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Havia uma alternativa ao stalinismo?

Esta palestra, realizada em 25 de outubro de 1995 na Universidade de Glasgow, na Escócia, foi incluída no livro A Revolução Russa e o Inacabado Século XX, publicado por David North em 2014. O livro em inglês está disponível para compra na Mehring Books.

Permitam-me, antes de tudo, agradecer ao Instituto de Estudos Russo e do Leste Europeu por este convite para falar aqui na Universidade de Glasgow. Eu não sou um historiador profissional, mas o estudo da história é um pré-requisito inevitável dos membros da Quarta Internacional. Na verdade, nunca houve dentro do partido uma demarcação clara entre história e política. Isso deixou os trotskistas expostos a críticas de todos os lados. Opositores políticos ressentem-se de nossa introdução de questões históricas em discussões de política contemporânea, enquanto historiadores profissionais frequentemente descartam como mera política o que temos a dizer sobre a Revolução Russa e o que se seguiu a ela.

Eu não vejo a possibilidade de uma reaproximação com os nossos opositores políticos. Nossas diferenças em inumeráveis questões de programa, em geral, refletem concepções muito diferentes da relação das experiências históricas do movimento operário internacional com os problemas e as tarefas presentes do movimento socialista. No entanto, eu acho que há uma grande necessidade de um renovado diálogo e, na medida em que isso é possível, uma aliança intelectual ativa entre marxistas, que traçam sua herança política à Revolução de Outubro, e historiadores que estão comprometidos, qualquer que seja sua posição política pessoal, como estudo científico da história russa e soviética.

O colapso da União Soviética foi seguido por uma enxurrada de literatura pseudo-histórica com o intuito de demonstrar que a Revolução de Outubro e a União Soviética foram o resultado de uma conspiração criminosa que impôs um dogma estranho e impraticável sobre uma população desavisada. Esses trabalhos tendenciosos – descritos normalmente como magistrais nas críticas da grande imprensa – são, em grande medida, o produto de duas escolas ideológicas estreitamente relacionadas. A primeira é a dos velhos anticomunistas da Guerra Fria, representada por pessoas como Richard Pipes, da Universidade de Harvard, e Martin Malia, da Universidade da Califórnia. A segunda é aquela dos stalinistas reconstruídos, isto é, antigos defensores e até mesmo oficiais de alto escalão do antigo regime soviético, que recentemente descobriram, depois que se tornou lucrativo fazê-lo, que foram vítimas do bolchevismo. O mais notório representante dessa escola é o general Dmitri Volgokonov.

Em sua recente biografia de Lenin, Volgokonov dedica várias páginas à dissolução da Assembleia Constituinte em janeiro de 1918, um ato que o general cita como um dos maiores exemplos da criminalidade bolchevique. Ao dissolver a Assembleia Constituinte, escreve Volgokonov, Lenin “revelou-se como o novo intelectual do tipo marxista, um utópico fanático que acreditou ter o direito de realizar qualquer experimento desde que o objetivo do poder seja alcançado.” [1]

No entanto, qualquer que seja a interpretação desse evento, ninguém foi de fato morto quando a Assembleia Constituinte foi dissolvida. Pouco tempo depois dessa condenação grave da moralidade de Lenin, Volgokonov, como o mais alto conselheiro militar do presidente Boris Yeltsin, supervisionou o bombardeio do prédio do parlamento russo, a Casa Branca, em outubro de 1993, que resultou na morte de mais de mil pessoas. Parece que, apesar de suas objeções a Lenin, Volgokonov acredita firmemente em seu próprio direito de realizar experimentos. Tudo depende, em última análise, dos interesses de classe particulares do poder a que se serve.

A escola pós-soviética de falsificação histórica

Pipes, Malia e Volkogonov representam diferentes tendências do que melhor pode ser descrito como uma nova escola pós-soviética de falsificação histórica, e sua refutação é uma tarefa urgente de todos os sérios estudiosos. O objetivo desta escola não é apenas desacreditar a Revolução Russa, mas também promover um ambiente de intimidação ideológica que desencoraje ativamente todo exame genuinamente científico dos complexos processos econômicos, sociais, políticos e culturais que, na totalidade de sua interação, determinaram o curso da Revolução Russa. As implicações desse ataque são de longo alcance. Em última análise, o alvo desta escola de falsificação histórica é toda a herança de pensamento e toda a luta progressista e revolucionária, que se estende por séculos, a partir da qual surgiu o marxismo.

Para que eu não seja acusado de dramatizar demais a questão, permitam-me referir à contribuição feita pelo Professor Alexander Tchoudinov, membro da Academia Russa de Ciências em Moscou, no 18º Congresso Internacional de Ciências Históricas, realizado no final de agosto – início de setembro de 1995 em Montreal. Citando São Mateus e Santo Agostinho, Tchoudinov denunciou amargamente todos e diversos representantes do pensamento utópico que sustentavam a possibilidade de uma solução secular para os sofrimentos do homem. “Somente Deus”, trovejou Tchoudinov, “pode eliminar os vícios e defeitos desta vida, mas Ele o fará somente no fim do mundo”. Sim, isto foi realmente dito em um Congresso Internacional de Ciências Históricas. O “cristianismo”, proclamou Tchoudinov, “livrou as pessoas da ilusão da possibilidade de eliminar todo o mal social e, consequentemente, de estabelecer o governo livre de vícios”.

Tchoudinov lamentou a “descristianização do pensamento social e político na época da Renascença [que] reavivou a tradição utópica da Filosofia Antiga”. Ele repreendeu com raiva More e Campanella, antes de passar à Era do Iluminismo, em que tanto trabalho maligno foi realizado por Rousseau, Mably, Diderot e, para citar Tchoudinov, “muitos outros, menos eminentes”. O terrível trabalho dos racionalistas deu origem a Robespierre, depois a Marx e, claro, a Lenin. Finalmente, Tchoudinov chegou à seguinte conclusão:

É importante notar, no final, que os regimes totalitários do século XX foram o resultado da descristianização da consciência pública em épocas anteriores. [2]

Tudo isso foi dito na presença de dezenas de professores, muitos dos quais se contorciam em constrangimento. E eles tinham bons motivos para se envergonharem. O local apropriado para os comentários de Tchoudinov-Rasputin não era um Congresso de Ciências Históricas, mas um sínodo de arcebispos metropolitanos ortodoxos russos. Isso é um reflexo do declínio chocante dos padrões intelectuais que um auditório de um congresso acadêmico foi obrigado a ouvir por tanta baboseira teológica, que também se expressa no fato de nenhum historiador ter se levantado de sua cadeira para contestar Tchoudinov.

