Publicado originalmente em 4 de abril de 2023
Estamos publicando o prefácio do próximo livro de David North, Leon Trotsky and the Struggle for Socialism in the Twenty-First Century (Leon Trotsky e a luta pelo socialismo no século XXI). North é o presidente do Conselho Editorial Internacional do World Socialist Web Site e o presidente nacional do Partido Socialista pela Igualdade (EUA).
A versão impressa e em epub do livro será publicada a 30 de Junho de 2023, e está disponível para pré-encomenda na Mehring Books.
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O material compilado neste livro foi escrito ao longo de um período de quarenta anos. O primeiro texto, Leon Trotsky e o desenvolvimento do marxismo, foi inicialmente publicado no quarto trimestre de 1982. O último é uma carta escrita em fevereiro de 2023 a uma organização de juventude fundada por trotskistas na Rússia, Ucrânia e outros países da ex-URSS.
Apesar dos muitos anos que separam o primeiro e o último documentos, eles estão ligados por um argumento central: Leon Trotsky foi a figura mais significativa na história do socialismo durante as primeiras quatro décadas do século XX, e o seu legado continua a ser a crítica e indispensável base teórica e política da atual luta contemporânea pela vitória do socialismo mundial. Os acontecimentos dos últimos 40 anos fundamentaram poderosamente essa avaliação do lugar de Trotsky na história e do seu duradouro significado político.
Comecemos pelo fato de que a condenação de Trotsky do stalinismo como força contrarrevolucionária foi confirmado pela história. Porém, quando o primeiro documento foi escrito, a União Soviética e os associados regimes stalinistas no Leste Europeu ainda existiam. Os partidos políticos stalinistas afiliados à burocracia do Kremlin possuíam milhões de membros. A previsão de Trotsky de que a burocracia stalinista restauraria o capitalismo, e que a estrutura podre do regime ruiria sob o peso da autarquia econômica nacional, incompetência, e mentiras era descartada como “sectarismo trotskista” e até mesmo “propaganda antissoviética” pelos muitos defensores políticos do “socialismo real existente”.
Leon Trotsky e o Desenvolvimento do Marxismo foi escrito precisamente durante os meses em que o líder soviético de longa data e cada vez mais senil, Leonid Brezhnev, passou do seu leito para a necrópole da Muralha do Kremlin na Praça Vermelha. A burocracia stalinista transferiu a sua lealdade para Yuri Andropov e depois para Konstantin Chernenko – que, em pouco mais de dois anos, juntou-se ao seu antecessor na Muralha do Kremlin – e, finalmente, em março de 1985, para Mikhail Gorbachev.
Apesar de todas as promessas de Gorbachev de uma nova “abertura” (glasnost) no estudo da história soviética, o Kremlin continuou a denunciar a luta travada por Trotsky contra o regime stalinista e a sua traição da Revolução de Outubro.
Em novembro de 1987, enquanto o regime stalinista avançava em direção ao colapso, Gorbachev incluiu no seu discurso no 70o aniversário da Revolução de Outubro uma defesa de Stalin e uma agressiva denúncia de Trotsky. Porém, conforme Trotsky apontou uma vez, as leis da história provaram ser mais poderosas até mesmo do que o mais poderoso secretário-geral.
A única tendência política que previu e alertou que as políticas de Gorbachev eram direcionadas para a dissolução da União Soviética e a restauração do capitalismo foi o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI). Ainda em março de 1987, em meio à adulação global do novo líder soviético, conhecida como 'gorbimania', o Comitê Internacional advertiu:
Tanto para a classe trabalhadora da União Soviética como para os trabalhadores e massas oprimidas internacionalmente, a chamada política de reforma de Gorbachev representa uma sinistra ameaça. Ela coloca em risco as conquistas históricas da Revolução de Outubro e está ligada a um aprofundamento da colaboração contrarrevolucionária da burocracia com o imperialismo em escala mundial[1].
