O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT) terminou em 15 de abril uma viagem de quatro dias à China. Dois dias depois, o governo Lula recebeu o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em Brasília.
O contexto dos encontros diplomáticos não poderia ser mais explosivo, com a escalada da guerra por procuração da OTAN contra a Rússia na Ucrânia intensificando as provocações dos EUA contra a China sobre Taiwan e ameaçando o mundo com uma catástrofe nuclear. Ao mesmo tempo, a América Latina tem estado numa das linhas de frente do confronto do imperialismo americano contra a China, que desde 2009 ultrapassou os EUA e se tornou a principal parceira comercial das maiores economias da região, incluindo o Brasil.
A viagem de Lula à China foi escolhida para o lançamento da “reconstrução das relações bilaterais” do governo brasileiro. Repetindo seu slogan de 100 dias de governo, Lula disse que “o Brasil está de volta” à cena internacional depois de quatro anos de “isolamento” do governo do presidente fascistoide Jair Bolsonaro. Somado a isso, Bolsonaro realizou uma série de ataques ao estilo de Trump contra a China que azedaram as relações entre Pequim e Brasília.
O objetivo do governo Lula foi fazer da viagem à China um marco na recuperação da “política externa altiva e ativa” dos governos anteriores do PT (2003-2013), fortalecer a “cooperação internacional Sul-Sul” e “construir um mundo mais multipolar”, segundo as palavras do assessor especial da presidência brasileira, Celso Amorim.
Para isso, o governo Lula planeja impulsionar os principais blocos comerciais dos quais o Brasil faz parte, o MERCOSUL (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai) e os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Depois da volta de Lula ao poder, o Brasil retornou à Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e à União de Nações Sul-americanas (UNASUL), ambos marcos da “Maré Rosa” de regimes nacionalistas burgueses na região dos anos 2000. Por sua vez, o presidente Xi Jinping declarou que planeja reforçar a cooperação da China com a CELAC e o MERCOSUL.
Dezenas de autoridades do governo Lula e do establishment político brasileiro, além de mais de uma centena de empresários, principalmente do agronegócio, viajaram com Lula à China. Foram fechados ao todo 35 acordos de cooperação e comerciais entre os governos federal e estaduais e empresas brasileiros e suas contrapartes chinesas em inúmeras áreas, como comunicação, aviação e satélite, infraestrutura, pesquisa e inovação, indústria, combate à fome, energia renovável e mudanças climáticas, agricultura e pecuária, portos e mineração.
Espera-se que esses acordos gerem um investimento chinês de US$ 50 bilhões no Brasil, reforçando ainda mais os laços econômicos entre os dois países.
O governo Lula também aproveitou a viagem à China para avançar suas intenções de “reindustrializar” o Brasil em novas bases tecnológicas e ambientais com investimentos chineses. Foi discutida a possibilidade de a empresa chinesa BYD, a líder mundial de carros elétricos, se instalar na Bahia na ex-fábrica da Ford ou em uma nova. Neste ano, a também chinesa Cherry anunciou a construção de uma fábrica de carros elétricos na Argentina, e empresa chinesas estão investindo em projetos de extração de lítio na Argentina, Bolívia e Chile, o que fez soar recentemente o alarme nos EUA e nos países europeus.
Outro tema discutido na viagem de Lula que tem colocado a China em rota de colisão com os EUA é a possibilidade de financiamento de projetos em moeda local. Isso, por sua vez, tem avançado desde o início do ano com acordos estabelecidos entre os bancos centrais da China e do Brasil e a adesão do banco sino-brasileiro Bocom BBM ao CIPS, o sistema de pagamento chinês concorrente do SWIFT.
Falando em Xangai na posse da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) como chefe do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, Lula perguntou: “Por que não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? ... Quem é que decidiu que era o dólar, depois que desapareceu o ouro como paridade?”
O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, emitiu uma resposta nada diplomática às declarações de Lula, dizendo em entrevista ao Globo que o Brasil estava “repetindo a narrativa da China, sem necessariamente obter algo importante para os interesses” do país.