Há uma contradição inexplicável na análise oferecida tanto pelos antigos anticomunistas da Guerra Fria quanto pelos stalinistas reconstruídos. Por um lado, eles atribuem ao marxismo um determinismo rígido, que, segundo eles, é a fonte teórica da tentativa dos bolcheviques de impor à sociedade russa uma utopia antimercado impraticável. Mas então, estes amargos opositores do “determinismo” recorrem ao determinismo mais extremo em sua interpretação da história soviética pós-1917, que explicam como o resultado inevitável do desdobramento da ideologia bolchevique. Cada episódio da história soviética, segundo nos dizem, surgiu inevitavelmente da Revolução de Outubro. Após desembarcar Lenin na estação Finlândia em abril de 1917, o trem da história, comandado por marxistas impiedosos, se deslocou por uma única via que levou ao desastre de 1991, com paradas pré-programadas em Lubianka e no Arquipélago Gulag.

O medo de Stalin em relação a Trotsky

O fato de essa interpretação ter encontrado ampla aceitação é até mesmo indicado no título desta palestra: “Havia uma alternativa ao stalinismo?” A própria colocação da pergunta sugere que, na melhor das hipóteses, apenas uma resposta especulativa é possível. No entanto, não é esse o caso. O estudo da história da União Soviética demonstra que havia uma alternativa ao stalinismo. O crescimento da burocracia e sua usurpação do poder político sofreu uma oposição consciente e sistemática de dentro do Partido Bolchevique. A oposição mais significativa foi a que surgiu em 1923, sob a liderança de Leon Trotsky. Uma resposta à pergunta “Havia uma alternativa ao stalinismo?” é que Stalin e a burocracia soviética certamente pensavam que sim. Trotsky e a Oposição de Esquerda foram submetidos a um grau de repressão que foi tão brutal quanto implacável. Sempre consciente do caráter duvidoso de sua própria reivindicação da continuidade do bolchevismo, o próprio Stalin acreditava que Trotsky representava a mais perigosa oposição política ao seu regime.

Dirigentes da Oposição de Esquerda em 1927

Um retrato vivo do medo de Stalin em relação a Trotsky pode ser encontrado, inclusive, na biografia de 1987 do ditador soviético por Dmitri Volkogonov. Baseando-se em materiais que encontrou na biblioteca pessoal de Stalin, Volkogonov desenha uma imagem de um ditador onipotente que viveu com medo de um exílio isolado e apátrida. Ele relata que tudo o que foi escrito por ou sobre Trotsky foi mantido por Stalin em um armário especial em seu escritório. As cópias de Stalin desses escritos foram muito grifadas e preenchidas com comentários enérgicos.

Trotsky não estava mais presente, mas Stalin cresceu para odiá-lo ainda mais em sua ausência, e o espectro de Trotsky frequentemente voltava para assombrar o usurpador. Stalin veio amaldiçoar-se por ter concordado em deixar Trotsky ir para o exílio no exterior. Ele não admitia nem mesmo a si mesmo que temia Trotsky na época, mas certamente temia o pensamento dele. A sensação de que ele nunca seria capaz de resolver o “problema” de Leib Davidovich (como tendia a se referir a Trotsky em sua mente, usando a forma iídiche de Lev) se transformou em ódio violento. [3]

Volkogonov continua:

A principal razão pela qual Stalin temia o espectro de Trotsky era porque Trotsky havia criado sua própria organização, a Quarta Internacional ... O espectro estava provocando uma vingança mais dolorosa do que o próprio Stalin poderia ter imaginado. ...

A ideia de que Trotsky estava falando não apenas por si mesmo, mas por todos os seus apoiadores silenciosos e os opositores dentro da URSS, era particularmente dolorosa para Stalin. Quando ele leu os trabalhos de Trotsky, tais como A Escola Stalinista de Falsificação, Uma Carta Aberta aos Membros do Partido Bolchevique, ou O Termidor Stalinista, o Líder quase perdeu seu autocontrole. ...

... As obras completas de Trotsky foram publicadas em dezenas de países, e foi a partir delas que a opinião mundial formou sua imagem de Stalin, e não a partir de livros de pessoas como Feuchtwanger e Barbusse. [4]

Volkogonov não tem absolutamente nenhuma simpatia pela personalidade de Trotsky ou por suas ideias políticas. A possibilidade de que Trotsky pode ser considerado uma alternativa a Stalin é detestável para Volkogonov. Ele faz tudo o que pode para apresentar as ações e os escritos de Trotsky da pior maneira possível. Mas isso torna ainda mais significativo seu relato da fixação de Stalin com as atividades de seu opositor exilado. À sua maneira, mesmo que involuntariamente, esse relato ressalta a fraqueza gritante de tantos volumes sobre a história soviética, nos quais o tratamento de Trotsky e da Oposição de Esquerda possui o caráter mais superficial.

A personalidade e o papel político de Leon Trotsky, como líder da Revolução de Outubro e como o mais importante opositor marxista do regime stalinista, paira sobre todas as discussões da história soviética. Ele permanece, até hoje, “o grande inominável”. Como lidar com Trotsky sempre foi um problema difícil, tanto para os stalinistas quanto para os historiadores burgueses antimarxistas. Dentro da União Soviética, mesmo após a morte de Stalin e as revelações de Khrushchev, o regime não podia permitir uma descrição honesta de suas atividades e ideias. De todos os líderes bolcheviques assassinados por Stalin, Trotsky foi o único que nunca foi formalmente reabilitado pelo regime soviético. Já em novembro de 1987, no auge da glasnost, quando Gorbachev fez sua tão esperada revisão da história soviética por ocasião dos 70 anos da Revolução de Outubro, o líder soviético denunciou veementemente Trotsky, mesmo quando encontrou algumas palavras amáveis para dizer sobre as contribuições de Stalin à causa socialista.

Não é difícil entender por que o papel histórico de Trotsky representou tantas dificuldades para a burocracia soviética. O histórico de seu trabalho constituiu uma condenação incontestável de todo o regime stalinista, resumida no título de sua obra-prima política, A Revolução Traída.

