Esta apresentação foi feita por David North, Presidente Nacional do Partido Socialista pela Igualdade (SEP-EUA) e Presidente do Conselho Editorial Internacional do World Socialist Web Site, como abertura da Escola de Verão do SEP, realizada entre 20 de julho e 4 de agosto de 2023.
1. Ao abrir a Escola de Verão Internacional de 2023 do Partido Socialista pela Igualdade, gostaria, em primeiro lugar, em nome do SEP dos Estados Unidos e do Comitê Internacional da Quarta Internacional, de prestar uma homenagem à vida da camarada Wije Dias. Ele morreu há pouco mais de um ano, em 27 de julho de 2022, aos 80 anos. Mais de 60 desses anos foram dedicados à construção do movimento trotskista no Sri Lanka e internacionalmente. Nos últimos 35 anos de sua vida, mais de um terço de século, o camarada Wije ocupou o cargo de secretário-geral da seção cingalesa do CIQI. Até seu último dia de vida, ele permaneceu profundamente envolvido no trabalho da seção do Sri Lanka e nas lutas da classe trabalhadora.
2. Um balanço completo da vida do camarada Wije seria mais que a biografia de um indivíduo. Abrangeria necessariamente a história moderna da classe trabalhadora do Sri Lanka e do movimento trotskista mundial. Ele se tornou trotskista ao ingressar no movimento de juventude do Partido Lanka Sama Samaja (LSSP), que, através de uma luta de décadas pelo trotskismo, se tornara um partido revolucionário de massas da classe trabalhadora do Ceilão. Mas em junho de 1964, como consequência da influência destrutiva do pablismo e de sua própria adaptação crescente ao oportunismo parlamentar, o LSSP repudiou o programa socialista revolucionário do trotskismo e formou um governo de coalizão com o partido burguês SLFP liderado pela primeira-ministra Bandaranaike.
3. O camarada Wije esteve na vanguarda de uma notável geração de jovens revolucionários corajosos e principistas que se opuseram a essa traição e se propuseram a reconstruir, em luta implacável contra os oportunistas do LSSP, o movimento trotskista no Sri Lanka. Como resultado da viagem de Gerry Healy a Colombo em junho de 1964, Wije e outros opositores da coalizão estabeleceram contato com o Comitê Internacional da Quarta Internacional. As discussões com Healy e as declarações do CIQI denunciando a coalizão colocaram a traição do LSSP no contexto internacional mais amplo e essencial da luta contra o revisionismo pablista que remonta a 1953.
4. Os eventos históricos no Sri Lanka tiveram um impacto profundo no desenvolvimento do trotskismo nos Estados Unidos. Sempre foi motivo de orgulho ao Partido Socialista pela Igualdade dos Estados Unidos que a resposta principista dos apoiadores americanos do Comitê Internacional à traição do LSSP no Sri Lanka foi o que precipitou sua expulsão do Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores - SWP) em setembro de 1964 e a fundação do American Committee for the Fourth International (Comitê Americano pela Quarta Internacional - ACFI). Dois anos depois, em novembro de 1966, a Workers League (Liga dos Trabalhadores) se estabeleceu como seção simpatizante do CIQI. Em 1968, após um longo período de esclarecimento político, a Liga Comunista Revolucionária (RCL) foi fundada no Sri Lanka. O camarada Keerthi Balasuriya foi eleito seu primeiro secretário geral, cargo que ocupou até sua morte prematura aos 39 anos, em 18 de dezembro de 1987. Gostaria de acrescentar, entre parênteses, que o camarada Keerthi não apenas me ajudou a escrever 'Como o WRP traiu o trotskismo'. Ele foi, em todos os sentidos da palavra, um coautor pleno desse documento.
5. O camarada Wije desempenhou um papel central na liderança da RCL desde a sua fundação. Na situação extraordinariamente difícil imposta à RCL pela perda repentina e totalmente inesperada de seu brilhante e ainda muito jovem dirigente, Wije assumiu o posto de secretário-geral do partido. Ele aceitou essa responsabilidade em meio à guerra civil e os ataques terroristas e assassinatos dos membros da RCL pelos reacionários chauvinistas cingaleses do JVP. A liderança firme e decisiva de Wije manteve a coesão dos membros da Liga Comunista Revolucionária.
6. As características marcantes de Wije eram sua ilimitada e inabalável coragem pessoal e seu compromisso inflexível com os princípios políticos. Isso era reconhecido até mesmo por seus oponentes políticos, que, quando em sua presença, não podiam deixar de sentir certa vergonha de seu próprio oportunismo.
7. Wije não era apenas respeitado. Ele também era querido. Em uma ocasião, que tive a sorte de testemunhar, o camarada Wije, de origem cingalesa, foi convidado a participar, como convidado de honra, de um evento social em um bairro tâmil de Colombo. A guerra civil estava em seu ápice. Mas a comunidade tâmil tinha consciência da oposição intransigente do SEP à guerra racista. Quando o camarada Wije entrou no salão, foi calorosamente ovacionado. Ele era visto como o líder do único partido no Sri Lanka que representava a classe trabalhadora de todas as comunidades étnicas e religiosas.
8. O camarada Wije Dias possuía grande autoridade dentro do CIQI. Em todas as discussões em que ele participava, podíamos contar com sua vasta experiência, objetividade e conhecimento, e também nos revigorar com seu notável senso de humor. Wije entrou para a história do Comitê Internacional e seu exemplo permanecerá para sempre uma fonte de inspiração para os quadros do Partido Mundial da Revolução Socialista. Em homenagem à sua grande contribuição para a luta pelo socialismo e a vitória da classe trabalhadora internacional, dedicamos esta escola à vida e memória do Camarada Wije Dias. Faremos agora um minuto de silêncio.
9. Eu também gostaria de fazer saudações especiais aos nossos camaradas de todo o mundo. Realizar uma escola de verão em escala internacional exige que muitos camaradas assistam suas seções no meio da noite, e, apesar das exigências físicas criadas por isso, eles estarão presentes porque desejam participar desta importante revisão da história do nosso movimento. Valorizamos e agradecemos imensamente sua participação. Como explicarei, no decorrer desta palestra, uma das grandes conquistas da ruptura de 1985-86 foi o restabelecimento do genuíno internacionalismo revolucionário em nosso movimento.
10. Duas observações adicionais. Em primeiro lugar, em relação ao processo de tradução. Quando a camarada Andrea alertou sobre frases longas e complicadas com muitas orações, tive a sensação de que ela lera o rascunho do meu discurso. Peço desculpas antecipadamente.
11. Quanto à história das traduções em reuniões como esta, lembro-me de uma situação que me foi contada há muitos e muitos anos, em 1975, para ser preciso, por um revolucionário que participara do Segundo Congresso - desculpe-me, do Quarto Congresso - da Comintern em 1922. Ele era Arne Swabeck, que foi um dos fundadores do Partido Comunista dos EUA em 1919 e, mais tarde, um dos fundadores do movimento trotskista, a Communist League of America (Liga Comunista da América), como era então conhecida, em 1928. Ele tinha 85 anos na época, em perfeita saúde, ainda possuindo uma memória surpreendente que remontava a 1907. Ele me relatou sobre um dos primeiros encontros de massas em que participou, na Alemanha, quando passava pelo país vindo da Dinamarca. Era um evento de Primeiro de Maio em que Rosa Luxemburgo discursou. Ele comentou, em inglês com sotaque dinamarquês: 'She was quite a speaker' ['Ela era uma baita oradora'].
12. Então, ele me contou sobre sua experiência em 1922. Há duas anedotas em particular que eu me lembro muito bem. A primeira foi sua descrição de um discurso de Lenin. Todos estavam cientes de que Lenin sofrera um derrame e havia uma tremenda ansiedade sobre o estado de saúde de Lenin. Mas ele subiu na plataforma e fez um discurso brilhante. Todos os delegados estrangeiros ficaram muito encorajados, e o próprio Swabeck se virou para um delegado russo sentado ao seu lado e disse: 'Foi um discurso fabuloso'. E o delegado russo disse: 'Sim, mas você deveria ter ouvido Ilitch antes do derrame'.
