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A apreciação da pseudoesquerda sobre a “Maré Rosa”: Uma receita para futuras traições

O período de dominação da América Latina por governos nacionalistas-populistas conhecido como “Maré Rosa” chegou ao fim.

A ascensão dos tradicionais partidos de direita nas eleições argentinas de 2015 e o impeachment da ex-presidente brasileira Dilma Rousseff em 2016 marcaram um ponto histórico de inflexão com profundas implicações geopolíticas. Quase 20 anos após a eleição de Hugo Chávez em 1998 ter iniciado uma suposta guinada à esquerda na América Latina, a região ainda é a mais desigual do mundo. O destino político da Maré Rosa está simbolizado na Venezuela, onde um Nicolas Maduro em crise luta para prolongar o regime chavista através da repressão dirigida tanto contra uma direita emergente como contra os protestos alimentares de trabalhadores e jovens desnutridos e empobrecidos.

Entre uma variedade de publicações e grupos políticos autoproclamados socialistas em todo o mundo – muitos dos quais inicialmente entusiastas dos governos da Maré Rosa – o fim desse período proporcionou uma ocasião para reflexão.

Um livro recente, em particular, foi amplamente aclamado entre essa camada: The Last Day of Oppression and the First Day of the Same: The Politics and Economics of the New Latin American Left (O Último Dia da Opressão e o Primeiro Dia do Mesmo: A Política e a Economia da Nova Esquerda Latino-Americana), de Jeffrey R. Webber.

O livro é uma compilação das piores correntes do radicalismo pequeno-burguês latino-americano. O autor propõe a construção de movimentos políticos populistas supranacionais baseados em uma utopia romântica regionalista e uma rejeição do materialismo filosófico e do papel revolucionário da classe trabalhadora.

Webber é um acadêmico canadense que leciona na Universidade Queen Mary de Londres. Ele é um colaborador regular da International Socialist Review, ligada à Organização Socialista Internacional (ISO), e recebeu sua educação política como membro do New Socialist Group do Canadá.

Seu novo livro foi publicado pela Editora Haymarket, da ISO, e foi discutido em uma mesa redonda na conferência Materialismo Histórico, realizada em Nova York no dia 22 de abril. Um artigo que Webber escreveu como uma prévia do livro (intitulado “Avaliando a Maré Rosa”) foi publicado na revista Jacobin em 11 de abril e republicado pelo site pablista International Viewpoint. Nas últimas semanas, ele falou na Universidade da California em Berkeley, na Johns Hopkins e na Universidade de Harvard, e seu livro recebeu elogios de uma série de acadêmicos.

Vale a pena revisar o livro como um exemplar de tudo o que o socialismo não é.

Populismo vs. socialismo

O livro de Webber recebeu uma resposta calorosa da academia e da classe média alta “de esquerda” porque adota sua perspectiva antissocialista, avançando um método de análise que rejeita a divisão da sociedade em classes definidas cientificamente por sua relação com os meios de produção.

Embora Webber se defina como um marxista, ele adota categorias de análise social que nada têm a ver com o marxismo. Segundo ele, existem “pelo menos três forças sociais”: “as classes populares rurais e urbanas e os grupos oprimidos”, que são progressistas, além das “classes dominantes domésticas”, e o “imperialismo”.

As “classes populares” são determinadas não por seus membros serem forçados a vender sua força de trabalho para sobreviver, mas por seu gênero, raça e sexualidade, que Webber chama de “tipos de opressões sociais”. Enquanto a classe social é um fator para determinar o grau de opressão, os membros das classes média e alta podem se juntar às fileiras da força social progressista “popular” dependendo da cor de sua pele, de sua orientação sexual ou de seu gênero.

Webber rejeita o papel predominante da classe econômica no pertencimento às “classes populares”. Ele escreve que várias formas de identidade pessoal “não são meros epifenômenos [ou seja, subprodutos] da estrutura de classe, nem são redutíveis à exploração de classe”.