Entre os historiadores antimarxistas, a luta travada por Trotsky contra Stalin desafia implicitamente a tese de que o regime totalitário era a expressão necessária e genuína do bolchevismo. Se os historiadores antimarxistas não foram capazes de ignorar Trotsky, eles geralmente fizeram o melhor para banalizar o significado da luta política que ele travou contra o stalinismo. Um dos historiadores antimarxistas mais conhecidos foi ainda mais longe. Permitam-me referir-me ao influente trabalho em três volumes do Professor Leszek Kolakowski, As Principais Correntes do Marxismo. Ele escreveu:

Muitos observadores, incluindo este autor, acreditam que o sistema soviético como se desenvolveu sob Stalin era uma continuação do leninismo, e que o estado fundado nos princípios políticos e ideológicos de Lenin só poderia ter se mantido sob uma forma stalinista. [5]

Se o stalinismo representou, de fato, a legítima e necessária apoteose dos “princípios políticos e ideológicos de Lenin”, como explicar a luta travada por Trotsky e pela Oposição de Esquerda? Kolakowski se antecipou a essa pergunta e ofereceu a seguinte explicação:

Os trotskistas – e, é claro, o próprio Trotsky – consideraram sua remoção do poder como um ponto de inflexão histórico; mas não há razão para concordar com eles e, como veremos, pode muito bem ser defendido que o “trotskismo” nunca existiu, mas foi uma ficção inventada por Stalin. As discordâncias entre Stalin e Trotsky eram reais até certo ponto, mas foram grosseiramente infladas na luta pelo poder pessoal e nunca chegaram a duas teorias independentes e coerentes. ... Na realidade, porém, não havia oposição política básica entre os dois homens, e muito menos qualquer desacordo teórico. [6]

A afirmação de Kolakowski atesta a falência intelectual e a indiferença cínica aos fatos históricos que estão na base da afirmação de que não existia alternativa ao stalinismo. Que credibilidade pode ser atribuída a uma tese que exige que se aceite o incrível: que a luta que dividiu o Partido Bolchevique e o movimento comunista internacional nas décadas de 1920 e 1930 não significou, em essência, nada? As mortes em massa ordenadas por Stalin, a destruição de todos aqueles dentro da sociedade soviética que eram suspeitos, por causa de sua biografia política ou interesses intelectuais, da mais remota conexão com o trotskismo – tudo isso foi supostamente feito mesmo que o ditador soviético não tivesse diferenças políticas ou teóricas básicas com Trotsky. E, ao mesmo tempo, espera-se que acreditemos que Trotsky escreveu milhares de artigos denunciando o regime soviético e trabalhou incansavelmente para construir um movimento internacional dedicado à sua derrubada apenas para ocultar seu acordo com as políticas de Stalin!

O stalinismo era inevitável?

Tomando como ponto de partida uma conclusão ideologicamente motivada – que o regime do totalitarismo stalinista foi o resultado predeterminado da teoria e da política bolchevique –, os adeptos da escola pós-soviética de falsificação ignoram fatos que indicam o contrário. Os padrões profissionais desses autores são deploravelmente baixos. E, ainda assim, o argumento subjacente mantém uma certa atração sedutora, mesmo para muitos estudantes que não são de forma alguma simpáticos aos preconceitos ideológicos da escola pós-soviética de falsificação. Afinal de contas, como explicar a transição de Lenin para Stalin? Não é verdade que, apenas alguns anos depois de ter conquistado o poder, o regime bolchevique havia sido transformado em uma ditadura implacável? Não é razoável procurar as sementes dessa transformação dentro do Partido Bolchevique, e, especialmente, em sua ideologia?

Leon Trotsky

Esse argumento não é novo. Nos anos 1930, no ponto alto do terror stalinista, mesmo quando seus antigos camaradas estavam sendo massacrados e ele próprio perseguido por assassinos da GPU, Trotsky foi repetidamente confrontado com a acusação de que ele, como líder da Revolução de Outubro, dividia a responsabilidade pelos crimes do regime soviético.

Ele respondeu a esses ataques apontando para a falha fundamental na metodologia histórica desses críticos. Ao procurar descobrir a fonte do stalinismo na ideologia do bolchevismo – isto é, ao transferir o conceito de pecado original para o estudo da política soviética – os antimarxistas examinaram o bolchevismo como se ele tivesse evoluído dentro de um laboratório estéril. Eles ignoraram o fato de que o Partido Bolchevique, por todo seu dinamismo, era apenas um elemento no vasto panorama social da Revolução Russa. Embora tenha sido certamente o fator político decisivo no desenvolvimento da Revolução Russa, o Partido Bolchevique não a criou do nada. E mesmo depois de ter conquistado o poder do Estado, o Partido Bolchevique não se tornou assim o único determinante da realidade social. Os limites de seu poder foram condicionados por um conjunto de fatores históricos anteriores, para não mencionar uma complexa interação de variáveis políticas e econômicas internacionais.

O partido não só influenciou; foi também influenciado pelas condições sociais que enfrentou ao tomar o poder. O Partido Bolchevique podia, através de decretos, abolir a propriedade privada dos meios de produção, mas não podia abolir mil anos de história russa. Não podia abolir todas as diferentes formas de atraso social, econômico, cultural e político que foram o legado do desenvolvimento histórico da Rússia ao longo desses muitos séculos.

Todos os seres humanos carregam em seu DNA o material genético que determina o padrão geral de seu desenvolvimento biológico. Mas mesmo nesse processo natural, a influência de condições externas ao corpo humano, como uma atmosfera alterada pelos efeitos da indústria, desempenha um papel não menos importante. E se o destino de cada homem e mulher for considerado do ponto de vista de sua existência como animais sociais, sabemos que as circunstâncias históricas em que eles vivem podem exercer uma influência muito decisiva até mesmo sobre os aspectos puramente físicos de seu desenvolvimento.

Se os antropólogos não podem ignorar a influência decisiva de fatores externos, socialmente condicionados no desenvolvimento dos humanos, os historiadores não devem tentar lidar com um fenômeno político complexo como o Partido Bolchevique, como se sua evolução política obedecesse a instruções codificadas invisivelmente dentro de sua perspectiva teórica geral.

