A erupção da crise capitalista global, expressa na escalada da guerra e em crescentes choques econômicos, está expondo a falência política das organizações da pseudoesquerda, representantes de seções privilegiadas da classe média umbilicalmente ligadas ao capitalismo e seus Estados nacionais.
A revista Jacobin é altamente representativa da resposta política dessas camadas da classe média alta ao colapso global do capitalismo e a guinada à guerra mundial.
Impulsionada pelo Democratic Socialists of America (DSA), uma facção pseudoesquerdista do Partido Democrata dos Estados Unidos, a Jacobin buscou se projetar na última década como um órgão ideológico oficial da pseudoesquerda. Recentemente, investiu fortemente na expansão de sua influência sobre a América Latina, inaugurando em 2019 uma edição regional em espanhol e uma edição brasileira em português.
Todas as forças que a Jacobin promoveu como exemplos da “renovação do socialismo” no século XXI se provaram como instrumentos da reação capitalista, a começar pelo próprio DSA. Os membros do DSA no parlamento estão votando ao lado dos demais representantes do imperialismo americano para expandir a guerra contra a Rússia na Ucrânia e, internamente, reprimir as lutas crescentes da classe trabalhadora.
Na América Latina, nos últimos dois anos, partidos e figuras ligados à “Maré Rosa” nacionalista burguesa retornaram ao poder em uma série de países devastados pela pandemia de COVID-19, crescente desigualdade social e estagnação econômica persistente. Esse processo foi apresentado pela Jacobin como “um lembrete de que a política socialista continua a oferecer uma alternativa a um sistema em crise”.
A verdade, entretanto, é que os representantes cada vez menos “rosados” da burguesia latino-americana apenas continuaram os ataques dos governos de extrema-direita anteriores à classe trabalhadora e orientaram seus países cada vez mais abertamente para o imperialismo europeu e americano.
Um caso emblemático é o breve governo do peruano Pedro Castillo, cuja inauguração em julho de 2021 foi retratada pela Jacobin como o sinal de “uma nova Maré Rosa em desenvolvimento”. As políticas pró-capitalistas brutais implementadas por Castillo em seus primeiros meses de mandato foram criminosamente encobertas pela revista pseudoesquerdista, que fraudulentamente apontou o atraso da “mentalidade popular” como culpado por sua guinada à direita.
Após o fim catastrófico dessa experiência com o golpe parlamentar de dezembro de 2022, a Jacobin não fez nenhum balanço do seu apoio a um governo que abriu caminho para o fortalecimento das forças militares e políticas fascistoides no Peru e ao regime ilegítimo e assassino de Dina Boluarte.
A fraude mais recente promovida pela Jacobin na América Latina é que o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder no Brasil representa “uma enorme vitória para a esquerda global”. Ela somente é capaz de fazer essa afirmação porque oculta o histórico de ataques à classe trabalhadora realizados pelo PT em seus 13 anos de mandato, bem como o caráter abertamente de direita da campanha presidencial de Lula.
A primeira e bastante aguardada visita do novo presidente brasileiro aos Estados Unidos, em 10 de fevereiro, desmascarou o projeto político completamente reacionário do PT e de seus apoiadores pseudoesquerdistas.
A Jacobin falsifica a agenda pró-imperialista de Lula nos EUA
Em sua cobertura da viagem de Lula a Washington, a Jacobin ocultou os discursos e acordos firmados pelo líder brasileiro com o presidente democrata Joe Biden, e buscou apresentar sua viagem como uma missão de esquerda aos EUA.
Os breves encontros realizados por Lula com os parlamentares pseudoesquerdistas do Partido Democrata, Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, uma integrante do DSA, foram interpretados no artigo da Jacobin “Lula sabe exatamente quem são seus aliados políticos” como o acontecimento mais significativo da viagem. Não importa que, diferentemente da reunião com Biden, esses encontros tenham se resumido a sessões de fotos.
O fato de o líder do PT, segundo informes obtidos pela revista, ter solicitado encontrar Sanders e Ocasio-Cortez foi apresentado pela Jacobin como um sinal do “apoio e afinidade ideológica de Lula com o par”. Segundo os padrões corrompidos da pseudoesquerda, esse gesto é o equivalente político à beatificação pelo próprio papa.
A Jacobin escreveu: “Lula está mais próximo que qualquer líder mundial atual de ser um ícone da esquerda internacional. Mesmo tendo detratores na esquerda brasileira e de outros países, ele é amplamente visto como um modelo de organização e governança da classe trabalhadora”. Com base nisso, eles concluem:
...É revelador que Lula tenha destacado Sanders e AOC – que os detratores insistem em apresentar como lacaios dos democratas e proponentes de um eleitoreirismo barato e hostil à verdadeira política da classe trabalhadora – como os tribunos da Esquerda nos Estados Unidos. Esse gesto está de acordo com a insistência de Lula há muito tempo de que a política eleitoral é um veículo crucial para o progresso social – e que a construção de poder político para proporcionar melhorias substanciais aos pobres e à classe trabalhadora é mais importante que a pureza ideológica.