Ele ataca explicitamente aqueles que afirmam que a classe social é a principal linha divisória na sociedade, citando o professor da Universidade de York e colaborador da Jacobin David McNally:

“Com muita frequência, os críticos marxistas do particularismo no cerne da política de identidade pessoal modelaram suas noções de unidade da classe trabalhadora sobre a forma de unificação que caracteriza o capital. Como consequência, eles oferecem um conceito abstraído de classe que é indiferente às diversas formas de experiência na sociedade capitalista - e, portanto, uma cuja aquisição vivencial é mínima.”

Afirmar que uma determinada classe social tem um conteúdo progressista (ou seja, a classe trabalhadora), seria tão errado quanto afirmar que líderes individuais como Hugo Chávez ou Evo Morales podem trazer mudanças revolucionárias, diz Webber.

Citando o professor da Universidade de Drexel George Ciccariello-Maher, Webber pergunta: “E que passos para substituir o Grande Homem como sujeito da história? É a classe trabalhadora...? Para Ciccariello-Maher, tal alternativa de classe-analítica parece equivaler ao mesmo tipo de reducionismo do individualismo metodológico, embora em um registro diferente: ‘Ou, é o próprio conceito de um sujeito histórico - um único portador de história futura, seja ele um indivíduo ou uma classe - demasiado unitário e homogeneizador para explicar com precisão a dinâmica venezuelana contemporânea.”

Nenhuma linguagem acadêmica pode encobrir o caráter pouco sério deste argumento, que tira as conclusões mais reacionárias do período da Maré Rosa e do chavismo. Webber e Ciccariello-Maher igualam a afirmação de que indivíduos como Chávez e Morales podem alterar as relações sociais por conta própria com a concepção marxista da classe trabalhadora como uma força social revolucionária. Ao contrário, os marxistas entendem que a classe trabalhadora é uma força social revolucionária devido à posição que ocupa sob o capitalismo como uma classe explorada que vende sua força de trabalho e produz lucros para uma pequena classe de capitalistas em um sistema complexo e interconectado de produção socializada.

Rejeitando a classe trabalhadora como uma força social progressista, Webber propõe o estabelecimento de um amplo movimento anticlassista e populista, que seria liderado por setores da abastada classe média alta latino-americana.

O objetivo desse movimento seria subordinar os interesses das amplas massas de trabalhadores e camponeses às exigências dessa camada mais privilegiada para uma distribuição mais igualitária dos recursos entre os 10% mais ricos. O Syriza e Podemos são seu modelo. Esses partidos burgueses, baseados na defesa dos interesses materiais da classe média alta, têm levado a cabo medidas de austeridade em nome dos bancos europeus na Grécia e na Espanha.

Para dar cobertura ideológica à sua proposta de criação de partidos populistas, antissocialistas e anticlasse trabalhadora, Webber recicla uma série de figuras ideológicas utilizadas pelos renegados do marxismo latino-americano do século XX.

Idealismo romântico vs. Materialismo

Jeffrey Webber não é o primeiro acadêmico associado ao radicalismo pequeno-burguês latino-americano a argumentar que o socialismo científico é muito “determinista” porque entende a consciência social como um produto do ser social, enraizado nas relações objetivas das classes com o modo capitalista de produção.

Webber exorta a esquerda a evitar “voltar a qualquer reducionismo ou determinismo econômico rudimentar”, e escreve que “as contradições da acumulação capitalista” não devem ser “entendidas aqui como leis econômicas operando separadamente” da política.

“O que é necessário”, diz ele, citando o acadêmico zapatista John Holloway, “é uma conceituação adequada ‘da relação entre o econômico e o político como formas discretas de expressão das relações sociais sob o capitalismo’; com a ‘especificidade do político e o desenvolvimento de formas políticas firmemente [fundadas] na análise da produção capitalista”. Ele acrescenta que “as ações do Estado não são a expressão mecanicista de uma lei econômica do capital”.