13. Havia uma segunda anedota que se relaciona diretamente com a questão da tradução, e era sobre a aparição de Trotsky. Quando foi sua vez de falar, houve uma enorme excitação, uma ovação prolongada. Mas quando Trotsky começou a falar, ele começou com um pedido de desculpas, explicando que havia preparado todas as suas anotações em alemão. O alemão era, por assim dizer, a língua semioficial da Internacional Comunista. E ele disse que, por causa disso, falaria em alemão. Nesse instante, houve um protesto dos delegados franceses, que disseram: 'Camarada Trotsky, isso não é justo. A tradução não é muito boa. Será difícil acompanhar seu discurso.” Trotsky então disse em francês: 'Camaradas, entendo esse problema. Quando eu terminar minha apresentação em alemão, iremos para outra sala e repetirei ela em francês.' Nesse instante, os delegados russos começaram a gritar. 'Tovarisch Trotsky, Lev Davidovich, isso não está certo. Se você vai falar em alemão e depois em francês, deve dar sua palestra em russo.' Ele disse: 'Sim, camaradas, quando eu terminar minha palestra para os delegados franceses, nos encontraremos separadamente e darei meu relatório em russo'. Trotsky falou por três horas em alemão. Ele então deu seu discurso em francês e, mais tarde, em russo. Swabeck lembrava que já era bem tarde, ele estava deixando o prédio em que as sessões do Comintern eram realizadas, e ele viu Trotsky saindo da reunião com os delegados russos. Ele falou por um total de nove horas. E ele [Swabeck] se lembrava daquele evento como se tivesse acontecido no dia anterior.
14. Trotsky foi verdadeiramente uma figura extraordinária na história do movimento, e era difícil de entender que, somente alguns meses depois, eclodiria a luta no Partido Bolchevique que resultaria em sua perda de poder. De qualquer forma, agora estamos usando os benefícios da Inteligência Artificial e podemos aproveitar esta oportunidade para dar palestras que esperamos que sejam acompanhadas com certa facilidade pelos camaradas de todo o mundo que estão participando desta escola.
15. Agora, a última escola de verão presencial do Partido Socialista pela Igualdade foi realizada entre 21 e 28 de julho de 2019, poucos meses antes do surto da pandemia do Sars-CoV-2. A escola se dedicou a examinar o desenvolvimento da perspectiva e do programa do Comitê Internacional da Quarta Internacional após a ruptura com o Workers Revolutionary Party (Partido Revolucionário dos Trabalhadores - WRP) em fevereiro de 1986. Essa ruptura foi o resultado de um conflito prolongado dentro do CIQI que se desenrolou ao longo de um período de três anos.
16. Em outubro de 1982, a direção da Workers League informou Gerry Healy, Cliff Slaughter, Michael Banda e o Comitê Político do WRP de suas diferenças substanciais com a distorção feita pela seção britânica dos fundamentos filosóficos do marxismo e de seu desvio do programa da Revolução Permanente.
17. Os líderes britânicos descumpriram sua promessa inicial de organizar uma discussão abrangente das diferenças levantadas pela Workers League, recorrendo, em dezembro de 1982, a ameaças de uma ruptura imediata, a menos que a seção americana retirasse suas críticas. Em condições em que o Comitê Internacional desconhecia totalmente a existência das diferenças que haviam sido levantadas, as críticas foram retiradas.
18. No entanto, a recusa do WRP em corrigir seus erros e sua adesão cada vez mais aberta à política pablista - exemplificada pelas críticas de Cliff Slaughter em novembro de 1983 à nossa “ênfase muito carregada” na independência política da classe trabalhadora e pela glorificação irrestrita do WRP aos governos burgueses reacionários do Oriente Médio - isso obrigou a Workers League a renovar sua demanda, em janeiro de 1984, por uma discussão sobre a orientação política da seção britânica e a perspectiva mundial do Comitê Internacional.
19. Mais uma vez, o WRP se propôs a sabotar a organização de uma discussão adequada de questões políticas. Lembrem-se, essa era uma época em que não havia internet, nem e-mail, nem transmissão fácil e instantânea de documentos. Assim, quando os principais membros da Workers League chegaram a Londres em fevereiro de 1984, descobriram que as seções do Sri Lanka e da Austrália não haviam sido informadas sobre a reunião do CIQI. Eles não tinham delegados. A análise abrangente preparada pela Workers League da capitulação do WRP ao pablismo foi mais uma vez recebida com ameaças de ruptura imediata. Determinada a evitar uma ruptura organizacional prematura com o Comitê Internacional sob condições em que a essência, e mesmo a existência, de suas críticas permaneceria desconhecida para várias seções do movimento mundial, a Workers League mais uma vez retirou suas críticas ao WRP.
20. A crise que estourou dentro do WRP em julho de 1985, no entanto, não pôde ser escondida do Comitê Internacional. As críticas extensas e documentadas feitas pela Workers League entre 1982 e 1984, que finalmente circularam por todo o WRP e o CIQI, forneciam uma análise das políticas oportunistas e do afastamento do trotskismo contido na devastadora crise organizacional da seção britânica.
21. Entre outubro e dezembro de 1985, os trotskistas ortodoxos restabeleceram o controle sobre o Comitê Internacional. A seção britânica foi suspensa do CIQI, com sua readmissão condicionada à renovação explícita de seu compromisso com os princípios fundamentais do leninismo e do trotskismo, como haviam sido desenvolvidos e defendidos desde os quatro primeiros congressos da Internacional Comunista e da fundação da Oposição de Esquerda em outubro de 1923.
22. O WRP não podia cumprir essas exigências e se separou do Comitê Internacional em 8 de fevereiro de 1986 em um congresso fraudulento no qual os membros do WRP que apoiavam o Comitê Internacional - e que na verdade constituíam a maioria dos membros legítimos do partido - foram impedidos pela polícia, convocada por Slaughter, de entrar no salão. Essa divisão foi conduzida por Cliff Slaughter e Michael Banda com base em um documento, escrito por Banda, intitulado '27 razões pelas quais o Comitê Internacional deve ser enterrado imediatamente e a Quarta Internacional construída'. O título do documento era em si irônico, uma vez que nem uma única razão era dada por Banda para a construção da Quarta Internacional.
23. Como previsto pelo CIQI, praticamente todos aqueles que aderiram a este documento infame logo repudiaram o trotskismo e qualquer ligação política com o programa da revolução socialista. Muitos deles retornaram ao stalinismo e outros se tornaram cúmplices das operações militares da OTAN na Bósnia durante a guerra civil que se seguiu à destruição da Iugoslávia. Eles se tornaram anticomunistas e agentes do imperialismo.
24. Essa luta, que será analisada com mais detalhes em três palestras desta semana, está entre os eventos mais determinantes da história da Quarta Internacional. Ela impediu a destruição do movimento trotskista e criou as condições para um renascimento do marxismo e um imenso desenvolvimento no trabalho teórico, político e organizacional do Comitê Internacional.
25. Após a escola de 2019, o rompimento foi inserido no contexto mais amplo da história da Quarta Internacional. A apresentação de abertura da escola identificou cinco fases distintas na história do movimento trotskista.
26. A primeira fase durou um período de 15 anos, desde a fundação da Oposição de Esquerda em 1923 até a fundação da Quarta Internacional em 1938. Esse período abrangeu os acontecimentos históricos cruciais e experiências estratégicas que determinaram todo o curso da luta do trotskismo contra o stalinismo e que formaram a base do programa e perspectiva da Quarta Internacional. As lições essenciais desse período trágico, que testemunhou as maiores derrotas da classe trabalhadora internacional e a destruição física de uma vasta porção dos quadros do marxismo, foram resumidas na frase com a qual Trotsky abriu o documento fundador da Quarta Internacional: “A situação política mundial como um todo é caracterizada principalmente por uma crise histórica da direção do proletariado”.
27. A segunda fase abrangeu outro período de 15 anos, desde a fundação da Quarta Internacional até a cisão com a direção pablista do Secretariado Internacional e a formação do Comitê Internacional há 70 anos, em novembro de 1953. Essa fase, como explicamos em 2019, “engloba o assassinato de Trotsky, toda a Segunda Guerra Mundial, o estabelecimento de regimes stalinistas na Europa Oriental, a reestabilização do capitalismo na Europa Ocidental e no Japão, a eclosão da Guerra Fria, a vitória da Revolução Chinesa, a eclosão da Guerra da Coréia e, finalmente, a morte de Stalin”.
