ele ouviu o lado Menchevique da história muitas vezes. Mas sua própria pesquisa científica o levou a conclusões que contradiziam as explicações dadas pelos Mencheviques para sua derrota em 1917.
A resposta capitalista-imperialista à Revolução de Outubro
Logo após a Revolução de Outubro, nem a burguesia russa nem a burguesia internacional compreenderam claramente a magnitude política dos acontecimentos em Petrogrado. As elites governantes reagiram como se a vitória Bolchevique fosse um pesadelo do qual logo despertariam. No dia 9 de Novembro (em Washington), menos de 48 horas após a derrubada do Governo Provisório, o New York Times relatou que “Washington e funcionários da Embaixada esperam que o governo Bolchevique seja curto.” O despacho do Times garantiu a seus leitores:
Acredita-se aqui que a situação russa não é tão obscura como as notícias de Petrogrado indicariam. Funcionários do Departamento de Estado e a Embaixada da Rússia concordam com a opinião de que o atual controle do governo de Petrogrado pelo Comitê Militar Revolucionário Bolchevique não pode durar... Um alto funcionário disse hoje que, em sua opinião, o resultado poderia ter um bom efeito ao invés do contrário, uma vez que poderia proporcionar a oportunidade de algum homem forte subir para assumir o controle da situação.
Mas o homem forte esperado pelo governo do presidente Woodrow Wilson não surgiu, e, dentro de uma semana, a confiança otimista de que a revolução seria rapidamente afogada em sangue deu lugar à raiva. Num editorial publicado em 16 de Novembro, intitulado “Os Bolcheviques”, o Times denunciou Kerensky por se “equivocar” – menosprezar – com os revolucionários, e de se afastar do golpe de Kornilov. Fervendo de ódio, o editorial continuou:
No entanto, embora Kerensky tenha falhado, alguém suficientemente forte pode surgir para tirar o governo das mãos destrutivas dos Bolcheviques. Na verdade, manter o poder permanentemente eles não conseguem, porque são pateticamente ignorantes, homens superficiais, crianças políticas, sem a menor compreensão das vastas forças com as quais estão brincando, homens sem uma única qualificação para a fama mas com o dom da palavra; e se eles pudessem ser deixados sozinhos o tempo suficiente, sua mera incompetência os destruiriam, embora talvez apenas para substituí-los por outros tão ruins quanto. Tal era a história da Revolução Francesa, um caleidoscópio de governo formado por um conjunto de eloquentes incompetentes e ignorantes, cada um pior do que o outro, até que a incompetência e a ignorância o destruíram por completo.
E o que fizeram os Bolcheviques durante as horas e dias que se seguiram à derrubada do Governo Provisório para incitar a ira do New York Times e das forças do imperialismo capitalista internacional por quem falava? Em primeiro lugar, os Bolcheviques emitiram um decreto sobre a paz, apelando a todas as partes em conflito para iniciarem negociações para pôr fim à guerra sem anexações nem indenizações. Em segundo lugar, o novo governo Soviético emitiu um decreto sobre a terra, declarando que “a propriedade privada da terra será abolida para sempre; a terra não será comprada, vendida, alugada, hipotecada ou de outra forma alienada.” [24]
O lugar da Revolução de Outubro na história mundial
Assim começou a maior revolução social da história mundial. Houve outras revoluções: a Revolução Inglesa de 1640-49, a Revolução Americana de 1776-83, a Revolução Francesa de 1789-94 e a Segunda Revolução Americana de 1861-65. O que não compreenderam – ou mesmo chegaram perto em compreender – foi que seus ideais não diminuem seu significado como marcos no desenvolvimento histórico da humanidade. Não há nada tão intelectualmente repulsivo como os esforços dos pós-modernistas em desacreditar os sacrifícios das gerações passadas em busca de um mundo melhor. Com tais exercícios de cinismo pequeno-burguês, os socialistas Marxistas não têm simpatia alguma. Embora reconheçamos as limitações historicamente determinadas dos esforços dos revolucionários de épocas históricas anteriores, pagamos-lhes o tributo que lhes é devido.
Como um evento na história mundial, a Revolução Russa representa o esforço mais elevado e ainda não superado da humanidade para identificar as causas da injustiça e do sofrimento humano, e pôr fim a eles. A Revolução de Outubro alcançou um alinhamento sem precedentes da consciência humana com a necessidade objetiva. Isso se expressou não apenas nas decisões e ações de seus líderes políticos. Ver os acontecimentos de Outubro apenas em termos das ações dos líderes, mesmo se tratando dos maiores, é perder o significado da Revolução. Numa revolução, são as massas que fazem a história.
Ao derrubar o Governo Provisório, a classe operária agiu com profunda consciência das leis do desenvolvimento socioeconômico. “Os pensamentos são científicos”, escreveu Trotsky, “se correspondem a um processo objetivo e possibilitam influenciar esse processo e orientá-lo.” [25] Neste sentido fundamental, os pensamentos e a prática de milhões de pessoas elevaram-se ao nível da ciência. A teoria científica agarrou as massas e foi transformada em força material. A classe trabalhadora começou a abolir um sistema arcaico de relações socioeconômicas, acabou com a anarquia do mercado capitalista, e introduziu o planejamento consciente na organização da vida econômica. Nas décadas de 1920 e 1930, quando ainda existia uma intelligentsia americana comprometida com os princípios democráticos e capaz de adotar uma atitude crítica em relação à sociedade capitalista, o significado histórico do então chamado 'experimento Soviético' foi amplamente reconhecido.