Nossa refutação das metafísicas ideológicas da escola pós-soviética de falsificação não exige que atribuamos a perfeição ao Partido Bolchevique, nem negamos a possibilidade de que erros políticos cometidos por Lenin e Trotsky após a Revolução de Outubro – como a proibição das frações internas do partido no 10º Congresso do Partido em 1921 – tenham contribuído de alguma forma para o crescimento da burocracia e para a eventual consolidação da ditadura stalinista. Pode-se até concluir que havia elementos nas concepções organizacionais e nas formas do bolchevismo que poderiam ser e foram, sob certas condições, utilizados por Stalin para construir um regime ditatorial. Mas isso aconteceu, é preciso reforçar, sob certas condições. O bolchevismo continha em si mesmo tendências conflitantes. Mas seu desenvolvimento só pode ser compreendido dentro do contexto do desenvolvimento das contradições econômicas e sociais enfrentadas pela sociedade soviética como um todo.

Mesmo ao considerar os papéis desempenhados pelos indivíduos mais importantes, é necessário reconhecer a primazia das condições e circunstâncias objetivas.

A evolução política de Stalin

Há vários anos, tive uma discussão em Moscou com Ivan Vrachev, um dos poucos indivíduos que haviam sido membro da Oposição de Esquerda na década de 1920 – ele assinou a Declaração dos 84, da Oposição Unificada– e tinha conseguido sobreviver a Stalin. Ele conheceu muito bem Trotsky e a maioria dos outros líderes do Partido Bolchevique, incluindo Stalin. Perguntei a Vrachev se havia algo em Stalin que o tivesse levado a acreditar que era um homem capaz de ordenar o extermínio de camaradas com os quais ele havia trabalhado tão de perto por muitos anos.

Vrachev respondeu que tinha se perguntado isso muitas vezes, mas não se lembrava de nada que o levasse a acreditar que Stalin seria capaz de cometer tais crimes. Vrachev relatou então a seguinte história. Em 1922, ele estava prestes a deixar Moscou para uma importante missão nas províncias. Ele vinha sofrendo dores abdominais, mas não adiou a sua viagem. Antes de sua partida, Vrachev foi obrigado a se encontrar com Stalin, que era o responsável pela organização do partido. Ele foi para o Kremlin, onde analisou com Stalin os detalhes de sua iminente viagem.

Em algum momento da discussão, Stalin pareceu tomar consciência do desconforto físico de Vrachev. Stalin ficou bastante alarmado, e todo o seu comportamento pareceu expressar uma preocupação genuína. Ele disse a Vrachev que era inadmissível correr tais riscos de saúde, ordenou que ele adiasse a partida e telefonou pessoalmente para se preparar um exame de saúde em Vrachev com os melhores médicos do Kremlin. Como acabou acontecendo, Vrachev precisou ser operado. Recordando esse evento, Vrachev admitiu que era possível que Stalin estivesse meramente preocupado em construir seu aparato. Mas sua impressão permaneceu: Stalin ainda era então capaz de sentir e expressar genuínas emoções humanas.

Stalin cometeu crimes monstruosos. É difícil acreditar que não residia dentro de sua personalidade elementos psicológicos latentes que o tornavam capaz de assassinatos em massa. Mas mesmo no caso de Stalin, essas tendências patológicas e criminosas vieram à tona e foram moldadas em uma forma particularmente hedionda por um certo conjunto de condições objetivas. A esse respeito, vale a pena notar uma observação feita por Trotsky no final da década de 1930. Ele escreveu que se Stalin tivesse previsto o resultado de sua batalha com a Oposição de Esquerda, e mesmo sabendo antecipadamente que alcançaria o poder absoluto, ele não teria embarcado nela.

Ironicamente, uma das vantagens políticas de Stalin na luta contra seus opositores foi que previu muito pouco. Confortável em seu próprio pragmatismo, Stalin estava livre do tipo de considerações de princípio, baseadas em sérias análises teóricas, que desempenharam um papel tão fundamental para Trotsky selecionar as alternativas políticas. Os alertas urgentes da Oposição de que suas políticas, nacionais e internacionais, levariam ao desastre foram descartados por Stalin por supostamente fomentarem pânico. Em uma carta recentemente publicada de Stalin a Molotov, datada de 15 de junho de 1926, encontramos uma passagem que revela muito sobre Stalin: “Não estou alarmado por questões econômicas”, escreveu. “Rykov será capaz de cuidar delas. A oposição não ganha absolutamente nada em questões econômicas.” [7]

Essa foi a avaliação privada de Stalin sobre a importância geral de uma questão sobre a qual repousava o destino da União Soviética. Não ganha “nada”. Stalin não podia imaginar que as contradições acumuladas da economia soviética sob o regime da Nova Política Econômica (NEP) acabariam explodindo em seu rosto e o levariam a adotar, apenas alguns anos depois, as políticas desesperadas, imprudentes e assassinas da coletivização em massa.

O contexto internacional da Revolução de Outubro

Central tanto para a perspectiva de Trotsky da revolução permanente como para as Teses de Abril de Lenin era o elo indissociável entre as lutas da classe operária russa e o proletariado internacional, especialmente o europeu. Nem Lenin nem Trotsky conceberam a Revolução de Outubro em termos essencialmente nacionais. Eles entenderam e justificaram a derrubada do Governo Provisório como o início de uma solução proletária internacional para resolver as contradições capitalistas globais que foram expressas pela Primeira Guerra Mundial. Essa perspectiva não tinha nada em comum com o objetivo de estabelecer um sistema socialista autossuficiente dentro dos limites de uma Rússia economicamente atrasada. Foi somente no outono de 1924, vários meses após a morte de Lenin, que Bukharin e Stalin introduziram a ideia de que o socialismo poderia ser estabelecido em uma base nacional, em um só país.

Lenin e Trotsky em uma comemoração do segundo aniversário da Revolução de Outubro

Antes disso, era uma premissa axiomática do marxismo que a sobrevivência do governo bolchevique, além do desenvolvimento de uma economia socialista, dependia da vitória das revoluções socialistas na Europa Ocidental. Acreditava-se fervorosamente que a conquista do poder pela classe operária nos países capitalistas avançados forneceria à Rússia soviética os recursos políticos, financeiros, industriais e tecnológicos vitais para a sua sobrevivência.

