Um surto de dengue atinge o Brasil e vários países da América Latina e deve fazer de 2024 o ano com maior número de casos e mortes na história da região. Fenômenos climáticos acentuados, condições socioeconômicas precárias e o abandono das medidas preventivas e do combate ao mosquito transmissor, o Aedes aegypti, têm contribuído para que ele se espalhe para áreas até então livres do vírus, tornando a dengue cada vez mais uma questão urgente de saúde pública na região e no mundo.
O último relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) sobre a situação epidemiológica das Américas informa que foram notificados casos de dengue em 18 países da região, sendo os mais afetados Brasil, Argentina, Paraguai, Peru e Colômbia. Segundo o relatório, a incidência da dengue aumentou 249% em relação ao ano passado, e 354% em relação à média dos últimos 5 anos. Esses dados, no entanto, dão conta apenas das oito primeiras semanas epidemiológicas, e a situação se agravou nas semanas seguintes.
Até meados de março deste ano, o número de casos de dengue no Paraguai correspondia a 23 vezes o registrado no mesmo período do ano passado, passando de 6,9 mil casos para 160,9 mil. Nessa mesma comparação, a Argentina teve um salto de 8,3 mil para 102,8 mil casos, e o Peru de 16,9 mil para 46, 5 mil. Nesses países, já foram registradas este ano 43, 69 e 53 mortes, respectivamente.
Já o Brasil, principal foco de infecções, acumula sozinho mais de 2 milhões de casos prováveis, e o Ministério da Saúde calcula que passe de 4,2 milhões até o fim do ano, quase o triplo do ano passado. Até o dia 23 de março, já tinham sido confirmadas 715 mortes e há outras 1.078 em investigação.
No último dia 13, a ministra da Saúde do governo Lula, Nísia Trindade, minimizou a gravidade da epidemia de dengue no país, escrevendo em uma rede social que “A taxa de letalidade, em 0,3% dos casos, ainda é menos da metade do ano passado (0,7%)”. E completou: “temos cuidado melhor dos casos”.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o epidemiologista Wanderson de Oliveira explicou que diversos fatores influenciam essa taxa de letalidade aparentemente menor. Casos leves que podem não ser notificados, dificuldade de acesso ao tratamento e qualidade do sistema de saúde podem levar a uma falsa impressão de que a doença é menos grave do que realmente é.”
Ele continuou: “No momento atual, a prioridade deveria ser a implementação de uma força-tarefa para investigar os óbitos e compreender se as causas dessas mortes foram devido às características das pessoas ou à qualidade dos serviços prestados. Essa postagem [de Trindade] foi muito infeliz, pois é fria e passa a impressão de que se trata de números. Para quem perdeu um ente querido, a letalidade é de 100%”.
Os dados que a ministra utilizou para a comparação ainda estão em análise. Se a letalidade de 2024 fosse calculada incluindo as mortes em apuração, a taxa seria maior que a de 2023.
A tentativa da ministra de minimizar um surto de dengue sem precedentes no país expõe não só a “frieza” do governo em relação às vítimas fatais, mas também em relação às consequências de uma incidência tão alta na população e ao sofrimento provocado pela doença, que já foi popularmente chamada de “febre quebra-ossos”, devido aos sintomas mais conhecidos: fortes dores de cabeça, nas costas, nos músculos das pernas e nas articulações.
Quando evolui para um quadro grave, a dengue apresenta risco de lesões no fígado e hemorragias. Outra consequência ainda pouco conhecida e, claro, nunca mencionada pelos governantes, são os efeitos neurológicos, que podem se manifestar inclusive em pacientes assintomáticos e aparecer muito tempo depois da infecção.
Em entrevista ao podcast O Assunto, a neurologista e cientista Marzia Puccioni informou que entre 1% e 20% dos pacientes da dengue podem desenvolver encefalite, mielite, meningite e até síndrome de Guillain-Barré, um distúrbio autoimune que ataca parte do sistema nervoso.
Se considerarmos a estimativa de 4,2 milhões de casos até o fim do ano, então 840 mil brasileiros podem desenvolver algum problema neurológico pelo vírus da dengue. E não há qualquer planejamento da Saúde para cuidar desses futuros pacientes, muito pelo contrário.
O abandono da política de erradicação
A situação descontrolada que está levando milhares de pessoas à morte não foi inevitável. Há décadas, sabe-se que a prevenção e o controle da dengue dependem de medidas efetivas de controle de vetores.
Nas Américas, o principal vetor é o Aedes aegypti, um mosquito que vive dentro e perto das casas e que se reproduz em qualquer recipiente artificial ou natural que contenha água parada. A combinação entre altas temperaturas e chuvas favorece o aumento da população de Aedes aegypti. Com base nisso, os representantes da classe dominante – incluindo a própria OMS – têm atribuído a escalada inédita da doença ao fenômeno do El Niño e ao aquecimento global.
Mas nada disso aconteceu do dia para a noite. Os fenômenos climáticos e as condições precárias em que vive a maior parte da população da região, e que favorecem a proliferação do mosquito, são tão conhecidos e previstos quanto ignorados pela classe capitalista. A verdade é que a classe dominante – semelhante ao que vimos com o vírus da COVID-19 – há anos abandonou qualquer tentativa de erradicação do vírus da dengue.
