Publicado originalmente em 2 de fevereiro de 2022
Poderosos setores da elite dominante do Canadá incitaram um movimento extraparlamentar de extrema-direita que está hoje acampado de forma ameaçadora em frente ao parlamento nacional e comprometido a permanecer até que suas demandas sejam atendidas.
A ameaça de violência política paira sobre a capital do Canadá. Pelo quinto dia consecutivo ontem, apoiadores do “Freedom Convoy” [Comboio pela Liberdade] extrema direita e seus veículos paralisaram os arredores do parlamento, perturbando o cotidiano no centro da cidade de Ottawa. Ontem à tarde, o chefe da polícia de Ottawa, Peter Sloly, alertou sobre as contínuas incitações ao “comportamento desordeiro” e “a introdução de armas e armamentos na Região da Capital Nacional”.
Independentemente do desfecho dessa crise nos próximos dias, pode-se dizer com certeza que esse é um ponto de inflexão na crise e ruptura da forma de governo democrático-constitucional no que tem sido historicamente um dos países imperialistas mais privilegiados.
Lançado ostensivamente para pressionar o governo federal liberal a eliminar a nova obrigatoriedade da vacinação para caminhoneiros transfronteiriços, o “Freedom Convoy” é liderado por elementos de extrema-direita e fascistas, cujas posições antidemocráticas nocivas são repreensíveis para a grande maioria dos canadenses. Quase 90% dos caminhoneiros canadenses estão totalmente vacinados.
No entanto, a oposição oficial conservadora, os grandes grupos de lobby empresarial e grande parte da mídia promoveram o comboio como um movimento popular de base, e até mesmo a voz autêntica dos “trabalhadores comuns”, com o objetivo imediato de usá-lo para atacar todas as medidas de saúde pública restantes contra a COVID-19.
Apesar da exaustiva cobertura da imprensa durante a maior parte da semana promovendo o “Freedom Convoy” enquanto ele vinha do oeste do Canadá, não mais do que 20 mil pessoas saíram às ruas de Ottawa no último fim de semana. Dito isso, o comboio deve ser reconhecido pelo que é ‒ uma mobilização fascista. Durante o fim de semana, os apoiadores do comboio, alguns deles balançando bandeiras dos estados confederados durante a guerra civil nos EUA e suásticas nazistas, desafiaram medidas de saúde pública, agrediram pessoas sem-teto, atiraram pedras nos paramédicos e depredaram monumentos. Um evento para marcar o quinto aniversário do tiroteio na mesquita na cidade de Quebec, no qual seis pessoas foram mortas por um atirador fascista, teve que ser cancelado devido a ameaças de violência.
O Unidade do Canadá (Canada Unity), grupo de extrema direita que iniciou o comboio e que declara possuir um “plano de contingência” caso a polícia tente encerrar o protesto, está defendendo publicamente um golpe. O grupo emitiu um memorando que pede explicitamente a destituição do governo democraticamente eleito do Canadá e a abolição de todas as medidas restantes contra a COVID-19 através de uma ação conjunta de um “Comitê de Cidadãos Canadenses”, composto por líderes do “Freedom Convoy”, do Senado não eleito e do governador-geral, representante da rainha em Ottawa. O memorando explica que, durante 90 dias, o “Comitê dos Cidadãos” governaria na prática como uma junta com poder de veto a todas as declarações do governo.
Embora alguns setores da mídia tenham recuado, o Partido Conservador da oposição ampliou seu apoio à multidão de extrema-direita. Na segunda-feira, na Câmara dos Deputados, Candice Bergen descreveu os manifestantes como “canadenses patriotas e que amam a paz”. Tanto ela quanto a líder conservadora, Erin O'Toole, apoiada pela mídia de direita como o Toronto Sun e o National Post, exigem que o primeiro-ministro, Justin Trudeau, encontre-se com os líderes do “Freedom Convoy” para trabalhar pela “unidade nacional”.
O “Freedom Convoy” foi elogiado por figuras decisivas ‒ começando por Donald Trump ‒ que organizaram a tentativa de golpe de Estado de 6 de janeiro de 2021 com o objetivo de anular o resultado das eleições presidenciais americanas de 2020 e colocar Trump à frente de uma ditadura presidencial. Falando em um comício no sábado passado, onde ele prometeu perdoar os fascistas que invadiram o Capitólio, Trump apontou o comboio como um modelo a ser seguido.