Em 1931, o filósofo liberal americano John Dewey escreveu para a revista New Republic um resumo de vários livros sobre a União Soviética. Dewey observou que “a Rússia é um desafio para a América, não por esta ou aquela característica, mas porque não temos nenhuma maquinaria social para controlar a maquinaria tecnológica à qual comprometemos nossas fortunas,” e expressou simpatia pela proposição marxista de que “os fenômenos são capazes de ser controlados para que o desenvolvimento da sociedade humana possa ser sujeito da vontade humana.” Dewey passou a expressar simpatia com a seguinte crítica do capitalismo apresentada no livro The Soviet Challenge to America, escrito por um proeminente liberal da época, George S. Counts:
A sociedade industrial na sua forma atual é um monstro que não possui alma nem significado interior. Ela conseguiu destruir as culturas mais simples do passado, mas não conseguiu produzir uma cultura digna de seu próprio nome... Se este estado de caos moral é a inadaptação temporária de uma época de transição ou o produto inevitável de uma sociedade organizada para ganhos privados é uma das questões mais cruciais do nosso tempo. [26]
O destino da Revolução Russa – da Revolução de Outubro de 1917 à dissolução da União Soviética – é a experiência histórica mais significativa e complexa do século XX. Mas os problemas contra os quais lutou não apenas persistem, como são mais agudos do que nunca. Cem anos após a Revolução Russa de 1917, o capitalismo está descendo em espiral rumo ao desastre. A crise da sociedade capitalista não é simplesmente causada, como disse o Professor Counts, pelo “desajuste temporário de uma época de transição.” A existência dessa forma histórica obsoleta de organização econômica – baseada na propriedade privada das forças produtivas e dos recursos naturais da humanidade, brutalmente explorando a grande massa da humanidade segundo o interesse do lucro corporativo e da riqueza privada – não é apenas a principal barreira para o progresso humano. Sua existência está se tornando rapidamente incompatível com a manutenção da vida humana. Não existe um único problema social significativo que possa ser resolvido no âmbito do capitalismo. De fato, a lógica do capitalismo e do sistema Estado-nação, que forma a base da geopolítica imperialista, está levando inexoravelmente a mais uma guerra global, desta vez em um conflito com armas nucleares. Nada pode impedir tal desastre a não ser a renovação da luta consciente pelo socialismo mundial. Essa é a razão, acima de tudo, pela qual a Revolução Russa deve ser estudada.
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Notas:
1. Marx-Engels Collected Works, Volume 39 (New York: 1983), pp. 62-65 (nossa tradução para o português)
2. The Permanent Revolution (London: 1971), p. 155 (nossa tradução para o português)
3. Lenin Collected Works Volume 5 (Moscow: 1961), p. 369 (nossa tradução para o português)
4. Lenin Collected Works Volume 14 (Moscow: 1977), p. 325 (nossa tradução para o português)
5. “The Class, the Party, and the Leadership,” em The Spanish Revolution 1931-39 (New York: 1973), p. 360 (nossa tradução para o português)
6. The Lessons of October em The Challenge of the Left Opposition (New York: 1975), p. 227 (nossa tradução para o português)
7. Lenin, Collected Works Volume 23, p.253 (nossa tradução para o português)
8. The Russian Revolution 1917, de N.N. Sukhanov, editado, resumido e traduzido por Joel Carmichael (New York: 1962), Volume 1, p. 5 (nossa tradução para o português)
9. The Russian Revolution, 1917, de Rex A. Wade (Cambridge: 2000), p. 31 (nossa tradução para o português)
10. Ibid, p. 39
11. Lenin Collected Works, Volume 23, pp. 25-26 (nossa tradução para o português)
12. History of the Russian Revolution (Ann Arbor: MI, 1957), p. 152 (nossa tradução para o português)
13. Ibid
14. The History of the Russian Revolution (Ann Arbor: 1961), p. 208
15. War Against War, de R. Craig Nation (Durham and London: 1989), p. 175 (nossa tradução para o português)
16. Sukhanov, Volume 1, p. 273
17. Ibid, pp. 273-74
18. Ibid p. 274
19. Ibid, p. 281
20. Sukhanov, Volume 2, p. 360
21. Lenin Collected Works, Volume 25 (Moscow: 1977), p. 388 (nossa tradução para o português)
22. Ibid, p. 392
23. The Bolsheviks in Power: The First Year of Soviet Rule in Petrograd, de Alexander Rabinowitch (Bloomington and Indianapolis: 2007), pp. ix-x (nossa tradução para o português)
24. Citado em The Russian Revolution, 1917, p. 243
25. History of the Russian Revolution, p. 151
26. Citação de John Dewey, Volume 6: 1931-1932, Essays, Reviews and Miscellany (Carbondale and Edwardsville, 1989), p. 266 (nossa tradução para o português)