Pode-se argumentar – e isso aconteceu na época com os mencheviques e seus aliados entre os socialdemocratas europeus – que os bolcheviques estavam loucos para fundamentar a luta pelo poder em cálculos revolucionários internacionais tão distantes. Deve-se notar, entretanto, que Rosa Luxemburgo, cuja atitude em relação a Lenin não era de forma alguma acrítica, achou precisamente esse aspecto do bolchevismo digno dos mais incansáveis elogios. Ela escreveu em 1918:

O destino da revolução na Rússia dependia inteiramente dos acontecimentos internacionais. O fato de os bolcheviques terem baseado sua política inteiramente na revolução proletária mundial é a prova mais clara de sua visão política e firmeza de princípios e do alcance ousado de suas políticas. [8]

Luxemburgo não estava otimista quanto às perspectivas do regime bolchevique. Nem concordava com muitos elementos das políticas seguidas pelos bolcheviques após a chegada ao poder. Mas nunca lhe ocorreu sugerir que os bolcheviques não deveriam ter tomado o poder ou que seus erros políticos eram a expressão de algum tipo de fanatismo utópico. Mesmo quando ela criticou a supressão da democracia e o uso excessivo do terror, Luxemburgo dirigiu suas condenações morais não aos bolcheviques, mas aos socialdemocratas alemães, cuja traição aos princípios revolucionários e o apoio às políticas de guerra do governo alemão, que incluía a ocupação de grandes porções da Rússia, colocaram o governo soviético em uma situação extremamente desesperadora.

Seria exigir algo sobre-humano de Lenin e seus camaradas se esperássemos deles que em tais circunstâncias invocassem a melhor democracia, a ditadura proletária mais exemplar e uma próspera economia socialista. ...

... Todos nós estamos sujeitos às leis da história, e é somente internacionalmente que a ordem socialista da sociedade pode ser realizada. Os bolcheviques demonstraram que são capazes de tudo o que um verdadeiro partido revolucionário pode contribuir dentro dos limites das possibilidades históricas. Eles não conseguem fazer milagres. Para um modelo e uma revolução proletária sem falhas em uma terra isolada, esgotada pela guerra mundial, estrangulada pelo imperialismo, traída pelo proletariado internacional, seria um milagre. [9]

E ela concluiu:

O que se quer é distinguir o essencial do não essencial, o núcleo das excrescências acidentais nas políticas dos bolcheviques. ... Não se trata desta ou daquela questão secundária de tática, mas da capacidade de ação do proletariado, da força de ação, da vontade de poder do socialismo como tal. Nisto, Lenin e Trotsky e seus amigos foram os primeiros, aqueles que foram adiante como exemplo para o proletariado do mundo; eles ainda são os únicos até agora que podem chorar com Hutten: “Eu ousei!” [10]

Quão refrescantes essas palavras soam hoje, mesmo depois de quase oitenta anos! Elas testemunham o fato de que os socialistas mais conscientes daquele período estavam bem cientes de que o isolamento da Revolução Russa representava o maior perigo para a sua sobrevivência.

As derrotas sofridas pela classe operária europeia após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo na Alemanha, foram a principal causa da degeneração política do regime soviético. O isolamento da Rússia soviética alterou drasticamente a relação das forças de classe que haviam tornado possível a conquista do poder pelos bolcheviques. Não estamos falando aqui de um problema puramente teórico, mas de uma realidade física. A principal base social da Revolução de Outubro era uma classe operária muito pequena, mas estrategicamente posicionada. A crise do bolchevismo não pode ser compreendida desconsiderando o impacto da guerra civil sobre a classe operária.

Os custos da guerra civil

Em seus escritos sobre as causas da degeneração do Partido Bolchevique, Trotsky se referia frequentemente ao esgotamento físico e espiritual da classe operária até o final da guerra civil em 1921. Estudos recentemente publicados por historiadores conscientes – cujas obras, como era de se esperar, são muito menos conhecidas do público em geral – fornecem informações factuais importantes que lançam uma luz crítica sobre a escala da catástrofe social que o governo soviético enfrentava.

No valioso estudo O Estado e a Sociedade Soviética entre Revoluções, 1918-1929, o Professor Lewis Siegelbaum, da Universidade do Estado de Michigan, cita dados estatísticos sobre a retração da classe operária industrial no curso da guerra civil. Na época da revolução, havia um total de 3,5 milhões de trabalhadores em fábricas que empregavam mais de dezesseis trabalhadores. Esse número caiu para dois milhões em 1918 e para 1,5 milhão até o final de 1920.

As piores perdas se deram nos grandes centros industriais. O número de trabalhadores industriais em Petrogrado era de 406.000 em janeiro de 1917. Em meados de 1920, esse número havia caído para 123.000. Além deste declínio numérico absoluto, a fração do proletariado em relação à população total da cidade também diminuiu significativamente.

Moscou perdeu cerca de 100.000 trabalhadores entre 1918 e 1920, e durante o mesmo período o número de trabalhadores de fábricas e de minas nos Urais caiu de 340.000 para 155.000.

Os principais setores industriais e manufatureiros da economia soviética sofreram perdas impressionantes. A indústria têxtil perdeu 72% de sua força de trabalho. A indústria metalúrgica e de máquinas perdeu 57%.

O declínio do proletariado fez parte de um processo geral de diminuição da população urbana. De 2,5 milhões de habitantes em 1917, apenas 722.000 pessoas moravam em Petrogrado em 1920, o mesmo número de meio século antes. A população de Moscou passou de 2 milhões em fevereiro de 1917 para um pouco mais de um milhão no final de 1920, um pouco menos do que o número registrado no censo de 1897.

Muitos fatores contribuíram para esse processo desastroso, dos quais a disseminação de doenças estava entre os mais importantes. Dezenas de milhares de pessoas sucumbiram durante epidemias de cólera, influenza, tifo e difteria. A taxa de mortalidade em Moscou subiu de 23,7 por mil em 1917 para 45,4 em 1920.

Outro fator importante na diminuição da população e na desindustrialização foi a necessidade desesperada do recém-criado Exército Vermelho de recrutar soldados para combater o Exército Branco apoiado pelos imperialistas. As mobilizações do Exército Vermelho retiraram bem mais de meio milhão de operários das fábricas entre 1918 e 1920.

O impacto desta catástrofe demográfica foi sentido não apenas economicamente, mas também politicamente. Os sucessos do Exército Vermelho dependeram, em grande medida, da devoção e da iniciativa dos setores mais conscientes da classe operária. O esgotamento do proletariado industrial envolveu a perda precisamente daqueles trabalhadores que haviam desempenhado papéis importantes nas lutas revolucionárias de 1917, em comitês de fábrica ou em outras organizações lideradas pelo partido. Não há dúvida de que um setor estatisticamente significativo de trabalhadores que tinha, no mínimo, votado nos bolcheviques nas eleições para os Sovietes e depois para a Assembleia Constituinte, foi tirado das localidades industriais pelas exigências da guerra civil.