Dois anos mais tarde, em 1989, em uma análise das políticas de Gorbachev intitulada Perestroika versus Socialismo, escrevi:
Durante os últimos três anos, foram dados passos decisivos por Gorbachev para promover a propriedade privada das forças produtivas. A burocracia está identificando cada vez mais abertamente os seus interesses com o desenvolvimento de cooperativas soviéticas organizadas em linhas inteiramente capitalistas. Assim, na medida em que os privilégios da própria burocracia não estão mais ligados, mas são hostis às formas de propriedade estatal, as suas relações com o imperialismo mundial devem sofrer uma mudança correspondente e significativa. O principal objetivo da política externa soviética torna-se cada vez menos a defesa da URSS contra o ataque imperialista, e cada vez mais a mobilização do apoio imperialista – político e econômico – para a realização dos objetivos internos da perestroika, ou seja, o desenvolvimento das relações de propriedade capitalista no seio da União Soviética. Assim, a lógica contrarrevolucionária da teoria stalinista do socialismo em um só país encontra a sua expressão final no desenvolvimento de uma política externa destinada a minar a propriedade estatal soviética e a reintroduzir o capitalismo no seio da própria URSS[2].
Não posso reivindicar crédito excepcional por essa avaliação das políticas de Gorbachev, o que foi confirmado por acontecimentos subsequentes. A perspectiva do Comitê Internacional se baseou na análise das contradições da sociedade soviética e da trajetória contrarrevolucionária do regime stalinista feita por Trotsky meio século antes na sua obra A Revolução Traída. Além disso, o entendimento do CIQI sobre o processo pós-soviético de restauração capitalista foi facilitado pelo fato de ter prosseguido de acordo com as linhas previstas por Trotsky.
A dissolução da União Soviética não resultou, como o analista da Rand Corporation, Francis Fukuyama, em seu livro, “O Fim da História”, definiu como “o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano”[3]. Está bastante claro que Fukuyama não previu a chegada de Donald Trump à presidência nos Estados Unidos.
De fato, os acontecimentos não obedeceram o esquema do sábio do think tank da Rand na Rússia pós-soviética nem nos países capitalistas avançados. Na Rússia, todas as previsões coloridas com as quais a restauração do capitalismo foi justificada foram refutadas pelos acontecimentos. Ao invés de prosperidade, a venda de bens estatais a antigos burocratas soviéticos e outros elementos criminosos produziu pobreza em massa e níveis espantosos de desigualdade social. Ao invés de alimentar o florescimento da democracia, o novo Estado russo assumiu rapidamente a forma de um regime oligárquico. A afirmação de que a Rússia, após ter repudiado irrevogavelmente a sua associação histórica com a Revolução de Outubro, seria bem recebida pelos seus novos “parceiros ocidentais” com ternos abraços e integrada pacificamente na irmandade das nações capitalistas, provou ser a mais exagerada e não realista de todas as previsões.
Dentro dos maiores países imperialistas, os acontecimentos que se seguiram à quebra da União Soviética – a sucessão de crises econômicas, geopolíticas e sociais que caracterizaram as últimas três décadas – substanciaram a análise marxista das contradições que levam o capitalismo, como sistema mundial, à destruição. O documento fundador da Quarta Internacional, escrito por Trotsky em 1938, definiu a época histórica como a da “agonia mortal” do capitalismo e descreveu a situação contemporânea às vésperas da Segunda Guerra Mundial:
As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, sobrecarregam as massas de privações e sofrimentos cada vez maiores. O crescimento do desemprego aprofunda, por sua vez, a crise financeira do Estado e mina os sistemas monetários estremecidos.
Sob a pressão crescente do declínio capitalista, os antagonismos imperialistas atingiram o limite, além do qual os diversos conflitos e explosões sangrentas ... devem, infalivelmente, confundir-se num incêndio mundial. A burguesia dá-se conta, sem dúvida, do perigo mortal que uma nova guerra representa para seu domínio, mas é, atualmente, infinitamente menos capaz de preveni-la do que às vésperas de 1914[4].
A atual situação mundial possui mais do que uma perturbadora semelhança com aquela descrita de forma tão clara por Trotsky 85 anos atrás. A sua compreensão da situação mundial deriva da sua análise da fonte da crise do capitalismo: 1) o conflito entre a produção social e a propriedade privada dos meios de produção; e 2) a incompatibilidade do sistema capitalista de Estados nacionais com o desenvolvimento objetivo da economia mundial. No quadro do capitalismo, a crise resultante dessas contradições conduz às catástrofes gêmeas da barbárie fascista e da guerra mundial.