28. A terceira fase da Quarta Internacional abrangeu 33 anos de luta no interior do Comitê Internacional - não existe Quarta Internacional fora do Comitê Internacional - que começou com o lançamento da 'Carta aberta aos trotskistas de todo o mundo', de James P. Cannon, e terminou com a suspensão do WRP do CIQI em dezembro de 1985 e o rompimento final com os renegados, defensores do oportunismo nacional, em fevereiro de 1986. Foi um período que caracterizamos como de guerra civil prolongada dentro do Comitê Internacional, marcado por uma série de intensos conflitos políticos com tendências pablistas tanto fora quanto dentro do CIQI. A apresentação explicou:
Ao longo deste período explosivo, durante o qual poderosos movimentos de massa da classe trabalhadora colocaram objetivamente a possibilidade da revolução socialista, o Comitê Internacional teve que lidar não apenas com a pressão implacável dos partidos stalinistas e social-democratas, sindicatos e organizações relacionadas. As organizações pablistas, aliadas às burocracias acima mencionadas, bem como um amplo estrato de radicais pequeno-burgueses e intelectuais antitrotskistas, buscaram isolar o Comitê Internacional, combinando falsificações intermináveis da teoria marxista e dos princípios da Quarta Internacional com uma série sem fim de provocações políticas e organizacionais.
29. Faço um parênteses. Os relatórios que serão apresentados esta semana se concentrarão nesta terceira fase da história da Quarta Internacional, que incluirá experiências cruciais da Workers League - em particular, a ruptura com Wohlforth, o início das investigações da Segurança e a Quarta Internacional e as intervenções do partido na luta de classes - que levaram a um desenvolvimento significativo dos quadros trotskistas nos Estados Unidos e sua oposição ao curso oportunista do WRP. Como enfatizamos em 2019:
A história política da Workers League e o trabalho teórico-político da seção sensibilizaram a liderança da WL, imbuída da história e dos princípios do movimento trotskista, para processos econômicos e eventos políticos objetivos. Isso gerou insatisfação política e discordância com o curso seguido pelo WRP.
30. A quarta fase da história da Quarta Internacional começou com a ruptura com o WRP em fevereiro de 1986 - isto é, com a vitória decisiva sobre os oportunistas e o estabelecimento da autoridade política dos trotskistas dentro do Comitê Internacional. Isso se verificou, como já frisei, no extraordinário desenvolvimento do CIQI, finalmente libertado da influência destrutiva e das maquinações do pablismo. A conquista mais crucial desse período foi o desenvolvimento de uma perspectiva mundial que permitiu ao Comitê Internacional alinhar uma prática internacional politicamente unificada com a globalização objetiva da vida econômica e suas implicações para o desenvolvimento da luta de classes internacional.
31. Explicando a intensa interação entre as seções do CIQI que se desenvolveu após a ruptura de 1985-86, citei o relatório que apresentei a uma reunião dos membros de Detroit em 25 de junho de 1989:
O escopo dessa colaboração internacional, seu impacto direto em praticamente todos os aspectos do trabalho prático de cada seção, alterou profunda e positivamente o caráter do CIQI e de suas seções. Essas últimas estão deixando de existir, em qualquer sentido político e prático significativo, como entidades independentes. Sobre a fundação de um programa político comum, uma complexa rede de relações emergiu no CIQI, que une todas as seções. Ou seja, as seções do CIQI representam componentes interconectados e interdependentes de um único organismo político. Qualquer quebra desse relacionamento teria efeitos devastadores para a seção envolvida. Cada seção agora se tornou dependente, para sua própria existência, dessa cooperação e colaboração internacional, tanto ideológica quanto prática.
32. Os avanços do Comitê Internacional não foram - e não poderiam ter sido - apenas o produto da vontade subjetiva e da sinceridade política de seus quadros. Por trás desses avanços estavam profundas mudanças nas condições socioeconômicas em escala mundial e seu reflexo nas estruturas e relações políticas. Em vários momentos apontamos que os principais desenvolvimentos no interior do movimento trotskista - especialmente os períodos intensos de luta interna partidárias - ocorreram seja como antecipação ou como resultado de pontos de inflexão críticos na política mundial.
33. A luta de facções de 1939-40 no SWP se ocorreu como uma resposta quase imediata à eclosão da Segunda Guerra Mundial. A ruptura de novembro de 1953 foi precipitada pela morte de Stalin oito meses antes, que desencadeou uma série interminável de crises no Kremlin e no movimento stalinista mundial. Também refletiu o crescimento de uma forma de radicalismo pequeno-burguês que surgiu em oposição ao movimento da classe trabalhadora como força social politicamente independente e revolucionária.
34. Como logo ficaria claro, a luta dentro do Comitê Internacional entre 1982 e 1986 antecipou o estágio terminal da degeneração da burocracia stalinista, culminando com a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991. Para observadores superficiais - especialmente aqueles da direção do WRP - talvez parecesse altamente improvável que a oposição aparentemente isolada da Workers League se tornaria, dentro de apenas três anos, o ponto focal de um novo realinhamento trotskista e a maioria do Comitê Internacional.
35. No sentido mais profundo, a força da oposição trotskista derivava do fato de que ela não apenas analisava corretamente os processos objetivos, mas que esses processos - em contraste com a situação que existia em 1939-40, em 1953, ou mesmo durante a luta da SLL contra a reunificação sem-princípios do SWP com os pablistas em 1961-63 - eram favoráveis à tendência revolucionária. Os processos da globalização econômica estavam destruindo os fundamentos sociais de todas as formas de programa trabalhista nacional, social-democrata, stalinista e sindical. Nenhum dos velhos partidos trabalhistas e sindicatos com raízes nacionais era capaz de conceber uma resposta viável às novas realidades econômicas. A dissolução da União Soviética e a desintegração dos partidos e organizações stalinistas de massas foram a parte mais significativa de um processo mais amplo de colapso do reformismo de base nacional.
36. As principais iniciativas das seções do CIQI - especialmente a transição de ligas para partidos e o lançamento do World Socialist Web Site - se basearam em uma avaliação correta das forças objetivas que forneciam um novo e poderoso impulso para o desenvolvimento do Comitê Internacional como o Partido Mundial da Revolução Socialista.
37. Resumindo os 33 anos entre 1986 e 2019, a apresentação afirmava:
O trabalho preparatório crucial de remover os pablistas, reconstruir o partido mundial em uma base internacionalista, elaborar a estratégia internacional do Comitê Internacional da Quarta Internacional, defender o patrimônio histórico da Quarta Internacional, converter as ligas do Comitê Internacional em partidos e estabelecer o World Socialist Web Site foram as principais conquistas da quarta fase. Essas conquistas possibilitaram uma vasta expansão da influência política do Comitê Internacional e um crescimento significativo de sua base. Essa etapa está concluída.
38. A apresentação de 2019 afirmou, então, que a quinta fase da história do movimento trotskista tinha começado:
Este é o estágio que testemunhará, afirmamos, um vasto crescimento do CIQI como o Partido Mundial da Revolução Socialista. Os processos objetivos de globalização econômica, identificados pelo Comitê Internacional há mais de 30 anos, tiveram um desenvolvimento colossal. Combinados ao surgimento de novas tecnologias que revolucionaram as comunicações, esses processos internacionalizaram a luta de classes em um grau que, apenas 25 anos atrás, seria difícil de imaginar. A luta revolucionária da classe trabalhadora se desenvolverá como um movimento mundial interconectado e unificado. O Comitê Internacional da Quarta Internacional será construído como a direção política consciente desse processo socioeconômico objetivo. Ele irá contrapor à política capitalista da guerra imperialista a estratégia classista da revolução socialista mundial. Esta é a tarefa histórica essencial da nova fase da história da Quarta Internacional.
39. Quatro anos se passaram desde que identificamos o início da quinta fase da história da Quarta Internacional. Agora é preciso levantar a questão: os acontecimentos posteriores confirmaram essa avaliação, seja em termos do desenvolvimento da crise econômica e política objetiva do capitalismo, como da intensificação da luta de classes e, finalmente, da atividade do partido?