Não pode haver dúvidas de que o apoio do ex-presidente fascista vai além das declarações. O Partido Conservador do Canadá desenvolveu ligações políticas e pessoais próximas com os republicanos de extrema direita nas últimas décadas, com ambos os partidos se tornando incubadoras de forças fascistas. Com seu apoio ao comboio da extrema-direita e o que é na prática sua busca da violência política, a liderança do Partido Conservador está se baseando nas ações de Trump.
O acampamento de ativistas de extrema-direita no centro da capital do Canadá, muitos deles expressando em termos abertos intenções violentas em relação a Trudeau, é uma provocação e ameaça. Embora não se possa dizer com certeza como isso irá terminar, é manifestamente claro que importantes setores da classe dominante conjuraram um movimento extraparlamentar de extrema-direita com o objetivo de pressionar intensamente a política para a direita e, ao máximo possível, forçar a saída do governo liberal minoritário.
O seu objetivo imediato é o desmantelamento de todas as restrições contra a COVID-19, o que levará a outras milhões de infecções e milhares de mortes desnecessárias. Eles também estão exigindo uma escalada dramática do ataque contra a classe trabalhadora, com um rápido pivô na direção da austeridade “pós-pandemia” e a implementação de uma “agenda de crescimento” pró-investidor; e para o imperialismo canadense desempenhar um papel ainda mais agressivo como um cão de ataque para Washington em seu imprudente impulso de guerra contra a Rússia. Os mesmos políticos que estão elogiando o “Freedom Convoy” como um golpe contra a “tirania” de Trudeau têm denunciado seu governo por não ter enviado armas letais para a Ucrânia.
Se houver um confronto violento entre a polícia e os manifestantes de extrema-direita, as figuras da classe dominante que promoveram o comboio irão procurar atribuir a culpa ao governo. Trudeau será denunciado por não “prevenir a violência”, “conversando” com os manifestantes, ou seja, fazendo concessões às suas demandas fascistas. Isso poderia se tornar uma alavanca com a qual o Partido Conservador, outras seções do establishment e seus aliados de extrema-direita insistiriam em novas mudanças na política ou provocariam a queda do governo.
A elite dominante do Canadá vê cada vez mais como um impedimento as formas democráticas de governo que tradicionalmente utilizou para mitigar as tensões sociais e fornecer uma aura de legitimidade ao governo de sua classe. As greves são rotineiramente proibidas e os poderes e o alcance do aparato de segurança nacional têm sido vastamente ampliados.
Em dezembro de 2008, apenas semanas após o colapso financeiro global, o então primeiro ministro do Partido Conservador, Stephen Harper, influenciou a governadora-geral não eleita para que utilizasse seus poderes vastos e arbitrários para fechar o parlamento e impedir que os partidos da oposição votassem a favor da destituição de seu governo de minoria. A classe dominante apoiou esmagadoramente o “golpe constitucional” de Harper, demonstrando que ele estava pronto para atropelar as normas democráticas mais básicas para garantir um “governo forte”, capaz de impor enormes ataques contra a classe trabalhadora e permanecer no cargo.
As tensões de classe estão muito mais avançadas hoje do que 2008. A elite dominante do Canadá aproveitou a pandemia para se enriquecer enormemente, ao mesmo tempo em que permitiu que o vírus mortal se espalhasse desenfreadamente. Os trabalhadores estão se radicalizando e começaram a reagir com uma série de greves e protestos militantes, exigindo proteções contra a COVID-19 e o fim de décadas de concessões e austeridade.
O governo Trudeau do Partido Liberal tem liderado a política em resposta à pandemia da classe dominante de lucros acima das vidas e de retorno às escolas que levou a cinco ondas sucessivas de infecção em massa e causou mais de 33.800 mortes até hoje. A política durante a pandemia tem canalizado centenas de bilhões para o mercado de ações e para os cofres das grandes empresas para sustentar os lucros e a riqueza dos investidores. Desde que retornou ao poder por pouco nas eleições de setembro passado com um segundo mandato em um governo de minoria, Trudeau e seus liberais se deslocaram ainda mais para a direita, eliminando praticamente todo o auxílio emergencial para os trabalhadores, integrando ainda mais o Canadá nas ofensivas estratégicas militares dos EUA contra a Rússia e a China, e permitindo que a Ômicron se espalhasse descontrolada.