Na sua análise da dinâmica fatal do capitalismo global, Trotsky havia colocado uma ênfase central no papel do imperialismo americano. Em 1928, escrevendo da distante região de Alma Ata na Ásia Central (para onde havia sido exilado pelo regime stalinista), Trotsky escreveu:
No período de crise, a hegemonia dos Estados Unidos irá funcionar de forma mais completa, mais aberta e mais impiedosa do que no período de crescimento. Os Estados Unidos irão procurar ultrapassar e se libertar das suas dificuldades e enfermidades, principalmente à custa da Europa, independentemente de isso acontecer na Ásia, Canadá, América do Sul, Austrália, ou na própria Europa, ou se isso acontecer pacificamente ou através da guerra [5].
Em 1934, Trotsky descreveu a trajetória do imperialismo americano em termos ainda mais diretos:
O capitalismo dos Estados Unidos enfrenta os mesmos problemas que em 1914 empurraram a Alemanha à guerra. O mundo está dividido? É preciso o redividir. Para a Alemanha tratava-se de ‘organizar a Europa’. Os Estados Unidos têm que ‘organizar’ o mundo. A história está enfrentando à humanidade com a erupção vulcânica do imperialismo norte-americano[6].
Trotsky zombou da inclinação dos Estados Unidos de santificar as suas políticas predatórias com frases humanitárias. Ele descreveu memoravelmente o presidente Woodrow Wilson, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, como “um filisteu e hipócrita”, um “tartufo mentiroso” que ”cruza a Europa ensanguentada como o supremo representante da moralidade, como o Messias do dólar americano; castigando, perdoando, e organizando os destinos dos povos”. [7] Hoje, em que o violento racismo de Wilson se tornou conhecido, a descrição de Trotsky do outrora venerado presidente americano, elogiado por muito tempo como o ícone do liberalismo democrático, tornou-se consenso na comunidade acadêmica.
Porém, por mais oportuna que fosse a exposição de Trotsky da hipocrisia do imperialismo americano, ele não explicou as suas políticas, ou aquelas do seu rival alemão sob Hitler, como meras perturbações criminosas em um mundo que, do contrário, seria pacífico. O seu indiciamento das políticas desses países, e a das outras potências imperialistas, era de caráter histórico, e não filisteu moralista. A política de invasão, anexações e conquistas estava, e ainda está, enraizada não na loucura de líderes individuais, mesmo no caso de um psicopata como Hitler, mas na desesperada necessidade de ultrapassar os limites impostos pelas fronteiras nacionais no acesso aos recursos globais e ao mercado mundial. O crescimento implacável do militarismo imperialista, conduzindo inevitavelmente à guerra mundial, significou a falência histórica do sistema de Estados nacionais. Tal como Trotsky previu em 1934, em um artigo originalmente publicado na revista americana Foreign Affairs:
A luta pelos mercados estrangeiros irá se tornar sem precedentes. Noções piedosas sobre as vantagens da autarquia serão imediatamente escanteadas, e planos sábios para a harmonia nacional serão jogados no lixo. Isso se aplica não apenas ao capitalismo alemão, com a sua dinâmica explosiva, ou ao capitalismo tardio e ganancioso do Japão, mas também ao capitalismo dos EUA, que ainda é poderoso apesar das suas novas contradições[8].
As contradições discernidas por Trotsky nos finais dos anos 1920 e 30 estão hoje em uma fase de desenvolvimento muito mais avançada, até mesmo terminal. No rescaldo da dissolução da União Soviética, o impulso para “organizar o mundo” no interesse da hegemonia global dos Estados Unidos assumiu a forma de um assalto global. A “erupção vulcânica” do imperialismo americano, prevista por Trotsky há quase 90 anos, está bem encaminhada.