40. Olhando retrospectivamente aos quatro anos que se passaram, é um fato indiscutível que a escola de 2019 ocorreu às vésperas de uma gigantesca escalada da crise econômica, política e social do capitalismo mundial. Além disso, apenas semanas após a conclusão da escola, um acontecimento que poderia parecer incidental forneceu um indício significativo de um avanço qualitativo da influência política e intelectual do partido.
41. Em 19 de agosto de 2019, o New York Times publicou em sua revista de domingo uma série de ensaios, dos quais o mais proeminente era o artigo de Nikole Hannah-Jones que anunciou o lançamento do 'Projeto 1619'. Dedicando enormes recursos a esse projeto, o jornal corporativo burguês mais influente dos Estados Unidos - o carro-chefe midiático do Estado, das agências de inteligência e do establishment acadêmico estadunidense - anunciou o início de uma revisão fundamental da narrativa da história americana. Nem a Revolução Americana nem a Guerra Civil Americana deveriam mais ser vistas como eventos históricos progressistas. O Projeto 1619 se propunha a desmascarar de uma vez por todas a Revolução como uma rebelião desesperada e cínica de proprietários de escravos, determinados a frustrar os esforços do Império Britânico e do heróico Lorde Dunmore para promover a causa da emancipação.
42. Quanto à Guerra Civil, eles diziam, pouco tinha a ver com a destruição da escravidão. O exército da União era, no máximo, um coadjuvante no drama muito maior da auto-emancipação dos escravos. Quanto a Lincoln, este não passava de um racista ordinário e vil, que nada queria além da remoção dos negros do continente norte-americano e seu retorno à África.
43. Essa revisão histórica fraudulenta e intelectualmente corrompida - em grande medida baseada numa reciclagem da mitologia racista reacionária de propagandistas do nacionalismo negro como Lerone Bennett Jr. - foi imediatamente saudada pela mídia e por um coro de acadêmicos como uma revelação há muito aguardada. Ela teria permanecido praticamente incontestada se não fosse pela intervenção do World Socialist Web Site. Em 3 de setembro de 2019, apenas duas semanas após o início do Projeto 1619, o WSWS publicou sua primeira grande resposta, intitulada: “O Projeto 1619 do New York Times: uma falsificação racialista da história dos EUA e do mundo'.
44. Essa exposição abrangente dos erros grosseiros e gritantes no ensaio de Hannah-Jones foi seguida não apenas por ensaios aprofundando a crítica ao Projeto de 1619. O camarada Tom Mackaman entrevistou grandes historiadores - incluindo Gordon Wood, James McPherson, James Oakes, Richard Carwardine, Victoria Bynum e Clayborne Carson - que refutaram em detalhes as principais alegações do Projeto 1619.
45. Os ensaios e entrevistas publicados no World Socialist Web Site atraíram atenção nacional e internacional e colocaram o New York Times na defensiva. A tentativa inepta dos editores de salvar a credibilidade do Projeto através de correções silenciosas e/ou sem explicação ao texto original de Hannah-Jones serviu apenas para desacreditar ainda mais essa patética campanha propagandística.
46. O papel desempenhado pelo WSWS na exposição do Projeto 1619 foi de imensa importância intelectual e política. O movimento trotskista, desde a sua origem, foi obrigado a expor as mentiras grotescas sobre a Revolução de Outubro e a história soviética por historiadores stalinistas e burgueses. No período posterior à dissolução da URSS, o Comitê Internacional publicou uma vasta literatura de exposição das mentiras da Escola Pós-Soviética de Falsificação Histórica. Ela inclui as obras de Vadim Rogovin - que foram escritas em estreita colaboração com o Comitê Internacional - bem como a exposição das calúnias contra Trotsky realizada pelos professores Ian Thatcher, Geoffrey Swain e Robert Service, respostas publicadas no livro 'Em Defesa de Leon Trotsky'.
47. É de se esperar que o movimento trotskista assuma a liderança na exposição da falsificação da história do movimento socialista. Mas o fato de a defesa da Revolução Americana e da Guerra Civil ter exigido, e dependido integralmente, da intervenção do movimento trotskista tem um significado político abrangente. É uma confirmação na esfera da vida intelectual dos Estados Unidos de uma premissa fundamental da teoria da revolução permanente. Na época da decadência imperialista, a defesa sistemática e intransigente das conquistas cruciais e duradouras das revoluções democráticas - incluindo a defesa intelectual de sua legitimidade histórica - só pode ser mantida pela luta do movimento socialista e da mobilização da classe trabalhadora.
48. A primeira edição de 2020 do World Socialist Web Site publicou uma artigo de perspectiva intitulado: 'Começa a década da revolução socialista'. Ele declarou:
A chegada do Ano Novo marca o início de uma década de intensificação da luta de classes e da revolução socialista mundial.
No futuro, quando os historiadores escreverem sobre os levantes do século XXI, eles enumerarão todos os sinais “óbvios” que existiam, no início da década de 2020, da tempestade revolucionária que logo varreria o mundo. Os estudiosos – com uma grande variedade de fatos, documentos, gráficos, publicações em sites e redes sociais e outras formas de valiosas informações digitalizadas à sua disposição – descreverão os anos 2010 como um período de insolúvel crise econômica, social e política do sistema capitalista mundial.
Eles observarão que, no início da terceira década do século, a história chegou exatamente à situação prevista teoricamente por Karl Marx: “Em certo estágio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no interior das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em entraves das mesmas. Inaugura-se então uma época de revolução social. Com a alteração da base econômica, altera-se mais lentamente ou mais rapidamente toda a imensa superestrutura.”
49. É provável que muitos leitores do site, incluindo aqueles que no geral concordam com a perspectiva do Comitê Internacional, e talvez até membros de nosso partido, tenham visto esse artigo de perspectiva como certo exercício de exagero retórico, motivado mais pela ocasião da celebração de uma nova década do que por uma análise séria da situação histórica.
50. Mas a presciência dessa afirmação seria confirmada pelos acontecimentos. Antes do primeiro mês de 2020 chegar ao fim, as primeiras notícias de uma potencial pandemia eram publicadas pela mídia. O WSWS publicou seu primeiro artigo sobre o surto do novo coronavírus em 24 de janeiro de 2020. O site rapidamente reconheceu o imenso perigo global representado pela pandemia em rápido desenvolvimento. Em 28 de fevereiro de 2020, o CIQI publicou uma declaração intitulada: 'Por uma resposta de emergência globalmente coordenada à pandemia de coronavírus!'. Com um nível de clareza inigualável por qualquer outra publicação, o CIQI compreendeu as vastas implicações econômicas, sociais e políticas da pandemia, definindo-a como um “evento desencadeador” que intensificaria todas as contradições inerentes à sociedade capitalista em escala global.
51. Em mais uma manifestação do papel crucial da intervenção do partido nos principais desenvolvimentos políticos e sociais, o Comitê Internacional assumiu a liderança da luta global contra a pandemia, fornecendo uma perspectiva e direção política para profissionais de saúde, cientistas e os setores mais amplos da classe trabalhadora. Em uma época anterior, grandes crises de saúde pública foram respondidas com amplas iniciativas públicas para educar a população e erradicar doenças infecciosas. Nada disso ocorreu em resposta ao surto da pandemia de Sars-CoV-2. Uma oposição organizada e eficaz à política de 'negligência maligna'- como o WSWS descreveu a resposta dos governos burgueses já em março de 2020 - veio apenas do Comitê Internacional.
52. Em 6 de março de 2020, o PS publicou uma declaração intitulada 'O que deve ser feito para combater a pandemia do coronavírus'. Em 14 de março de 2020, o SEP lançou uma declaração convocando “uma paralisação imediata da indústria automotiva e de toda a produção não essencial no país em resposta à pandemia do coronavírus, com pagamento integral para todos os trabalhadores afetados”. A isso se seguiu, em 17 de março, uma declaração do Comitê Nacional do SEP, “Como combater a pandemia de Covid-19: um programa de ação para a classe trabalhadora”. Essas declarações desempenharam um papel significativo no desencadeamento de greves selvagens em Michigan, que forçaram as empresas a fechar temporariamente fábricas em toda a América do Norte. Penso que deve ser enfatizado que, naquele momento, o número total de mortes nos Estados Unidos ainda era de apenas algumas dezenas. E em todo o mundo, apenas alguns milhares. Temos o direito de perguntar quantas vidas teriam sido poupadas se a política proposta pelo nosso partido tivesse sido adotada. Bem, sabemos a resposta: teriam salvado a vida de milhões.