Essa é uma argumentação tautológica: Lula é o “ícone da esquerda internacional” porque é “amplamente visto” desta forma. Ocasio-Cortez e Sanders são os “tribunos da Esquerda nos Estados Unidos” porque assim são vistos por Lula.
Retornaremos mais adiante àqueles apresentados como “detratores” de Lula, Sanders e Ocasio-Cortez, que são claramente o alvo fundamental deste artigo e dos ataques do DSA e da pseudoesquerda em geral.
Por ora, devemos apontar como é notável que a Jacobin reconheça abertamente que seus representantes são vistos como “lacaios dos democratas e proponentes de um eleitoreirismo barato e hostil à verdadeira política da classe trabalhadora”. Incapaz de refutar essa acusação, ela se contenta em indicar que Lula não se incomoda com isso.
Mas promover Sanders e Ocasio-Cortez, bem como os burocratas sindicais da AFL-CIO com os quais também se encontrou, não foi o foco da viagem de Lula a Washington. Esses encontros serviram apenas para dar uma fachada de “esquerda” aos verdadeiros objetivos do PT de desenvolver relações estratégicas com o imperialismo americano.
Sob a bandeira de aprofundar a integração política e econômica do Brasil aos Estados Unidos e “defender a democracia” em ambos os países, a reunião entre Lula e Biden marcou um aprofundamento da subordinação do governo brasileiro à política externa incendiária de Washington.
Tendo declarado que o objetivo de sua viagem aos EUA era “reposicionar o Brasil na nova geopolítica mundial”, Lula aceitou assinar uma nota conjunta com o governo Biden, que está em uma guerra de facto com a Rússia, condenando Moscou pela “violação da integridade territorial da Ucrânia”.
A promoção demagógica por ambos os presidentes de sua “aliança pela democracia” cumpriu o objetivo, primeiramente, de encobrir a crise mortal do sistema político democrático tanto no Brasil como nos Estados Unidos.
De acordo com essa narrativa fraudulenta, as erupções do fascismo na política americana e brasileira – marcadas pela invasão do Capitólio de Washington em 6 de janeiro de 2021 e, mais recentemente, a invasão das sedes de governo de Brasília em 8 de janeiro de 2023 – foram ameaças superadas por suas “fortes instituições” de Estado.
Na realidade, os ataques golpistas conduzidos em ambos os países por seus respectivos ex-presidentes, Donald Trump e Jair Bolsonaro, são manifestações agudas de um processo em curso de degeneração das formas democráticas de governo impulsionado pela crise capitalista mundial. No Brasil e EUA, forças fascistoides estão crescendo no aparato de Estado enquanto os democratas e o PT buscam conquistá-las com base na defesa dos interesses comuns da classe dominante.
A “defesa da democracia”, a justificativa habitual e hipócrita do imperialismo americano para todas as suas guerras e intervenções criminosas, também serviu como pretexto para Lula acomodar seu governo à agenda global agressiva de Washington.
O comunicado conjunto dos governos dos EUA e Brasil anunciou: “Como líderes das duas maiores democracias das Américas, o Presidente Lula e o Presidente Biden comprometeram-se a trabalhar juntos para fortalecer as instituições democráticas e saudaram a segunda Cúpula pela Democracia, a realizar-se em março de 2023”.
A Cúpula pela Democracia, agora abraçada por Lula, não passa de uma fachada vulgar para as provocações do imperialismo contra a Rússia e a China. Sua primeira edição, em dezembro de 2021, foi dedicada a culpar a “pressão externa dos autocratas” – um codinome para Pequim e Moscou – pela subversão da democracia nos EUA e outros países. Expondo a total fraude dessa iniciativa, Biden convidou figuras notoriamente antidemocráticas e fascistoides como o ex-presidente filipino, Rodrigo Duterte; o fantoche de Washington na Venezuela, Juan Guaidó; e o próprio Jair Bolsonaro.
O giro de Lula sobre a guerra na Ucrânia
Em seus dois primeiros meses de governo, Lula deu um giro significativo para acomodar seu governo ao imperialismo europeu e americano.
Há menos de um ano, quando ainda candidato, o líder petista resistia à narrativa fraudulenta de Washington de que a invasão da Ucrânia foi um ataque “não-provocado” da Rússia. Em uma entrevista importante à Times em maio de 2022, Lula declarou: “Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é só o Putin que é culpado, são culpados os Estados Unidos e é culpada a União Europeia”.
Quando o chanceler alemão, Olaf Scholz, visitou o Brasil no final de janeiro, Lula deu um passo inédito ao assinar uma nota conjunta com o governo alemão condenando “enfaticamente a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia”.
Contudo, na mesma ocasião, o petista constrangeu o líder alemão, que se preparava para enviar tanques à Ucrânia, ao recusar publicamente seu pedido para que o Brasil fornecesse munições. Deixando Scholz boquiaberto, Lula ainda propôs a criação de um “Clube da Paz” para incentivar o fim da guerra que incluísse a China.
As posições adotadas por Lula duas semanas depois em Washington demonstram que suas propostas para a paz mundial são mais do que falidas; elas servem como um acobertamento cínico aos principais promotores da guerra.