Porém, o vulcão americano não é o único local de erupções militaristas. Um aumento massivo das despesas militares em escala internacional está em curso. Os deuses da guerra estão novamente sedentos. As duas principais potências derrotadas da Segunda Guerra Mundial estão abandonando as suas hipócritas pretensões pacifistas. Explorando a oportunidade proporcionada pela guerra da Ucrânia, o Bundestag alemão aprovou o triplo do orçamento militar do país. O Japão, já a segunda maior potência militar da Ásia, anunciou um aumento de 26,3% nos gastos com “defesa”. Esses países estão determinados a não ficar de fora da distribuição dos espólios que se seguirão a uma nova redivisão do mundo no rescaldo da Terceira Guerra Mundial, supondo que exista um mundo para dividir.
O fato de que o mundo está a se aproximando do abismo de um cataclismo militar global é hoje amplamente reconhecido nos meios de comunicação capitalistas. Após um ano de propaganda implacável retratando a invasão russa da Ucrânia como uma “guerra não provocada”, comentadores burgueses estão agora colocando a guerra em um contexto internacional mais realista. O especialista em política externa do Financial Times, Gideon Rachman, observou recentemente o “paralelo histórico” entre a situação atual e “o aumento das tensões internacionais nas décadas de 1930 e 1940”.
O fato de o presidente da China e o primeiro-ministro do Japão terem feito visitas simultâneas e concorrentes às capitais da Rússia e da Ucrânia sublinha o significado global da guerra da Ucrânia. O Japão e a China são rivais ferozes na Ásia Oriental. Ambos os países compreendem que a sua luta será profundamente afetada pelo resultado do conflito na Europa.
Essa disputa entre a China e o Japão entorno da Ucrânia faz parte de uma tendência mais ampla. As rivalidades estratégicas nas regiões euroatlânticas e indopacíficas sobrepõem-se cada vez mais uma à outra. O que está emergindo é algo que se parece cada vez mais com uma única luta geopolítica[9].
Cada personagem histórico é, evidentemente, produto de seu tempo. Porém, Trotsky é uma figura histórica cuja influência ativa sobre os acontecimentos contemporâneos se estendeu para muito além da sua vida. Os seus escritos são estudados não apenas pela visão que proporcionam dos acontecimentos das primeiras quatro décadas do século passado, mas também como análises essenciais para a compreensão e intervenção nos acontecimentos atuais.
Em um massivo estudo de 1.124 páginas do Trotskismo Internacional publicado em 1991 à véspera da dissolução da URSS, o falecido Robert J. Alexander, um acadêmico antimarxista e membro de longa data do think tank Council on Foreign Relations (Conselho sobre Relações Exteriores), manifestou a preocupação de que a dissolução da URSS pudesse levar ao ressurgimento do trotskismo como um movimento de massas. Ele escreveu:
Até o final dos anos 1980, os trotskistas nunca chegaram ao poder em nenhum país. Embora o trotskismo internacional não goze do apoio de um regime bem estabelecido, como os herdeiros do stalinismo, a persistência do movimento em uma grande variedade de países, em conjunto com a instabilidade da vida política da maioria das nações do mundo, significa que a possibilidade de um partido trotskista chegar ao poder em um futuro próximo não pode ser totalmente descartada[10].
As elites no poder levaram a sério o aviso do professor Alexander. Elas responderam ao perigo político pela esquerda que o colapso dos regimes stalinistas representava encomendando uma série de caluniosas pseudobiografias de Trotsky. Porém, apesar das primeiras críticas arrebatadoras na imprensa capitalista, as obras dos professores Ian Thatcher, Geoffrey Swain e Robert Service foram um enorme fracasso. As suas mentiras foram completamente expostas pelo Comitê Internacional. A biografia escrita pelo célebre professor Robert Service da Universidade de Oxford tornou-se uma fonte de vergonha para a sua editora, a Harvard University Press, depois que o American Historical Review reconheceu que a minha crítica da biografia de Service como uma “obra de fabricação” eram “palavras fortes mas justificadas”[11].