No entanto, poderosos setores da elite dominante estão irritados, frustrados e temerosos com a continuação do forte apoio popular às medidas de saúde pública, incluindo os lockdowns, e com a profunda oposição ao seu belicismo contra a Rússia e a China. O medo deles é impulsionado pela crescente resistência da classe trabalhadora. O governo de Trudeau tem contado com uma estreita parceria com os sindicatos corporativistas para suprimir a luta de classes, mas os sindicatos estão cada vez mais desacreditados e enfrentam crescente oposição. Em resposta, setores da classe dominante favorecem uma ação preventiva. Para preparar o capitalismo canadense para uma colisão frontal com a classe trabalhadora, eles querem levar ao poder um governo declaradamente reacionário, livre das restrições democráticas tradicionais, e cultivar grupos fascistas como tropas de choque contra a classe trabalhadora.
Os eventos no Canadá ressaltam que a ruptura da democracia burguesa é um processo universal. Níveis sem precedentes de desigualdade social, conflito entre grandes potências e guerra imperialista, e a política assassina de imunidade de rebanho são incompatíveis com formas de governo democráticas.
É por isso que as elites dominantes em todos os principais países capitalistas têm avançado sistematicamente com forças de extrema direita e fascistas. Na Alemanha, o neofascista Alternativa para a Alemanha foi promovido pela mídia e pelo establishment político, efetivamente ditou a política de governo para os refugiados, e desempenhou um papel de liderança na mobilização de protestos de extrema direita para exigir o fim dos lockdowns contra a COVID-19. Os planos dentro entre os militares na França e na Espanha ressaltam que a democracia burguesa está no seu leito de morte em toda a Europa. Nos Estados Unidos, o centro da crise capitalista mundial, Trump continua livre para falar aos comícios de milhares de apoiadores de extrema direita, mais de um ano após ele e grande parte da liderança do Partido Republicano terem tentado, através de um golpe fascista, anular as eleições presidenciais e instalar um Führer na Casa Branca.
No Canadá, assim como no mundo, o perigo representado pela extrema-direita vem do fato de que ela é promovida de cima, por setores significativos da elite dominante. Os grupos fascistas como os que lideram o “Freedom Convoy” não desfrutam de praticamente nenhum apoio popular. A grande maioria dos trabalhadores observa os acontecimentos em Ottawa com uma mistura de repugnância e indignação.
Esses sentimentos inteiramente saudáveis não encontram expressão nos sindicatos e no socialdemocrata Novo Partido Democrático (NDP). Na verdade, é a contínua capacidade dessas organizações podres e pró-capitalistas de amordaçar politicamente a classe trabalhadora que permite que a elite dominante e seus aliados fascistas entrem na ofensiva. Os sindicatos têm trabalhado para sabotar toda expressão de oposição dos trabalhadores à política dos lucros antes das vidas em resposta à pandemia, enquanto o NDP tem apoiado o governo liberal minoritário no parlamento desde 2019, votando pelos seus resgates bancários e das grandes empresas, cortes no auxílio emergencial para os trabalhadores, e aumentos nos gastos militares.
Tudo depende agora da construção de um movimento político independente da classe trabalhadora para se opor à política de infecção e morte em massa da elite dominante, ao impulso de guerra e à ameaça da extrema direita fascista. A defesa dos direitos democráticos é inseparável da luta para quebrar o controle da oligarquia financeira sobre todos os aspectos da vida social e política, o que exige a transformação socialista da sociedade. Os trabalhadores no Canadá devem travar essa luta sobre uma base internacional, unindo-se aos trabalhadores dos Estados Unidos, da Europa e do mundo inteiro, que enfrentam as ameaças gêmeas das formas ditatoriais de governo e da guerra imperialista.
Nós chamamos todos dispostos a lutar por esse programa para que se juntem e construam o Partido Socialista pela Igualdade (Canadá) e seus partidos irmãos em todo o mundo.