Após sua conversa com Biden, para quem “paz” é sinônimo da capitulação total de Putin e da partilha dos territórios e recursos naturais da Rússia, Lula chegou à conclusão de que o “comandante-em-chefe” das Forças Armadas dos EUA é o líder perfeito para seu “Clube da Paz”. Retornando ao Brasil, ele tuitou: “Precisamos começar um grupo de países que se organiza pela paz... Acho que o Biden tem a clareza que a guerra tem que parar”.
O corolário do abraço ao imperialismo americano pelo governo petista em Washington foi sua decisão de apoiar a resolução de 23 de fevereiro da ONU condenando Rússia, que quebrou o padrão do Brasil de abster-se em votações similares anteriores. A resolução, que exige o recuo da Rússia a posições pré-2014 e clama pela responsabilização de Putin “pelos crimes mais graves sob a legislação internacional”, prepara o terreno para a escalada da guerra pelas potências imperialistas no marco de um ano do seu início.
Mais que um zigue-zague político subjetivo, as mudanças de posição do governo Lula em relação à guerra na Ucrânia são expressão de movimentações no interior da classe dominante brasileira que o PT representa.
Embora os fortes laços econômicos do Brasil com a China e Rússia tenham estimulado sua burguesia nacional a buscar neutralidade nos conflitos instigados pelos EUA e as potências europeias, há uma crescente preocupação de que esta atitude pode lhe render uma posição marginal na nova redivisão imperialista do mundo.
Dando voz a essas percepções, o colunista da Folha de São Paulo e editor chefe da Interesse Nacional, Daniel Buarque, argumentou em uma análise recente que “a imparcialidade tradicional do país em disputas internacionais como a invasão da Ucrânia” é um grande entrave para “posicionar o Brasil no centro das grandes decisões globais”.
A pseudoesquerda versus a independência política da classe trabalhadora
A representação de Lula como “ícone da esquerda internacional” feita pela Jacobin se desfaz em pedaços diante da realidade. Mas esse não é um mero equívoco político.
As relações internacionais do DSA são uma extensão de sua orientação política nacional, voltada a blindar o imperialismo americano, Wall Street e seu sistema político bipartidário do enfrentamento pela classe trabalhadora.
As operações do DSA e da Jacobin na América Latina se inserem em uma longa tradição do Departamento de Estado americano de utilizar o aparato sindical e seus agentes supostamente “progressistas” para garantir os objetivos de Washington.
A burocracia sindical anticomunista da AFL-CIO, incondicionalmente defendida pelo DSA e com a qual Lula também se reuniu em Washington, atuou historicamente como uma frente da CIA no Brasil sob seu Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre (AIFLD) e seu sucessor, o Centro de Solidariedade. O AIFLD financiou um conjunto de sindicatos de direita no Brasil, posicionados em setores estratégicos de comunicação, que ajudaram a implementar o golpe militar de 1964 patrocinado pelos EUA.
Entre o meio pseudoesquerdista e pequeno-burguês brasileiro de acadêmicos e tendências stalinistas, pablistas e pós-modernistas, que disputaram entre si por espaço nas páginas da Jacobin Brasil, tanto as políticas do DSA como a orientação do PT ao imperialismo americano encontram ampla ressonância. Essas camadas têm servido como correia de transmissão da propaganda imperialista pró-guerra e até mesmo dos apelos à participação direta do Brasil no conflito na Ucrânia.
Uma das expressões mais gritantes dessa tendência é a campanha dos morenistas do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), através de seus representantes na burocracia sindical, pelo armamento massivo da Ucrânia e o desenvolvimento da indústria de guerra no Brasil. Agitando esse programa ultradireitista, os morenistas organizaram um desfile no último carnaval com carros alegóricos representando uma bateria de mísseis aéreos Astros 2020, produzidos pela empresa local Avibras, apontados para um boneco de Putin.
Ao passo que tanto a pseudoesquerda americana como a pseudoesquerda brasileira buscam em suas relações internacionais a promoção seus interesses próprios nacionalistas, elas convergem sobretudo na sua determinação comum de bloquear a aliança revolucionária da classe trabalhadora nos EUA e na América Latina.
O pior inimigo de todas essas tendências pró-capitalistas de classe média – descrito pela Jacobin como os “detratores” tanto de Lula quanto do seu próprio “eleitoreirismo barato” e hostilidade à classe trabalhadora – é o movimento trotskista, o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI). O CIQI e seu World Socialist Web Site estão em oposição irreconciliável a todas as agências nacionalistas promovidas pela pseudoesquerda para suprimir a classe trabalhadora como força política independente, desde os partidos falsamente “progressistas” burgueses até a burocracia sindical policial.
A crise que está levando o capitalismo a uma nova guerra mundial e à reação política universal também está criando as condições para a revolução socialista internacional. Nas crescentes lutas dos trabalhadores em todo o mundo, o Comitê Internacional luta para desenvolver a consciência da classe trabalhadora sobre seu próprio poder e interesses sociais independentes, e para mobilizá-la como uma força unificada internacionalmente para derrubar o capitalismo.
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