Existe uma explicação materialista histórica para a persistência e crescimento do movimento trotskista internacional diante da implacável perseguição, que se estende por décadas, por inúmeros inimigos. As forças objetivas econômicas e sociais básicas que determinaram o curso geral dos acontecimentos políticos na vida de Trotsky, centradas na luta de classes global da burguesia e do proletariado, não foram superadas pela história. A Teoria da Revolução Permanente de Trotsky continua a ser a base histórica-estratégica essencial da luta da classe trabalhadora internacional contra o capitalismo. Em 1930, Trotsky escreveu:
A revolução socialista não pode ser realizada dentro dos limites nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as forças produtivas por ela criadas tenderem a ultrapassar os limites do Estado nacional. Disso decorrem as guerras imperialistas, de um lado, e a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa, de outro lado. A revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo; ela apenas termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso planeta[12].
Longe de ser ultrapassado pelos acontecimentos, o imenso desenvolvimento global integrado das forças produtivas e o vasto crescimento da classe trabalhadora têm substanciado ainda mais a concepção de Trotsky da revolução socialista como um processo interdependente de luta de classes internacional. O movimento da história está agora se cruzando decisivamente com a visão estratégica do grande teórico e revolucionário marxista.
A atual situação mundial é uma que Trotsky não teria qualquer problema em reconhecer e analisar. Estamos vivendo a fase final da mesma época histórica da guerra imperialista e da revolução socialista. Os problemas históricos com que Trotsky lida – especialmente nos dezesseis anos entre o derrame incapacitante de Lenin e o seu afastamento da atividade política em 1923 e o seu próprio assassinato em 1940 – permanecem as questões políticas existenciais não resolvidas que confrontam a classe trabalhadora: a guerra imperialista, o colapso da democracia e o ressurgimento do fascismo, a inflação em espiral, o desemprego em massa, a pobreza, a traição das organizações trabalhistas de massas existentes e a sua integração nas estruturas do Estado capitalista.
Este ano marca o centenário da fundação da Oposição de Esquerda na União Soviética. A crítica pública inicial de Trotsky, no quarto trimestre de 1923, ao crescimento do burocratismo tanto no Estado soviético como no Partido Comunista, marcou o início da luta mais politicamente consequente do século XX. A usurpação do poder político pela burocracia soviética, liderada por Stalin, teve consequências catastróficas para o destino da classe trabalhadora internacional e para a luta pelo socialismo. A justificativa política para essa usurpação – que implicou a subordinação da classe operária à burocracia, a destruição de todas as formas de democracia operária, e, em última análise, a liquidação física dos marxistas dentro da URSS – foi dada pelo dogma stalinista do “socialismo em um só país”. Essa pseudoteoria, direcionada sobretudo contra a Teoria da Revolução Permanente de Trotsky, sancionou o repúdio da perspectiva do socialismo internacional sobre a qual a Revolução de Outubro havia se baseado.
Um livro recentemente publicado dedicado ao estudo da luta de Trotsky contra o stalinismo começa com a seguinte asserção: “Durante a maior parte das duas últimas décadas da sua vida, a questão política e teórica que mais preocupou Leon Trotsky foi o problema da burocracia soviética”[13].
Essa afirmação é fundamentalmente incorreta. O problema da burocracia soviética era, para Trotsky, totalmente secundário em relação à questão do internacionalismo revolucionário. De fato, a verdadeira natureza da burocracia stalinista podia ser compreendida apenas no contexto da relação da União Soviética com a luta de classes internacional e com o destino do socialismo mundial. Como uma tendência que surgiu no seio do Partido Bolchevique – nas condições das derrotas sofridas pela classe trabalhadora na Europa Central e Ocidental após a Revolução de Outubro – o stalinismo representava uma reação nacionalista contra o internacionalismo marxista. Conforme Trotsky escreveu apenas um ano antes do seu assassinato, “Pode-se dizer que todo o stalinismo, tomado no plano teórico, cresceu a partir da crítica à teoria da revolução permanente tal como foi formulada em 1905”[14].
A luta contra a ditadura burocrática estava inseparavelmente ligada ao programa do internacionalismo socialista. O mesmo princípio estratégico se aplica a todas as tarefas políticas na atual situação mundial. Não existem soluções nacionais para os grandes problemas da época contemporânea.