Os prejuízos sofridos pelo Partido Comunista foram espantosos. Estima-se que 200.000 dos 500.000 comunistas que serviram no Exército Vermelho foram mortos durante a guerra civil. As implicações políticas de tais taxas de mortalidade devastadoras entre os quadros revolucionários podem ser mais bem compreendidas se comparadas com o ingresso de novos membros no Partido Comunista, particularmente depois que a posição militar do governo soviético melhorou como resultado de grandes vitórias no outono de 1919. Entre agosto de 1919 e março de 1920, o número de membros do partido cresceu de 150.000 para 600.000. A quantidade de novos membros foi, em geral, muito inferior ao número de vítimas.

Ao final da guerra civil, a base social e política do governo soviético e do partido no poder tinham sido significativamente alteradas. A “ditadura do proletariado” havia perdido uma parte significativa do proletariado no qual havia se baseado. E o “partido de vanguarda” havia sofrido a perda de uma grande parte daqueles que, por uma longa experiência, haviam constituído uma verdadeira vanguarda política dentro da classe operária. Além disso, a composição social do Partido Bolchevique havia sofrido uma mudança fundamental. A porcentagem de membros que descreveram sua origem social como de colarinho branco, em oposição ao proletário, havia aumentado significativamente. Siegelbaum chama a atenção para a crescente importância desse “estrato médio inferior”, ou pequena burguesia, nos assuntos do partido e das organizações estatais.

Os estratos médios inferiores assim se inseriram com sucesso na revolução operária e camponesa. O resultado foi que a composição social do Estado revolucionário foi mais heterogênea e menos proletária do que geralmente tem sido reconhecido. O impacto que estes “elementos estranhos” tiveram sobre o funcionamento cotidiano do Estado, se eles possuíam uma psicologia específica que era ela mesma estranha ao projeto revolucionário original, não é totalmente claro. [11]

O caráter do Partido Bolchevique foi alterado não apenas pela perda de quadros experientes da classe operária e pelo ingresso de dezenas de milhares de recrutas inexperientes e politicamente questionáveis. Entre os quadros mais velhos que haviam sobrevivido aos anos de revolução e guerra civil, as “exigências profissionais do poder” (para tomar emprestada uma frase usada por Christian Rakovsky, o aliado político mais próximo de Trotsky na Oposição) causaram um impacto imprevisto e sério. Em um país atrasado, onde uma grande parte da população era analfabeta e as habilidades técnicas eram limitadas, os membros do partido eram invariavelmente arrastados para posições administrativas e de gestão. As inúmeras e cada vez maiores agências do Estado e organizações partidárias vinham em busca de serviços de quadros que possuíam algum tipo de habilidade administrativa. Dessa forma, uma parte significativa do quadro partidário foi absorvida por um processo de burocratização.

Rakovsky e Trotsky em 1924

Em meio ao caos econômico e à pobreza desesperada, as posições dentro das organizações e agências do Estado e do partido proporcionaram alguma pequena medida de segurança pessoal. A possibilidade de obter uma refeição satisfatória por dia no refeitório do local de trabalho constituía um privilégio não insignificante. De todas as pequenas – mas não menos importantes – maneiras, uma casta burocrática, com interesses sociais específicos, gradualmente tomou forma.

O impacto da NEP

O governo soviético introduziu a Nova Política Econômica (NEP) em 1921. Ele incentivou o renascimento de um mercado capitalista a fim de restaurar as bases da atividade econômica organizada na Rússia. Embora fosse uma resposta necessária à situação econômica em ruínas enfrentada pelo Estado soviético isolado, a NEP acelerou o processo de degeneração política dentro do partido no poder. Dado o fato de que a base proletária do Estado e do partido havia sido drasticamente enfraquecida, o impulso dado pela NEP ao crescimento das tendências capitalistas dentro da Rússia soviética estava fadado a ter consequências políticas perigosas.

A NEP deu nova vida aos elementos sociais que tinham visto a Revolução Bolchevique como o apocalipse. Empresários e comerciantes ressurgiram, e em 1922 uma bolsa de valores estava mais uma vez operando em Moscou. O clima social tornou-se muito mais tolerante à desigualdade, e os humores que refletiam um certo declínio moral e político encontraram expressão dentro dos membros do partido, particularmente aqueles que eram ativos nos escalões superiores da burocracia.

A NEP contribuiu para um renascimento de sentimentos claramente nacionalistas. A Revolução de Outubro foi um grande evento na história do movimento operário internacional. Mas foi também um episódio transformador na história da Rússia. A revolução levou milhões de pessoas à ação, tanto operários como camponeses, em um projeto épico de reconstrução social. A revolta alterou inúmeros aspectos da vida cotidiana. Para muitos membros do partido – especialmente os novos recrutas dos estratos médios inferiores para os quais o regime bolchevique havia aberto novas oportunidades – a Revolução de Outubro apareceu como o início de um grande renascimento nacional. Contra o pano de fundo das derrotas da classe operária europeia, as tarefas práticas de construção da economia nacional soviética pareceram a essas forças muito mais realistas do que a visão da revolução socialista mundial.

O caráter da vida política dentro do partido se deteriorou. A partir de 1920, os principais bolcheviques expressaram frequentemente sua ansiedade sobre a burocratização do aparato estatal. Lenin na verdade se referiu à Rússia soviética como um “Estado operário com uma reviravolta burocrática”. Mas apesar das preocupações, o processo de burocratização foi alimentado por tendências objetivas profundamente enraizadas no atraso da Rússia, e o próprio partido não podia permanecer imune à intromissão da burocracia em todas as esferas da vida social. Na ausência de uma classe operária politicamente ativa, os métodos de gestão e administração burocrática migraram rapidamente para os assuntos do partido. A expressão mais pronunciada desse processo foi a crescente influência de Stalin, cuja principal responsabilidade como secretário-geral consistia em selecionar o pessoal necessário para a ocupação de cargos críticos do partido e do Estado. Cada vez mais, o poder de nomeação, que Stalin usou para construir uma rede de apoiadores, invalidou e substituiu as formas tradicionais de democracia partidária.