Webber está empregando um argumento refutado há 126 anos pelo marxista russo George Plekhanov em “A Concepção Materialista da História”. Ao apresentar a sociedade como o produto de uma série de “fatores” abstratos inter-relacionados, (isto é, “o político”, “o estado” e “o econômico”) Webber “desmembra a atividade do homem social e converte seus vários aspectos e manifestações em forças separadas”.

Plekhanov se opôs aos antecessores de Webber do século XIX que criaram um homem de palha e rotularam os marxistas de “deterministas econômicos”. Ele explicou que os “fatores” são menos desligados das relações sociais e da economia mundial do que podem parecer:

“Os métodos pelos quais o homem social satisfaz suas necessidades, e em grande medida estas necessidades em si, são determinadas pela natureza dos instrumentos com os quais ele submete a natureza em um grau ou outro; em outras palavras, são determinadas pelo estado de suas forças produtivas. Toda mudança considerável no estado dessas forças se reflete nas relações sociais do homem e, portanto, em suas relações econômicas, como parte dessas relações sociais.”

Webber rejeita o socialismo científico por “um romantismo revolucionário” baseado na “dialética utópico-revolucionária entre o passado pré-capitalista e o futuro socialista” (p.106). Essa teoria anarquista e antimarxista está associada às obras do ex-comunista peruano José Carlos Mariátegui.

Citando um trecho do livro A Crítica Romântica e Marxista da Civilização Moderna, do pablista acadêmico franco-brasileiro Michael Löwy, Webber expressa o caráter anticientífico e irracionalista do utopismo romântico latino-americano: “A trajetória do marxismo após a morte de Marx foi dominada por um determinismo produtivista, economicista e evolucionista, um marxismo ‘modernista’ que ‘assumiu apenas um lado da herança marxista e desenvolveu um culto acrítico do progresso técnico, do industrialismo, do maquinismo, do fordismo e do taylorismo. O stalinismo, com seu produtivismo alienado e sua obsessão pela indústria pesada, é a triste caricatura desse tipo de ‘corrente fria’ no marxismo (parafraseando Ernst Bloch).”

Esses argumentos não são novos. Um obstáculo principal no desenvolvimento de um movimento socialista revolucionário na América Latina hoje é o dano à consciência social feito pelo domínio de décadas do utopismo “romântico” pequeno-burguês encarnado na referência de Webber a Löwy.

O período após a Segunda Guerra Mundial produziu muitos movimentos “revolucionários” cujo nacionalismo subjacente e caráter anticlasse trabalhadora os levou a adotar variações de idealismo radical. As diferentes correntes guerrilheiras, anarquistas, sindicalistas e de frente popular rejeitam o papel revolucionário da classe trabalhadora alegando que o marxismo ortodoxo é, nas palavras de Löwy, um “culto acrítico ao progresso técnico” que é muito “duro” e pela natureza “romântica” da população da América Latina.

O argumento idealista, baseado na noção pseudocientífica de que a população da América Latina tem uma “natureza humana” diferente do resto do mundo, está inextricavelmente ligado à política do nacionalismo. O idealismo utópico busca desenvolver um mito nacional como cobertura ideológica para subordinar os interesses da classe trabalhadora aos da burguesia nacional, muitas vezes na forma de idealização de um herói nacional do passado, como José Martí para Castro, Simon Bolívar para Chávez, Emiliano Zapata para os Zapatistas, Tupac Amaru no Peru, Farabundo Martí para a FMLN, Sandino para a FSLN, etc.

O desenvolvimento de uma verdadeira direção revolucionária marxista na classe trabalhadora latino-americana requer uma luta incansável contra o tipo de modelo nacionalista e idealista avançado por Jeffrey Webber e seus predecessores. A reconstrução de um movimento revolucionário na América Latina deve tomar como ponto de partida a luta para unir a classe trabalhadora da América do Sul, Central e do Norte, já integrada no processo transnacional de produção, em uma luta comum para pôr fim ao capitalismo.

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