A Teoria da Revolução Permanente de Trotsky forneceu a análise da dinâmica objetiva da luta de classes internacional sobre a qual precisava se basear a estratégia da revolução socialista mundial. Porém, Trotsky explicou também que a vitória do socialismo não se realizaria através do funcionamento automático das contradições capitalistas. Estas contradições apenas criavam as condições objetivas e o potencial para a conquista do poder pela classe trabalhadora, mas a transformação do potencial em realidade dependia das decisões e ações conscientes do partido revolucionário.
A declaração de Trotsky no documento fundador da Quarta Internacional de 1938 de que “A crise histórica da humanidade é reduzida à crise da liderança revolucionária” foi uma síntese das lições centrais dos 15 anos prévios de derrotas sofridas pela classe trabalhadora como consequência do oportunismo e traição dos partidos stalinistas e socialdemocratas e dos sindicatos.
Acontecimentos como a derrota da greve geral no Reino Unido em 1926, o esmagamento da classe operária de Xangai por Chiang Kai-shek em 1927, a vitória dos nazistas na Alemanha em 1933, a desmoralização da classe operária francesa na sequência das greves de massas de 1936 pela política da Frente Popular, a derrota da Revolução Espanhola em 1939, e, finalmente, o pacto de Stalin com Hitler e o início da Segunda Guerra Mundial provocaram pessimismo e desilusão com as perspectivas do socialismo entre amplos setores da intelectualidade de esquerda. Será, questionaram esses setores, que essas derrotas não provavam que a classe trabalhadora era incapaz de conquistar e manter o poder?
Trotsky rejeitou enfaticamente a desmoralização que motivava a questão. O obstáculo à realização do socialismo não era o caráter “não revolucionário” da classe trabalhadora, mas sim a podridão dos partidos de massas existentes. Porém, isso levantava uma outra questão: Seria possível construir um partido cujos líderes se mostrassem à altura das exigências da revolução? Aqueles que negaram essa possibilidade foram levados às conclusões políticas mais pessimistas, ou seja, que o programa da revolução socialista avançava uma utopia impossível e que a posição da humanidade era, na sua essência, desesperançosa. No fim de 1939, Trotsky escreveu: “Nem todos os nossos opositores expressam claramente esse pensamento, mas todos eles – os esquerdistas, centristas, anarquistas, para não falar dos stalinistas e socialdemocratas – transferem a responsabilidade das derrotas de si próprios para os ombros do proletariado. Nenhum deles indica precisamente em que condições o proletariado será capaz de realizar a revolução socialista”[15].
Trotsky identificou a fonte da desmoralização política dos intelectuais de esquerda. A rejeição do potencial revolucionário da classe trabalhadora era a premissa essencial do antimarxismo dos pequenos burgueses acadêmicos de esquerda no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Dirigindo os seus argumentos contra a perspectiva histórica de Trotsky (mesmo que não reconhecessem isso abertamente), a Escola de Frankfurt procurou desligar o marxismo da classe operária. Os pós-modernistas declararam o fim das “grandes narrativas” que explicavam a história como um processo objetivo governado por leis e identificavam a classe operária como a força revolucionária central na sociedade. O resultado inevitável do retrocesso do pensamento social foi o completo repúdio do marxismo e da revolução social baseada na classe operária. Como dois importantes representantes desse retrocesso, Ernesto Laclau e Chantelle Mouffe, declararam sem rodeios em 1985:
Neste momento, devemos afirmar claramente que estamos hoje situados em um terreno pós-marxista. Já não é possível manter a concepção de subjetividade e classes elaboradas pelo marxismo, nem a sua visão do curso histórico do desenvolvimento capitalista...[16]
Os teóricos antimarxistas foram refutados pelos acontecimentos. Apenas o movimento trotskista se antecipou e se preparou para o recrudescimento global da luta de classes que está agora em curso. Baseando-se na perspectiva da Revolução Permanente, o Comitê Internacional declarou em 1988:
Prevemos que a próxima fase das lutas proletárias irá se desenvolver inexoravelmente, sob a pressão combinada das tendências econômicas objetivas e da influência subjetiva dos marxistas, ao longo de uma trajetória internacional. O proletariado tenderá cada vez mais a se definir na prática como uma classe internacional; e os internacionalistas marxistas, cujas políticas são a expressão dessa tendência orgânica, irão cultivar esse processo e dar a ele forma consciente[17].