53. O WSWS definiu as três respostas políticas fundamentais à pandemia: 1) a resposta do Estado capitalista de “imunidade de rebanho”; 2) a resposta reformista liberal de “mitigação”; e 3) o programa cientificamente fundamentado e necessariamente socialista de eliminação e erradicação do vírus. O WSWS realizou dois webinários internacionais, reunindo destacados cientistas e especialistas em saúde pública, para educar a classe trabalhadora e organizar o apoio de massas para a implementação da política de eliminação/erradicação.
54. Em 24 de abril de 2021, o Comitê Internacional emitiu seu chamado para a formação da Aliança Internacional Operária de Comitês de Base como uma resposta necessária à pandemia e à necessidade de coordenar as lutas da classe trabalhadora em escala global.
55. Em novembro de 2021, pouco antes do surto da devastadora variante Ômicron, o WSWS iniciou uma investigação internacional sobre a pandemia. Essa iniciativa, que está em andamento, é a investigação mais avançada e abrangente sobre o impacto social global da pandemia e a resposta criminosa dos governos capitalistas.
56. A resposta do CIQI à pandemia não se restringiu a comentários. Ou, para ser mais preciso, sua análise da pandemia esteve inseparavelmente ligada à organização da oposição massiva da classe trabalhadora às políticas assassinas de todos os governos.
57. Em 6 de janeiro de 2021, Donald Trump organizou um ataque ao Capitólio para impedir a ratificação da vitória de Biden nas eleições de novembro de 2020, perpetuar seu controle da Casa Branca e estabelecer, na prática, uma ditadura presidencial. A tentativa de golpe - que havia sido prevista pelo World Socialist Web Site - foi um evento sem precedentes na história dos EUA e fundamentou a análise do SEP sobre a crise terminal da democracia dos EUA. O fracasso do golpe - atribuível muito mais à inexperiência tática da multidão do que à resistência organizada das forças do Estado - não levou à estabilização da situação política. A próxima eleição presidencial americana está se desenrolando sob a sombra persistente do golpe de 2021.
58. Por fim, sobre as experiências desde a escola de 2019 e o início da quinta fase que ela identificou: em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Longe de o início súbito e inesperado do que o governo Biden e os governos europeus, acompanhados pela mídia, denunciaram como uma 'guerra não provocada', a invasão foi o resultado de provocações sistemáticas da OTAN. Estas remontam ao golpe de Maidan de 2014 e mesmo antes, e tiveram o objetivo de conduzir a Rússia a uma guerra desastrosa para desestabilizar o regime e levar à dissolução da federação russa.
59. Como notamos em ocasiões anteriores, as declarações publicadas pelo WSWS ao longo dos últimos dez anos são as refutações mais esmagadoras da narrativa da 'guerra não provocada'. Em centenas de artigos e declarações, o WSWS advertiu explicitamente sobre os preparativos sistemáticos dos Estados Unidos para a guerra contra a Rússia e a China. Desde 24 de fevereiro de 2022, o número total de artigos relacionados à guerra na Ucrânia se aproxima de 1.000. Mesmo se dedicássemos uma semana inteira para reexaminar a cobertura do WSWS sobre a guerra, esse tempo limitado exigiria uma seleção cuidadosa de documentos.
60. A guerra é a confirmação crucial do reconhecimento do Comitê Internacional tanto de que o movimento trotskista entrou na quinta fase de sua história quanto da década de 2020 ser uma década de lutas revolucionárias. Como a manifestação mais extrema das contradições do capitalismo americano e do sistema capitalista mundial como um todo, a implacável escalada da guerra coloca diante da classe trabalhadora as alternativas do socialismo ou da barbárie.
61. A compreensão do caráter existencial da crise requer o reconhecimento de que a provocação deliberada dessa guerra e a determinação inconsequente de escalar o confronto com a Rússia e a China - duas potências nucleares - não são produto apenas de agressão irracional. Como na década de 1930, as classes dominantes não veem saída para sua crise, exceto através da guerra. Em 1938, Trotsky escreveu na abertura do Programa de Transição que as potências imperialistas eram ainda menos capazes de evitar a Segunda Guerra Mundial do que às vésperas da Primeira Guerra. Podemos dizer hoje, com o mesmo grau de urgência, que as elites capitalistas da América do Norte e da Europa são ainda menos capazes de impedir a Terceira Guerra Mundial do que foram de impedir a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
62. Seria absurdo supor que o governo Biden ignora completamente a alta probabilidade de que uma guerra nuclear resultaria na morte de dezenas de milhões de pessoas e na destruição dos Estados Unidos - ou, melhor dizendo, de centenas de milhões de pessoas somente nos Estados Unidos. Mas isso só pode significar que a guerra nuclear é vista pelas elites dominantes como um risco necessário a se tomar para atingir objetivos ainda mais cruciais para a sobrevivência do capitalismo americano. Além disso, do ponto de vista da classe dominante, uma América sem capitalismo é um país que não vale a pena ser salvo.
63. Na análise desenvolvida ao longo de muitas décadas pelo Comitê Internacional sobre o imperialismo americano, enfatizamos que os Estados Unidos têm buscado sistematicamente compensar seu prolongado declínio econômico em relação a seus principais rivais capitalistas por meio da utilização da força militar.
64. Essa relação entre a deterioração econômica e o apelo a soluções militares adquiriu certo caráter de lei da geopolítica contemporânea. A preservação do papel dominante dos Estados Unidos na geopolítica global, para não falar de sua busca pela hegemonia, é totalmente depende da manutenção do dólar americano como a moeda de reserva mundial indiscutível. Essa é a base fundamental não apenas ao domínio dos Estados Unidos nos assuntos internacionais, mas também, e não menos importante, para evitar sua falência financeira doméstica.
65. É importante lembrar que a base do sistema de Bretton Woods, que existiu de 1944 a 1971, era a convertibilidade do dólar em ouro à taxa de US$ 35 por onça. A viabilidade desse sistema dependia da proeminência industrial e financeira dos Estados Unidos, o que garantiria superávits comerciais e da balança de pagamentos. A deterioração desses índices cruciais ao longo da década de 1960 acabou forçando os Estados Unidos a repudiar o lastro do dólar em ouro em agosto de 1971.
66. Dito de forma simples, à medida que a dívida se acumulava no exterior - e lembro que houve o que eles chamavam de um 'overhang' (ou, excedente) de 80 bilhões de euro-dólares em 1971, o que impossibilitava garantir que uma repatriação desses dólares da Europa para Estados Unidos fosse paga em ouro - foi isso que obrigou os Estados Unidos a abandonar o lastro oficial do dólar em ouro e mudar para um sistema de taxas de câmbio flutuantes. Há cinquenta anos! Isto é, a taxa de câmbio diária das moedas passaria a ser determinada no próprio mercado, influenciada por fatores como a balança comercial de um país, balanço de pagamentos correntes e a situação do orçamento nacional.
67. Nas décadas que se seguiram ao colapso de Bretton Woods, os Estados Unidos acumularam níveis cada vez maiores de dívida e déficits. No entanto, o papel do dólar como moeda de reserva mundial foi mantido, mesmo que por nenhuma outra razão além da ausência de qualquer outra moeda nacional capaz de suplantar o dólar. Isso deu aos Estados Unidos imensos privilégios. Como fornecedores da principal moeda do mundo, os EUA foram permitidos a gerar déficits colossais orçamentários, comerciais e de pagamentos.
68. No entanto, os acontecimentos dos últimos 15 anos levantaram sérias dúvidas sobre a continuidade do papel global exclusivo do dólar. Primeiro, a escala da dívida pública dos EUA cresceu exponencialmente. Foi somente em 1982 que dívida pública ultrapassou o marco de US$ 1 trilhão. Hoje é de mais de US$ 32 trilhões. A dívida pública é mais de 100% do produto interno bruto dos Estados Unidos.