Em março de 1922, no 11º Congresso do Partido, Lenin advertiu que o partido corria o risco de ser esmagado pela burocracia que administrava o Estado. Pouco depois, um derrame o afastou da atividade política por vários meses. Quando voltou ao trabalho no outono de 1922, Lenin ficou atônito com o grau de deterioração da situação dentro do partido. Ele identificou Stalin como a figura-chave no processo de degeneração burocrática. Está claro pelas notas e documentos elaborados por Lenin durante os últimos meses de sua vida politicamente ativa que estava se preparando para um confronto decisivo com Stalin no 12˚ Congresso do Partido, agendado para abril de 1923. O famoso testamento escrito por Lenin pedindo a remoção de Stalin do cargo de secretário-geral, assim como a carta que Lenin enviou a Stalin ameaçando quebrar todas as relações pessoais com ele, faziam parte de um dossiê político que Lenin pretendia apresentar ao congresso do partido. O derrame fulminante sofrido por Lenin em março de 1923 salvou a carreira política de Stalin.

Nos meses que se seguiram à morte de Lenin, cresceu a oposição aos métodos burocráticos empregados pelo “triunvirato” de Stalin, Zinoviev e Kamenev. As tensões políticas foram exacerbadas pelo aprofundamento da ansiedade sobre as consequências da NEP, expressa particularmente, como explicou Trotsky na primavera de 1923, no agravamento da disparidade entre os preços industriais e agrícolas e a contínua deterioração das condições da classe operária.

A Oposição de Esquerda

À medida que ficava claro que Lenin não voltaria à atividade política, Trotsky foi pressionado a falar contra a supressão da democracia no interior do partido. Em 8 de outubro de 1923, Trotsky dirigiu uma carta ao Comitê Central que chamava a atenção para graves deficiências na política econômica, criticando também a burocratização da vida partidária. Uma semana depois, suas críticas foram endossadas em uma “Declaração” assinada por quarenta e seis proeminentes membros do partido. Esses eventos marcaram o início da luta política da Oposição de Esquerda.

O mito de que o stalinismo cresceu organicamente a partir da ideologia marxista e bolchevique é contrariado pelo registro histórico. Existem dezenas de milhares de documentos, a maioria escondida do povo soviético por décadas, nos quais o desenvolvimento do marxismo encontrou expressão na luta travada contra a burocracia stalinista.

A visão da Oposição encontrou expressão na “Declaração dos 46”, que alertava que a menos que houvesse uma mudança radical nas políticas e métodos da liderança, “a crise econômica na Rússia soviética e a crise da ditadura entre frações no partido infligirá golpes pesados à ditadura operária na Rússia e ao Partido Comunista Russo. Com tal carga sobre seus ombros, a ditadura do proletariado na Rússia e seu líder, o PCR, não podem entrar na fase de iminentes novos distúrbios mundiais, exceto com a perspectiva de derrotas em toda a frente da luta do proletariado.” [12]

As questões que levaram à fundação da Oposição em 1923 foram o crescimento do burocratismo dentro do partido e as diferenças sobre a política econômica. Mas foi somente depois que a luta foi travada dentro do partido que toda a profundidade das diferenças programáticas das tendências em conflito, e, mais fundamentalmente, as forças sociais antagônicas sobre as quais elas se baseavam, emergiram abertamente. A princípio, as críticas de Trotsky e da Plataforma dos 46 desordenaram o triunvirato, e ofereceram algumas concessões políticas pouco sinceras. Mas ele depois recuperou sua coragem, contra-atacou e apelou para as forças sociais que, no âmbito da NEP, haviam se tornado a nova base do regime soviético. Esse foi o significado da apresentação de Stalin no final de 1924 da teoria do “socialismo em um só país”.

É duvidoso que Stalin tenha antecipado a resposta que seria evocada por essa revisão da perspectiva internacional na qual a Revolução Bolchevique havia se baseado, ou que ele tenha até compreendido por que Trotsky deu a sua nova teoria um significado tão abrangente. Mas Stalin já deve ter sentido que existia dentro do partido, para não mencionar na população em geral, uma base que saudaria tal reformulação nacionalista da perspectiva do partido. Ao declarar que o socialismo poderia ser construído em um só país, Stalin estava validando as práticas e perspectivas que haviam se tornado bastante comuns entre dezenas de milhares de burocratas partidários.

Socialismo em um só país

A teoria do “socialismo em um só país” apelou especialmente para os crescentes estratos burocráticos que estavam tendendo a identificar com crescente consciência seus próprios interesses materiais com o desenvolvimento da economia soviética “nacional”. Mas não eram apenas os burocratas que respondiam a essa perspectiva. Dentro de amplas camadas da classe operária, o esgotamento político geral expressou-se em um recuo das aspirações internacionalistas da Revolução de Outubro. Especialmente depois do desastre sofrido pelo Partido Comunista Alemão em outubro de 1923, a promessa de uma solução nacional para a crise da sociedade soviética parecia oferecer uma nova salvação para a revolução sitiada.

Em um de seus momentos mais sinceros, Stalin sugeriu que a teoria do “socialismo em um só país” servia para oferecer às massas soviéticas um motivo para acreditar que a Revolução de Outubro não tinha sido feita em vão, e que aqueles que negavam a possibilidade de construir o socialismo na Rússia, independentemente do destino do movimento revolucionário internacional, estavam amortecendo a fé e o entusiasmo da classe operária. Era necessário assegurar aos trabalhadores que eles estavam, através de seus próprios esforços, alcançando o socialismo. A argumentos deste tipo, Trotsky respondeu em 1928:

A teoria do socialismo em um só país leva inevitavelmente a uma subestimação das dificuldades que devem ser superadas e a um exagero das conquistas alcançadas. Não se podia encontrar uma afirmação mais antissocialista e antirrevolucionária do que a afirmação de Stalin de que “o socialismo já foi 90% realizado na URSS” ... É necessária uma verdade dura e não uma falsidade açucarada para fortalecer o operário, o trabalhador agrícola e o camponês pobre, que veem que no décimo primeiro ano da revolução, a pobreza, a miséria, o desemprego, as filas de pão, o analfabetismo, as crianças sem teto, a embriaguez e a prostituição não diminuíram ao seu redor. Em vez de dizer-lhes mentiras sobre ter realizado 90% do socialismo, devemos dizer-lhes que nosso nível econômico, nossas condições sociais e culturais, se aproximam hoje muito mais do capitalismo, e de um capitalismo retrógrado e sem cultura, do que do socialismo. Devemos dizer-lhes que só entraremos no caminho da verdadeira construção socialista quando o proletariado dos países mais avançados tiver tomado o poder; que é necessário trabalhar incessantemente para isso, usando ambas as alavancas – a pequena alavanca de nossos esforços econômicos internos e a longa alavanca da luta proletária internacional. [13]

A insistência na indissociável dependência da União Soviética do desenvolvimento da revolução socialista mundial e, por outro lado, a impossibilidade de construir o socialismo em um só país, constituiu a base teórica e programática da luta travada por Trotsky e pela Oposição de Esquerda contra a burocracia stalinista. Não é possível entender o programa da Oposição de Esquerda se seus elementos separados – como o restabelecimento da democracia partidária, o desenvolvimento do planejamento, o fortalecimento da indústria – estiverem desligados dessa concepção unificadora central.