A crise capitalista mundial acelerada e a luta de global irão proporcionar as condições objetivas para a revolução socialista e a derrubado do capitalismo. 'Mas', como Trotsky advertiu, 'o grande problema histórico não será em caso algum resolvido enquanto o partido revolucionário não estiver à frente do proletariado'.
A questão dos ritmos e dos intervalos de tempo é de enorme importância; mas não altera nem a perspectiva histórica geral nem a direção da nossa política. A conclusão é simples: é necessário prosseguir o trabalho de educação e organização da vanguarda proletária com dez vezes mais energia. Precisamente nisso reside a tarefa da Quarta Internacional[18].
As experiências históricas do século passado testaram minuciosamente todos os movimentos políticos, partidos e tendências que afirmavam estar liderando a luta contra o capitalismo. Porém, as convulsões do século XX expuseram o papel contrarrevolucionário dos stalinistas, socialdemocratas, maoístas, nacionalistas burgueses, anarquistas, e pablistas. Apenas a Quarta Internacional, liderada pelo Comitê Internacional, estava à altura do teste da história. O movimento revolucionário socialista internacional da classe trabalhadora de todos os continentes irá se desenvolver sobre os fundamentos teóricos e políticos do trotskismo, o marxismo do século XXI.
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Este livro é dedicado à memória de Wije Dias (27 de Agosto de 1941 - 27 de Julho de 2022), membro do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) e secretário-geral da seção do CIQI no Sri Lanka durante 35 anos. O camarada Wije morreu em meio à luta, defendendo na idade avançada, e com a mesma paixão, os ideais da sua juventude. O seu legado – de coragem, compromisso com os princípios trotskistas, e devoção ao socialismo – será um exemplo inspirador para a classe trabalhadora nas grandes batalhas de classe que irão decidir o destino da humanidade.
David North
Detroit
4 de Abril de 2023
Referências
[1] International Committee of the Fourth International, What Is Happening in the USSR: Gorbachev and the Crisis of Stalinism (Detroit: Labor Publications, 1987), p. 12.
[2] David North, Perestroika Versus Socialism: Stalinism and the Restoration of Capitalism in the USSR (Detroit: Labor Publications, 1989) p. 49.
[3] The National Interest, 19 (Summer 1989), p. 3.
[4] Programa de Transição, https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/index.htm
[5] The Third International After Lenin (Section 2: The United States and Europe), https://www.marxists.org/archive/trotsky/1928/3rd/ti01.htm#p1-02
[6] “War and the Fourth International,” June 10, 1934, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1934/06/warfi.htm
[7] “Order Out of Chaos,” https://www.marxists.org/archive/trotsky/1919/xx/order.html
[8] “Nationalism and Economic Life,” https://www.marxists.org/archive/trotsky/1934/xx/nationalism.htm
[9] “China, Japan and the Ukraine war,” Financial Times, March 27, 2023.
[10] Robert J. Alexander, International Trotskyism 1929-1985: A Documented Analysis of the Movement (Durham and London: Duke University Press, 1991) p. 32.
[11] Review by Bertrand M. Patenaude in The American Historical Review, Vol. 116, No. 3 (June 2011), p. 902; also cited in In Defense of Leon Trotsky, by David North (Oak Park, MI: Mehring Books, 2013), pp. 243-48.
[12] Leon Trotsky, A Revolução Permanente, https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1929/11/rev-perman.htm
[13] Thomas M. Twiss, Trotsky and the Problem of Soviet Bureaucracy (Chicago: Haymarket Books, 2014), p. 1.
[14] “Three Conceptions of the Russian Revolution,” (1939), https://www.marxists.org/archive/trotsky/1939/xx/3concepts.htm
[15] “The USSR in War,” In Defense of Marxism, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1939/09/ussr-war.htm
[16] Ernesto Laclau and Chantelle Mouffe, Hegemony & Socialist Strategy: Toward a Radical Democratic Politics (London and New York: Verso) p. 4.
[17] David North, Report to the 13th National Congress of the Workers League, Fourth International, July-December 1988, p. 39.
[18] Manifesto of the Fourth International on Imperialist War (1940), https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1938-1949/emergconf/fi-emerg02.htm