69. A explosão na escala da dívida pública durante os últimos 15 anos está diretamente ligada a dois resgates maciços de Wall Street: o primeiro em 2008 e o segundo, ainda maior, em resposta ao crash de Wall Street de 2020 desencadeado pela pandemia.
70. Outro fator que afeta o status do dólar é sua crescente utilização como arma pelos Estados Unidos, através de sanções financeiras, contra rivais externos em conflito com seus interesses. Como o influente comentador da política externa americana, Fareed Zakaria, escreveu no Washington Post em 24 de março de 2023:
O dólar é o superpoder dos Estados Unidos. Isso dá a Washington uma envergadura econômica e política imbatível. Os Estados Unidos podem impor sanções unilateralmente a países, isolando-os de grandes partes da economia mundial. E quando Washington gasta livremente, tem a certeza de que sua dívida, geralmente na forma de T-bills (títulos do governo), será comprada pelo resto do mundo.
71. Mas Zakaria expressou preocupação de que as ações agressivas dos Estados Unidos estejam provocando uma reação perigosa. Ele disse:
A utilização do dólar como arma por Washington na última década levou muitos países importantes a procurar maneiras de garantir que não se tornem a próxima Rússia. A participação do dólar nas reservas dos bancos centrais globais caiu de cerca de 70% há 20 anos para menos de 60% hoje, e seguem caindo de forma constante. Os europeus e chineses estão tentando construir sistemas de pagamentos internacionais por fora do sistema SWIFT dominado pelo dólar. A Arábia Saudita flertou com a ideia de precificar seu petróleo em yuan. A Índia está realizando a maior parte de suas compras de petróleo da Rússia em moedas que não o dólar. As moedas digitais, que estão sendo exploradas pela maioria das nações, podem ser outra alternativa; na verdade, o banco central da China criou uma. Todas essas alternativas aumentam os custos, mas os últimos anos deveriam ter nos ensinado que as nações estão cada vez mais dispostas a pagar um preço para alcançar objetivos políticos.
72. A classe dominante americana está cada vez mais preocupada com o risco de que o crescimento da China como um grande rival econômico possa acelerar uma fuga do dólar; que outro sistema para financiar transações comerciais globais - possivelmente baseado em um conjunto de moedas ou, ainda pior, no aumento do uso do ouro - prive o dólar de seu status exclusivo.
73. Uma audiência de junho do Subcomitê de Instituições Financeiras e Política Monetária do Comitê de Serviços Financeiros do Congresso dos EUA, teve como título: 'Dominância do Dólar: Preservando o Status do Dólar Americano como Moeda de Reserva Global'. Em seu discurso de abertura, a congressista Joyce Beatty, uma democrata negra de Ohio, afirmou:
O dólar americano é considerado a moeda de reserva global porque cerca de 60% das reservas dos bancos centrais de todo o mundo são mantidas em dólares americanos. O dólar é a principal moeda no comércio internacional. O petróleo é precificado e pago em dólares americanos, e quase 90% das transações nos mercados de câmbio envolvem, sim, o dólar. O mercado de títulos do tesouro dos EUA também é o mercado mais ativo e com maior liquidez do mundo, e a confiabilidade e estabilidade dos mercados de capitais dos EUA tornam o dólar a moeda de preferência dos investidores.
O domínio e a supremacia de sua moeda proporcionam aos Estados Unidos inúmeros benefícios, desde a redução dos custos de empréstimos até o aumento da estabilidade financeira para influenciar os mercados financeiros globais. Também nos permite alavancar medidas econômicas contra aqueles que buscam ameaçar nossa segurança nacional e política externa. Dado o valor inquestionável da posição dominante do dólar americano, é fundamental abordarmos as presentes ameaças contra ela.
Enquanto estamos aqui falando, adversários externos como a Rússia e a China estão trabalhando ativamente para minar o dólar americano e prejudicar nosso poder e influência globais. Vemos isso no rápido acúmulo de reservas de ouro da Rússia na última década, bem como no desenvolvimento de sistemas alternativos ao SWIFT na China para compensar e liquidar transações.
74. Na mesma audiência, Marshall Billingslea, que ajudou a desenvolver as “técnicas avançadas de interrogatório” durante a Guerra ao Terror e que ocupou vários cargos no alto escalão do Estado, expressou a preocupação de que o dólar venha a sofrer o destino do dólar de prata espanhol do século XVI, do florim holandês do século XVII e, finalmente, da libra esterlina britânica. Ele afirmou que a 'ligação entre a moeda de uma nação ser o meio de troca preferencial e o relativo domínio dessa nação no cenário global é clara'. Ele prossegue:
E é por isso que líderes como Lula, Putin e Xi têm todos a aspiração de minar o papel do dólar como moeda de reserva global, tanto quanto têm intenção de corroer as bases da segurança internacional que construímos a tanto custo após a Segunda Guerra Mundial. Em última análise, eles vêem isso como uma maneira de destituir os Estados Unidos como o líder do mundo livre. No curto prazo, eles veem isso como uma forma de corroer nossa capacidade de usar as finanças como uma ferramenta para salvaguardar nossa segurança nacional.
75. Significativamente, Billingslea expressou grande preocupação com o acúmulo de ouro pela Rússia e pela China. Ele disse:
Em março de 2018, a Rússia começou a liquidar aplicações em títulos do Tesouro dos EUA, passando de US $ 96 bilhões para US $ 15 bilhões. A Rússia também começou a comprar grandes quantidades de ouro, tornando-se o quinto maior possuidor do mundo (com 2.300 toneladas). …
A China agora também está embarcando em uma onda de compra de ouro. Ainda não vi os dados de maio, mas abril marcou o sexto mês consecutivo de expansão das reservas chinesas de ouro, com o estoque atingindo mais de 2 mil toneladas. Pelo menos, esses são os números oficiais. Suspeito que o número seja de fato muito maior e que eles estejam ocultando quantidades geradas pela mineração de ouro chinesa em todo o mundo; a China é o maior produtor de ouro do mundo e metade da produção é estatal. A China também é o maior importador de ouro do mundo, grande parte não declarada. No mínimo, a RPC está construindo um baú de guerra com recursos mais difíceis de serem atingidos por sanções financeiras. Mas se a China começar a lastrear contratos de yuan em ouro, possivelmente também conseguirá superar um grande bloqueio para que o yuan desafie o dólar, resolvendo as preocupações com a conversibilidade.
76. Jeffrey A. Frankel, da Harvard Kennedy School, apresentou um paper em 24 de março de 2023 em uma conferência organizada pelo Peterson Institute for International Economics, em Washington. A sessão em que ele participou era intitulada: 'Será possível melhorar ou substituir o sistema baseado no dólar?'
Ele chamou a atenção para a importância renovada do ouro. As moedas nacionais não são necessariamente o único tipo de reservas internacionais, nem, aliás, o único tipo de unidade internacional de conta ou meio de pagamento. Um bem alternativo, embora até recentemente considerado pela maioria dos economistas 'uma relíquia do passado bárbaro', está agora recuperando um papel ativo como componente das reservas internacionais. É o ouro. A outra alternativa é uma novidade: a criptomoeda (um sinal de um futuro bárbaro?)
Faz tempo que pensávamos que as reservas de ouro do banco central eram um anacronismo. As autoridades monetárias de muitos países ainda detinham algum ouro, mas não o tratavam como parte ativa de suas reservas internacionais. Ou seja, não compravam nem vendiam ouro. Nos últimos anos, no entanto, os bancos centrais, especialmente na Ásia, têm ativamente comprado (e vendido) ouro.
77. A guerra na Ucrânia já avançou bem em seu segundo ano. A escala de morte e destruição está além de qualquer coisa vista na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O número de soldados ucranianos e russos mortos ou feridos é desconhecido. Nem o regime ucraniano nem o russo estão fornecendo números precisos. Mas há informações suficientes para uma estimativa plausível do número de mortes ucranianas sendo de ao menos 200 mil e possivelmente bem maior. O número de mortes russas pode estar se aproximando de 100 mil. Praticamente todos que foram mortos não têm responsabilidade por esta guerra. Os mortos ucranianos e russos são vítimas inocentes das decisões tomadas pelas potências imperialistas da OTAN, seus lacaios em Kiev e o regime politicamente falido de Moscou.