A maioria dos historiadores, incluindo aqueles que não são totalmente antipáticos a Trotsky, estão inclinados a ver em seu compromisso com a revolução mundial o elemento mais fraco de seu programa geral. E, portanto, mesmo os historiadores simpáticos tendem a tratar sua oposição ao stalinismo como se fosse quixotesca. Ao perseguir a quimera da revolução mundial, eles sugerem, Trotsky falhou em ancorar sua oposição ao stalinismo a uma base segura.

Essa crítica subestima gravemente o potencial revolucionário que existia no movimento operário internacional dos anos 1920 e 1930, e não consegue apreciar o impacto realmente terrível do stalinismo no desenvolvimento da revolução mundial. A destruição política da Internacional Comunista pelos stalinistas – isto é, sua transformação em um apêndice da burocracia soviética – foi a principal causa das calamitosas derrotas sofridas pela classe operária, sobretudo no Reino Unido em 1926, na China em 1927, na Alemanha em 1933 e na Espanha em 1936-37. Essas derrotas, por sua vez, afetaram profundamente o curso dos acontecimentos dentro da União Soviética.

O que explica essa falha, mesmo entre historiadores contemporâneos conscientes, em estudar a estratégia revolucionária internacional de Trotsky e da Oposição de Esquerda com a seriedade que ela merece? O ambiente político reacionário e a cultura intelectual estagnada exercem uma influência nefasta sobre os acadêmicos. Pouco resta de seu otimismo de juventude. O ceticismo em relação, senão mesmo a rejeição total, da própria possibilidade da revolução socialista é uma resposta ao terrível declínio do nível político e teórico do movimento operário internacional. Os historiadores contemporâneos, mesmo aqueles que antes se consideravam simpáticos ao socialismo – e foram atraídos, por essa mesma razão, a estudar a Revolução Russa – agora acham impossível imaginar um movimento operário de massas liderado por marxistas e animado por aspirações internacionalistas revolucionárias. Seu pessimismo atual adquiriu um caráter retrospectivo. Eles projetam seu atual senso de desesperança sobre o futuro em suas avaliações de revoluções passadas.

Isso nos leva, para concluir, ao significado atual da Oposição de Esquerda como um objeto de estudo histórico contemporâneo. Essa, estou convencido, é uma das áreas mais ricas e mais importantes para pesquisadores sérios. Até recentemente, não havia possibilidade de realizar um estudo sistemático da Oposição de Esquerda. Comparativamente, pouco se sabe sobre este extraordinário movimento de oposição política à ditadura totalitária. Este terrível vazio em nosso conhecimento de uma das mais importantes lutas políticas da história do século XX é o legado do stalinismo. A consolidação do poder da burocracia soviética foi acompanhada pelo descrédito, criminalização e destruição física de seus opositores políticos. O terror foi complementado por uma campanha de falsificação histórica que teve como objetivo a obliteração da consciência da classe operária soviética e internacional de todos os traços da grande tradição e cultura marxista representada por Trotsky e pela Oposição de Esquerda. Somente assim a burocracia soviética poderia estabelecer a falsa identificação do stalinismo com o marxismo.

As condições para a destruição do vasto edifício de mentiras estão agora emergindo. A abertura dos arquivos na Rússia, apesar das circunstâncias políticas que tornaram isso possível, marca o início de uma nova era nos estudos soviéticos – e uma com as mais profundas implicações intelectuais e políticas para o futuro do marxismo.

Lentamente, mas seguramente, a descoberta, publicação e assimilação crítica de documentos e manuscritos há muito tempo perdidos irá remodelar a consciência pública sobre o desenvolvimento histórico da Revolução Russa. Haverá um reconhecimento crescente da alternativa marxista ao stalinismo avançada por Trotsky e pela Oposição de Esquerda. Brilhantes figuras políticas como Rakovsky, Preobrazhensky, Piatakov, Joffe, Sosnovsky, Eltsin, Ter-Vaganian, Boguslavsky, Vilensky e Voronsky, para citar apenas alguns dos principais membros da Oposição de Esquerda, serão objeto de grandes biografias; por sua vez, a vida de Trotsky – uma das maiores figuras políticas e intelectuais do século XX – será reexaminada à luz de novas e vitais informações. O marxismo e a causa do socialismo internacional só podem ganhar com esse processo vital de renovação intelectual.

Referências

1. Dmitri Volkogonov, Lenin: A New Biography (Nova York: The Free Press, 1994), p. 178.

2. “Utopias in History,” In: Acts/Proceedings, 18th International Congress of Historical Sciences (Montreal, 1995), pp. 487–489.

3. Dmitri Volkogonov, Stalin: Triumph and Tragedy (Nova York: Grove Weidenfeld, 1988), p. 254.

4. Ibid., pp. 255–259.

5. Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism, Volume 3, “The Breakdown” (Nova York: Oxford University Press, 1978), p. 2.

6. Ibid., pp. 8–9 e p. 22.

7. Lars T. Lih, Oleg V. Naumov and Oleg V. Khlevniuk, ed., Stalin’s Letters to Molotov (New Haven: Yale University Press, 1995), p. 114.

8. Rosa Luxemburgo, The Russian Revolution and Leninism or Marxism? (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1961), p. 28.

9. Ibid., pp. 78–80.

10. Ibid., p. 80.

11. Lewis Siegelbaum, Soviet State and Society Between Revolutions, 1918–1929 (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), pp. 62–63.

12. Leon Trotsky, The Challenge of the Left Opposition 1923–25 (Nova York: Pathfinder Press, 1975), p. 450.

13. Leon Trotsky, The Third International After Lenin (Nova York: Pathfinder Press, 1996), pp. 84–85.

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