As preocupações de Washington vão além da perda da posição global do dólar. Os EUA temem que isso possa driblar as sanções econômicas que os EUA usam para assegurar sua hegemonia global e enfrentar supostos riscos à sua segurança nacional.
Lula visitou uma das empresas sancionadas pelos EUA, a gigante chinesa de tecnologia Huawei, que está por trás de 40% da infraestrutura de telecomunicações no Brasil, e passou a oferecer a tecnologia 5G no país no ano passado após fortes pressões contrárias americanas.
Questões geopolíticas fundamentais também foram discutidas entre o governo brasileiro e as autoridades chinesas. Com o objetivo de “promover a democratização das relações internacionais e o multilateralismo”, segundo a declaração conjunta, China e Brasil defenderam a “necessidade de reformar a ONU e seu Conselho de Segurança”, incluindo com um assento permanente do Brasil. O Brasil “reiterou que adere firmemente ao princípio de uma só China”, i.e., que “Taiwan é uma parte inseparável do território chinês”.
Tanto o Brasil quanto a China saudaram suas propostas de paz para a guerra na Ucrânia - os 12 pontos da China e o “Clube da Paz” que Lula apresentou ao presidente americano Joe Biden e ao chanceler alemão Olaf Scholz.
Antes e depois da viagem à China, Lula deu declarações que entraram em conflito com a narrativa dos EUA e da OTAN à qual ele havia se curvado em várias ocasiões recentes. Em 6 de abril, ele sugeriu em entrevista a jornalistas que a Crimeia poderia ser cedida à Rússia em troca de um acordo de paz. No final de sua visita à China, Lula disse que “é preciso, sobretudo, convencer os países [europeus e os EUA] que estão fornecendo armas e incentivando a guerra a pararem” e que “a decisão da guerra foi tomada por dois países”, responsabilizando também a Ucrânia pelo conflito.
Logo depois da viagem à China, Lula recebeu na segunda-feira passada o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov. Além do Brasil, Lavrov visitou a Venezuela, Nicarágua e Cuba, três países latino-americanos que são alvo de sanções dos EUA.
No Palácio do Itamaraty após o encontro com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, e antes de se reunir com Lula, Lavrov disse que ambos os países têm o interesse “em pôr fim ao conflito ucraniano”, “de reformar as instituições de governança global” e consideram “ilegítimas as sanções unilaterais impostas [contra a Rússia pelos EUA e União Europeia] sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU.” Ele ainda elogiou o apoio do Brasil à investigação do ataque ao gasoduto Nord Stream 2 e sua recusa em assinar a declaração da Cúpula da Democracia de Biden, que exigiu a retirada incondicional da Rússia da Ucrânia.
Elaborando sobre sua visita à região, Lavrov tinha escrito em 13 de abril na Folha de S. Paulo que os países latino-americanos possuem um papel central numa nova “ordem mundial multipolar democrática e policêntrica”, que incluiria os BRICS, a CELAC, a UNASUL e o MERCOSUL, e por isso ocupam uma “posição prioritária” na política externa russa. Segundo ele, o que está em jogo na “operação militar especial” russa na Ucrânia é a luta entre essa “nova ordem multipolar” e uma “ordem mundial unipolar neocolonial” dominada pelos EUA.
Rússia e Brasil possuem fortes laços econômicos. No ano passado, o fornecimento de fertilizante, produtos petrolíferos e trigo russos para o Brasil e a América Latina aumentou, com o comércio entre Brasil e Rússia atingindo o recorde de US$ 9,8 bilhões. O Brasil importa da Rússia cerca de um quarto do fertilizante utilizado no agronegócio. Na viagem de Lavrov ao Brasil, os dois países ainda discutiram parcerias na área nuclear, particularmente para o submarino nuclear brasileiro que está sendo desenvolvido com a França.
A reação de Washington foi dura contra o Brasil, repetida e amplificada pela mídia corporativa brasileira. Na própria segunda-feira, o porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disse que Lula “está reproduzindo propaganda russa e chinesa”, além de sugerir “que os EUA e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra”. Autoridades da União Europeia e Ucrânia emitiram declarações semelhantes.