78. É verdade que os Estados Unidos e a OTAN instigaram a guerra. Mas a decisão reacionária do regime Putin de invadir é o produto final da dissolução da União Soviética, da restauração do capitalismo e da transferência do poder político para uma gangue de oligarcas corruptos. Todos os erros de cálculo desastrosos do governo Putin têm suas origens na concepção ilusória de que a restauração do capitalismo resultaria em prosperidade e na integração benigna da Rússia na irmandade das nações capitalistas. Putin acreditava que bastaria ele denunciar o marxismo e a Revolução de Outubro para ganhar a confiança e a amizade de seus chamados 'parceiros ocidentais'. Mas o imperialismo americano e europeu não quer a amizade de Putin. Ele quer acesso irrestrito ao ouro, platina, lítio, molibdênio, titânio, cobalto e outros metais e minerais estratégicos essenciais que podem ser encontrados no solo desse vasto país.
79. Esta guerra não é um episódio passageiro. Seja qual for o resultado de curto prazo dos combates, o conflito é um marco na normalização da guerra e na aceitação do assassinato em massa na busca de objetivos geopolíticos. A classe dominante americana não se esforça para esconder seus planos de guerra global. Não está em questão se a guerra com a Rússia e a China 'vai acontecer', mas como e quando será travada. Em uma declaração franca sobre objetivos geopolíticos, a The National Interest, uma influente revista, argumentou que a diplomacia americana não deveria ter como principal foco evitar a guerra com a Rússia e a China, mas encontrar 'uma maneira de espaçar suas disputas com esses dois poderes para garantir que não enfrentará os dois ao mesmo tempo em uma guerra'.
80. A guerra na Ucrânia é a confirmação mais poderosa da identificação do caráter revolucionário da presente década feita pelo Comitê Internacional. Mas como isso se relaciona à análise do CIQI sobre a quinta fase da história da Quarta Internacional? A resposta a essa pergunta requer uma compreensão marxista da relação, no contexto de uma época revolucionária, entre o desenvolvimento objetivo da crise capitalista e a inevitável intensificação do conflito de classes e a prática subjetiva do partido revolucionário.
81. Em todas as suas principais declarações sobre a questão da guerra, Trotsky enfatizou repetidamente dois pontos fundamentais. O primeiro ponto é que o avanço para a guerra imperialista só pode ser interrompido por meio da derrubada revolucionária do capitalismo pela classe trabalhadora. O segundo ponto é que a derrubada exitosa do capitalismo depende da construção da Quarta Internacional como direção revolucionária da classe trabalhadora. A evolução do movimento espontâneo da classe trabalhadora, sem uma direção revolucionária, não impedirá nem a guerra nem a imposição pela classe dominante do regime ditatorial-fascista necessário para travar uma guerra total.
82. Em seu discurso final de quatro horas perante a Comissão Dewey em abril de 1937, Trotsky respondeu à calúnia stalinista de que ele abraçava a guerra como um meio de acelerar o estouro da revolução. Esta declaração é uma exposição concisa da relação entre a guerra e a revolução.
A guerra, de fato, muitas vezes acelerou a revolução. Mas precisamente por esse motivo, muitas vezes provocou resultados abortados. A guerra agudiza as contradições sociais e o descontentamento das massas. Mas isso é insuficiente para o triunfo da revolução proletária. Sem um partido revolucionário enraizado nas massas, a situação revolucionária leva às derrotas mais cruéis. A tarefa não é 'acelerar' a guerra - para este fim, infelizmente, os imperialistas de todos os países estão trabalhando, não sem sucesso. A tarefa é utilizar o tempo deixado pelos imperialistas para as massas trabalhadoras construírem um partido revolucionário e sindicatos revolucionários.
É do interesse vital da revolução proletária que a eclosão da guerra seja adiada ao máximo, que se ganhe o maior tempo possível para a preparação. Quanto mais firme, mais corajosa, mais revolucionária a conduta dos trabalhadores, mais os imperialistas hesitarão, mais certamente será possível adiar a guerra, maiores serão as chances de que a revolução ocorra antes da guerra e talvez torne a própria guerra impossível. ...
Guerra e revolução são os fenômenos mais graves e trágicos da história humana. Não se pode brincar com elas. Elas não toleram diletantismo. Precisamos compreender com não menos clareza a inter-relação dos fatores revolucionários objetivos, que não podem ser voluntariamente induzidos, e o fator subjetivo da revolução – a vanguarda consciente do proletariado, seu partido. É necessário colocar toda energia na preparação deste partido.
83. É nessa perspectiva que o partido deve basear seu trabalho. É a única perspectiva realista. Nosso trabalho parte da premissa fundamental e historicamente verificada de que a classe trabalhadora é a força revolucionária fundamental na sociedade, capaz – pelo papel objetivo que ocupa no processo de produção – de derrubar o sistema capitalista e criar uma alternativa, o socialismo, a esse sistema. Se a classe trabalhadora será capaz ou não de alcançar o nível de autoconsciência política e compreensão de suas tarefas históricas não é uma questão a ser passivamente especulada. O que pode ou não ser alcançado será determinado pela prática. Como Trotsky teria dito, a luta decidirá. Não há dúvida de que as revoluções sofreram derrotas. Mas foi demonstrado – acima de tudo na experiência de 1917 – que a classe trabalhadora, havendo a direção necessária, é capaz de derrubar a classe dominante.
84. Não perderemos tempo especulando se a classe trabalhadora vai lutar ou não, ou se a classe trabalhadora americana aceitará a solução socialista para a crise. Nossos esforços devem se concentrar em elevar o trabalho do partido ao mais alto nível possível. Mas se os céticos ainda exigem uma resposta mais categórica, respondo que temos exemplos suficientes de lutas sociais de massas nos Estados Unidos e internacionalmente para justificar a confiança no potencial da classe trabalhadora. O mundo está fervendo de raiva revolucionária. Um clima de rebelião varre o globo. As ruas de Paris foram repetidas vezes tomadas por centenas de milhares de manifestantes. O principal obstáculo ao desenvolvimento da revolução não é a falta de vontade dos trabalhadores de lutar, mas a sabotagem dos sindicatos e organizações políticas reacionárias, em muitos casos dominadas pela pseudoesquerda representante da classe média alta.
85. Além disso, a intervenção do partido nas eleições do UAW no ano passado forneceu uma abertura ao interior da consciência da classe trabalhadora. A candidatura do camarada Will Lehman, que expressou abertamente suas convicções socialistas e exigiu a abolição do aparato burocrático, conquistou o apoio de 5.000 trabalhadores da indústria automobilística. E milhares mais teriam votado nele se estivessem informados da eleição. Mas a burocracia, que reconhece e teme o crescimento do radicalismo político e a guinada ao socialismo, fez tudo o que era capaz para bloquear a participação dos trabalhadores nas eleições.
86. A campanha de Lehman é uma demonstração significativa da liderança exercida pelo SEP sobre o movimento de oposição combativa da classe trabalhadora aos aparatos burocráticos dos sindicatos reacionários. A Aliança Internacional Operária de Comitês de Base, iniciada pelo partido, está se desenvolvendo nos Estados Unidos e internacionalmente como um movimento genuíno de trabalhadores combativos em fábricas e locais de trabalho em todo o país.
87. Mas o crescimento do movimento de massas da classe trabalhadora impõe demandas cada vez maiores aos membros do partido. Enfrentar esses desafios requer maior atenção à educação dos membros do partido. O elemento mais importante dessa educação é elevar o conhecimento e a compreensão dos quadros sobre a história do movimento trotskista.