O próprio Brasil já foi um exemplo histórico de erradicação, um princípio fundamental e de longa-data utilizado pela ciência médica para combater inúmeras doenças infecciosas.
Uma campanha no início do século XX contra a febre amarela, que também é transmitida pelo Aedes aegypti, permitiu que sucessivos governos brasileiros controlassem a proliferação do mosquito através de uma ação massiva de agentes sanitários. Em 1954, quando houve uma retomada do programa de erradicação do vetor, o Relatório do Serviço Nacional de Febre-Amarela se referiu a esse trabalho como “a mais útil e revolucionária das técnicas já introduzidas em campanhas antiaegypti (...)”.
Em 1955, o mosquito estava erradicado no país. Essa política foi acompanhada de um esforço da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) para eliminá-lo de outros países americanos, mas a campanha não chegou ao fim.
A reintrodução do Aedes egypti no Brasil e outros países da região – dessa vez trazendo a dengue e outras arboviroses – coincidiu com as ditaduras militares apoiadas pelos EUA na América do Sul, que representaram um enorme ataque ao padrão de vida da classe trabalhadora e aos serviços de saúde pública na região.
Hoje, segundo a OMS, a Região das Américas responde a 80% dos casos e tem registrado aumento de casos nas últimas quatro décadas, passando de 1,5 milhão na década de 1980 para 16,2 milhões na década de 2010-2019. O ano de 2023 bateu o recorde histórico com um total de 4.565.911 casos, incluindo 7.653 (0,17%) casos graves e 2.340 óbitos (taxa de letalidade de 0,051%). Em 2024, o cenário já se desenha muito mais mortal.
O Brasil, que algumas décadas atrás foi capaz de erradicar o vetor, hoje registra casos da doença em todas as suas 27 unidades federativas, fazendo do seu território de oito milhões de quilômetros quadrados um extenso criadouro do Aedes aegypti no planeta.
O sistema capitalista como entrave à garantia da saúde universal
Alguns avanços importantes foram desenvolvidos na última década para o combate à dengue. Por exemplo, o método Wolbachia, que consiste em introduzir no ambiente mosquitos carregando a bactéria Wolbachia, e a recém-criada vacina QDenga. Mas ambas ainda estão em fase inicial de aplicação, com pouca capacidade de produção. Além disso, surtem efeito apenas no longo prazo, exigindo uma combinação com as ações de controle do vetor como foram realizadas há mais de 70 anos no Brasil.
Porém, depois de todo esse tempo, em vez de aumentar esse tipo de ação, o que se observa é uma redução ao longo dos últimos anos. No ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou um teto de gastos que permitia a redução de quase R$ 20 bilhões dos recursos para a saúde.
Segundo o jornal Metrópoles, o Distrito Federal, unidade federativa com maior incidência hoje, deixou de investir R$ 241 milhões na prevenção de arboviroses ao longo dos últimos 10 anos, perdendo 36,7% da força de trabalho responsável pelo combate aos focos do mosquito. Um levantamento do Tribunal de Contas da União, divulgado pelo programa Profissão Repórter, da TV Globo, revelou que a proporção de agentes de saúde é de apenas 1 para cada 2 mil habitantes, enquanto o recomendado pelo Ministério da Saúde é de 6 agentes para cada 2 mil habitantes.
Na cidade de São Paulo, trabalhadores que atuam no combate à dengue acabaram de entrar em greve, aderindo ao movimento unificado dos servidores municipais iniciado no dia 12 de março. Segundo o Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo), 70% das 28 Unidades de Vigilância em Saúde da capital aderiram. No dia 19 de março, cerca de 20 mil servidores de São Paulo participaram de uma assembleia que aprovou a continuidade da greve, cuja principal reivindicação é o aumento salarial. Os agentes de saúde também reivindicam a contratação de pelo menos o dobro de funcionários.
A greve dos servidores municipais de São Paulo deve ser defendida como parte de uma tendência internacional que se opõe à política de morte da classe capitalista. A classe trabalhadora é a única capaz de defender o princípio da saúde universal, há anos abandonado pela classe dominante.
Em sua Declaração de Ano Novo, o Conselho Editorial do World Socialist Web Site, afirmou:
A única maneira de acabar com a pandemia é por meio de uma estratégia de eliminação coordenada em nível mundial, na qual toda a população mundial atue de forma solidária e com determinação coletiva para aplicar um amplo programa de saúde pública.
O mesmo pode ser dito em relação à dengue e a inúmeras outras doenças negligenciadas pelos governos capitalistas de todo o mundo. “A subordinação dos gastos com saúde pública aos insaciáveis interesses de lucro de uma oligarquia financeira louca por dinheiro”, como a declaração afirmou, deve ser contraposta por “uma revolução socialista mundial [para] acabar com a pandemia”, assegurar a saúde pública e impedir a descida à barbárie capitalista e à Terceira Guerra Mundial.