Talvez a maior ameaça tenha sido feita pelo Globo, o jornal de maior circulação do Brasil e antigo ferrenho defensor do golpe militar de 1964 apoiado pelos EUA, que publicou em 17 de abril um editorial intitulado “‘Neutralidade’ de Lula revela apoio tácito à Rússia”. Denunciando que o presidente brasileiro “flerta abertamente com a Rússia”, o Globo advertiu: “O perigo de provocar os americanos e os europeus é evidente: Lula arrisca levar um tombo”.
Diante dessas condenações e ameaças, Lula recuou e reforçou na terça-feira que o Brasil “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”. Lula já tinha expressado essa posição no encontro com Biden e na votação na ONU quando a guerra na Ucrânia completou um ano, fazendo do Brasil o único país dos BRICS a condenar a invasão russa.
As oscilações anteriores do governo sobre a guerra na Ucrânia incluem a recusa de Lula dar munições aos tanques alemães enviados à Ucrânia no final de janeiro, seguida pela indicação do chanceler Vieira no final de março de que o presidente russo Vladimir Putin poderia ser preso caso pisasse em solo brasileiro depois de sua condenação pelo Tribunal Penal Internacional.
Longe de representar simplesmente a política do PT ou uma característica pessoal de Lula, esse “zigue-zague” é um reflexo de um impasse histórico da burguesia brasileira em meio ao turbilhão geopolítico da crescente campanha do imperialismo americano em direção à guerra contra a Rússia e a China.
Nas últimas décadas, o Brasil tem defendido que seus “interesses nacionais” podem ser melhor assegurados através de uma suposta “neutralidade” e “independência” diplomática. Porém, com a guerra na Ucrânia, está cada vez mais difícil Lula se equilibrar entre a China e a Rússia, de um lado, e o imperialismo americano e europeu, do outro, na tentativa de garantir os lucros das empresas e bancos brasileiros.
Fundamentalmente, a ideia de que slogans como “o Brasil está de volta” e que manobras diplomáticas levarão a um florescimento renovado do capitalismo brasileiro como parte de um “mundo multipolar” são falidas e reacionárias.
Os apelos de Lula por um “Clube da Paz” dificilmente conseguirão superar as pressões acumuladas de uma crise capitalista mundial que está levando o imperialismo à beira de uma guerra nuclear. O equilíbrio diplomático do governo brasileiro também não conseguirá fazer o imperialismo americano ceder a sua influência para a China e a Rússia num “mundo multipolar”, nem conseguirá interromper o seu impulso brutal e sempre crescente de empregar o poder militar para compensar a perda de sua hegemonia global.
As ilusões que estão sendo promovidas em alguma nova utopia multipolar tampouco conseguirão resolver a desigualdade social cada vez maior dentro do próprio Brasil, nem irão deter os ataques crescentes aos padrões de vida que estão levando a uma erupção da luta de classes.
E, como demonstrado na reação às recentes iniciativas diplomáticas de Lula, a busca do governo brasileiro por um lugar ao sol multipolar está apenas intensificando a crise terminal da breve democracia burguesa brasileira, que já produziu o ataque fascista de 8 de janeiro em Brasília e ameaça desencadear outro golpe militar.
Essa crise também tem exposto as organizações da pseudoesquerda pequeno-burguesa que funcionam como defensoras cínicas do reacionário sistema capitalista brasileiro em decomposição e avançam a alegação fraudulenta de que pode haver um interesse comum entre um setor da burguesia e os trabalhadores. A delegação de Lula à China contou com a presença de dirigentes das maiores centrais sindicais brasileiras, incluindo a CUT controlada pelo PT, e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que servem como instrumentos fundamentais na tentativa do governo Lula de subordinar a classe trabalhadora brasileira aos seus exploradores capitalistas.
A única oposição genuína a essa perspectiva é a mobilização da classe trabalhadora internacional contra os governos capitalistas nacionais e seus apoiadores na pseudoesquerda. Isso significa construir seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional no Brasil e em todos os países da América Latina e lutar pela construção de um movimento internacional de massas de trabalhadores e da juventude contra a guerra e pelo socialismo.