88. Para o movimento marxista, o conhecimento histórico sempre foi o fundamento da prática revolucionária. A assimilação da experiência histórica é a base para uma prática guiada pela teoria, que deve superar uma abordagem pragmática da política que geralmente toma a experiência individual e as impressões pessoais como ponto de partida da atuação política. Em um importante ensaio sobre as tendências filosóficas do burocratismo, Trotsky escreveu:
…[N]ão estariam certos os empiristas – eles que guiam-se pela prática 'direta' enquanto o mais alto tribunal da verdade? Não são eles, então, os materialistas mais consistentes? Não, eles representam uma caricatura do materialismo. Guiar-se pela teoria é se guiar por generalizações baseadas em toda a experiência prática anterior da humanidade a fim de responder com o máximo de sucesso a um ou outro problema do presente. Assim, por meio da teoria, descobrimos precisamente a primazia da prática-em-sua-totalidade sobre aspectos particulares da prática.
89. As generalizações que são utilizadas pelo partido revolucionário para orientar sua resposta aos problemas colocados pela crise atual e pelo desenvolvimento da luta de classes derivam da assimilação de um vasto corpo de experiência histórica. Buscando explicar a degeneração do Partido Bolchevique, Trotsky, que certa vez foi descrito como um homem da história, se baseou até mesmo nos eventos da Revolução Francesa, empregando o termo Termidor – o período de reação política que começou em julho de 1794 com a execução de Robespierre – para explicar os processos em andamento no interior do partido no poder do Estado operário soviético.
Lenin, nos meses que imediatamente precederam a Revolução de Outubro, dedicou-se a um estudo renovado dos escritos de Marx e Engels sobre a experiência da Comuna de Paris de 1871. Desse estudo surgiu não apenas a brilhante contribuição de Lenin para a ciência marxista, O Estado e a Revolução, mas também a conquista do poder político pelo Partido Bolchevique.
90. Os marxistas não são meros 'ratos de biblioteca'. Trotsky uma vez fez um comentário sarcástico sobre o acadêmico que lê e pondera sobre o estado da humanidade enquanto explora sua narina com o dedo. Os militantes do partido, engajados no trabalho diário, não têm o luxo de tempo ilimitado para dedicar à leitura. Mas o tempo disponível deve ser usado, em primeiro lugar, para assimilar completamente a história do partido que estão lutando para construir, para aprender as lições das experiências históricas essenciais pelas quais o partido passou nos anos e décadas anteriores.
91. Evidentemente, a educação política da geração mais jovem contém problemas específicos. Primeiro, o ambiente político geral, sob a influência da Escola de Frankfurt e do pós-modernismo, é hostil ao estudo da história. Os pós-modernistas proclamaram a necessidade de abandonar o conceito de verdade objetiva e o estudo das chamadas “Grandes Narrativas”, que eles identificavam, em geral, com a concepção materialista da história e, mais especificamente, obras como o Manifesto Comunista, O Capital e, é claro, a História da Revolução Russa e A Revolução Traída de Trotsky. Sendo direto, vivemos uma era de mentiras, que recebem a sanção dos acadêmicos. Como a guerra na Ucrânia revelou, e a carreira de picaretas como Timothy Snyder serve de exmplo, a distinção entre escrita da história e fabricação de propaganda é ignorada por parte substancial da comunidade acadêmica.
92. Esse ambiente reacionário contribuiu para um declínio geral no nível de conhecimento histórico. Muitos militantes começam sua educação em história ao ingressar no Comitê Internacional da Quarta Internacional.
93. Mas, uma vez que ingressam em uma seção do Comitê Internacional, como os novos membros podem assimilar a vasta experiência do movimento trotskista? Quando os membros da minha geração aderiram à Workers League, pouco mais de meio século nos separava da Revolução de Outubro. A fundação da Oposição de Esquerda em 1923 estava apenas 47 anos distante do mundo de 1970 – ou seja, o mesmo tempo que nos separa hoje de 1976! Nossa educação se concentrava no estudo das origens do movimento trotskista, na fundação da Quarta Internacional, na luta faccional histórica de 1939-40 contra a minoria pequeno-burguesa de Shachtman, Burnham e Abern, no desenvolvimento do revisionismo pablista que levou à publicação da Carta Aberta e à ruptura de 1953, e na luta subsequente liderada pelos trotskistas britânicos contra a reunificação. Claro que havia muitas lacunas em nosso conhecimento. Mas aquilo que nós estudamos – os escritos disponíveis de Trotsky e os principais documentos do Comitê Internacional da Quarta Internacional – nos permitiu conduzir uma luta em defesa da herança teórica e programática do trotskismo contra a traição do Workers Revolutionary Party.
94. Extraíamos e assimilávamos tudo o que éramos capazes da experiência do movimento marxista revolucionário. Lembro de um episódio. No final de outubro de 1985, observamos que muitos membros do WRP haviam sido cooptados para o movimento sem qualquer conhecimento da história do Comitê Internacional ou mesmo sem nenhuma consciência de que faziam parte de um movimento internacional e que não podiam atuar como quadros trotskistas. Não fazíamos ideia de quais eram suas reais simpatias políticas. E assim o Comitê Internacional propôs – em uma reunião que acredito ter sido em 25 de outubro de 1985 – que todos que desejassem ser membros do WRP deveriam se reafiliar ao partido com base em uma declaração explícita de que aceitavam a autoridade política do Comitê Internacional. Banda e Slaughter sentiram-se compelidos a aceitar essa proposta, que, diga-se de passagem, eles repudiaram mais tarde. Banda veio até mim depois da reunião e perguntou: 'De onde você tirou isso?' E eu disse: 'Mike, essa era uma das condições básicas para afiliação na Internacional Comunista'. A base para admissão na Internacional Comunista era a aceitação dos seus 21 pontos. Foi através disso que eles buscaram combater o reformismo e o centrismo da Segunda Internacional. Banda ficou surpreso. A essa altura de sua degeneração política, ele provavelmente já tinha esquecido todas as lições da Internacional Comunista.
95. Para nós, as experiências do movimento marxista revolucionário eram a substância, o fundamento de nossa prática. Havia muito o que se aprender quando nos juntamos ao movimento na década de 1970. Mas estávamos intensamente dedicados a essa vasta experiência. Recentemente me deparei com um documento elaborado pelo comitê central da Workers League em novembro de 1979 para homenagear o centenário do nascimento de Leon Trotsky. Esse documento afirmava, em certo ponto, o seguinte:
A União Soviética era um regime de transição, onde o capitalismo fora derrubado mas o socialismo ainda não fora construído, e onde a burocracia minava a luta pelo socialismo diariamente. O Estado operário degenerado enfrentava como alternativas o avanço para o socialismo através da derrubada da burocracia e da extensão da revolução, ou a restauração do capitalismo através da contrarrevolução apoiada pelo stalinismo. Trotsky previu e defendeu que a revolução política devia esmagar o stalinismo, defender a economia planejada e colocar a União Soviética de volta no caminho do socialismo. Dessa perspectiva fundamental, nada – nem mesmo uma vírgula – está sujeito a revisão.
Era assim que nos sentíamos em relação à história do movimento trotskista e seu programa. Nada estava sujeito a revisão, nem mesmo uma vírgula. Era possível desenvolver o programa do movimento trotskista. Era possível expandi-lo. Mas não aceitaríamos qualquer tentativa de mudar, alterar e destruí-lo. E esse espírito, que expressava, eu penso, o sentimento e o espírito da Workers League na década de 1970, não foi um fator pequeno na determinação que a luta contra os renegados do WRP obteve na década de 1980.
96. Quase quatro décadas se passaram desde o rompimento com o WRP. As origens e o desenvolvimento dessa luta se tornaram um elemento crucial da experiência histórica que deve ser estudado e assimilado pelos quadros do Comitê Internacional. Sim, camaradas, camaradas mais jovens, acrescentamos muita coisa ao programa de estudos que deve formar a base de sua lista de leitura. O que pode ajudá-los é o fato de que os conflitos do período de 1982 até hoje fazem referência contínua à experiência histórica antecedente do movimento trotskista. Ao ler esses documentos, você estará ao mesmo tempo estudando e assimilando a experiência de toda a história do trotskismo. Por essa razão, o estudo da história do Comitê Internacional é a base essencial da educação dos quadros do Partido Mundial da Revolução Socialista, e estamos convencidos de que o trabalho que realizaremos esta semana desempenhará um papel importante no avanço do nível teórico de cada membro de nosso partido, nos Estados Unidos e internacionalmente.