Publicado originalmente em 27 de março de 2020
A atual calamidade de saúde e econômica global não tem precedentes.
Qualquer que seja o resultado a curto prazo, a vida e a consciência sociais não voltarão a ser como antes. Um Rubicão foi cruzado. A ordem existente, aos olhos de dezenas de milhões de pessoas, será vista de agora em diante como ilegítima e uma ameaça imediata à sua existência futura.
Existem muitos problemas políticos e muita confusão para serem resolvidos, mas a consciência de amplas camadas da população está girando rapidamente à esquerda.
No entanto, o que preocupou os círculos “radicais”, acadêmicos e até artísticos oficiais, nos meses e anos que antecederam a crise atual, foram as políticas cada vez mais desequilibradas e egoístas de raça, gênero e sexualidade. Inúmeros artigos, livros e declarações de todo o tipo informaram o público que a “questão definidora de nosso tempo” era, por exemplo, o “privilégio branco”, reparações por causa da escravidão, a campanha do movimento #MeToo ou o assédio sexual – ou, ainda, a ameaçadora “interferência russa” no grande projeto democrático dos EUA.
As questões mais urgentes, alguém pode dizer que quase as únicas questões urgentes, nos últimos meses para tais círculos giraram em torno das difamações da Revolução Americana como uma “revolta dos senhores de escravos” e de Abraham Lincoln como um “racista”, de colocar na lista negra Roman Polanski, Woody Allen e Plácido Domingo (agora doente por causa do coronavírus) e garantir que o produtor de cinema Harvey Weinstein passe o resto de sua vida na cadeia.
Sem homens brancos “privilegiados”, assediadores sexuais e agentes de Putin, foi nos dado a entender que os EUA poderiam facilmente ser confundidos com outro Jardim do Éden.
A pseudoesquerda internacional se juntou entusiasticamente a essa podre cruzada “moral”. Um artigo publicado no site International Viewpoint por Manon Boltansky, representante do Novo Partido Anticapitalista (NPA) na França, se solidarizou total e acriticamente com a tentativa de suprimir o último filme de Polanski, ‘J’accuse’ (‘O oficial e espião’), que trata do caso Dreyfus, um dos momentos marcantes da história moderna da França. Soando como uma alta autoridade de estado ou algum legislador provinciano de direita, Boltansky denunciou indignada “a impunidade com que Polanski foi capaz de financiar, dirigir e distribuir seu último filme, ‘J’accuse’”. Com considerável sofisma, ela argumentou que a tentativa de impedir ou interromper as exibições do trabalho de Polanski, com o incentivo e o apoio do governo francês, “não é um ataque à liberdade de expressão”. Na verdade, essas pessoas aceitam qualquer coisa, incluindo medidas abertamente autoritárias, desde que envoltas na bandeira de oposição à suposta “cultura do estupro”.
As novas condições criadas pela pandemia expõem essas visões e as forças que as defendiam – e ainda as defendem – de maneira clara.
Que possível relevância têm as preocupações triviais desses elementos sociais para a atual ampla crise de vida ou morte que afeta todas as seções da população, homens e mulheres, brancos, negros, latinos e imigrantes? Agora, milhões de pessoas devem determinar se é “preferível” ficar em casa e correr o risco de não ter dinheiro para pagar o aluguel e comprar comida para suas famílias ou voltar ao trabalho e enfrentar a possibilidade de contrair ou espalhar uma doença mortal.
Nenhum dos defensores pequeno-burgueses da caça às bruxas do assédio sexual, da falsificação histórica do Projeto 1619 do New York Times e do absurdo sobre a intervenção russa em 2016 e em todas as outras eleições, todos eles geralmente obcecados e com pena de si mesmos, estavam ao menos um pouco preparados para a atual crise.
Esse processo também não começou em 2017 ou 2012. Durante décadas, de fato, os humores cada vez mais egoístas e complacentes floresceram nos altos escalões da mídia, da indústria do entretenimento e do universo acadêmico.
Essas novas camadas prósperas passaram a acreditar sinceramente no sistema e se comprometer com ele. Elas baseiam sua riqueza no valor crescente das ações no mercado financeiro e nos super-ricos que distribuem um pouco do que ganham a seus empregados, tudo isso enraizado na crescente exploração e empobrecimento da classe trabalhadora,
Hipnotizados por dinheiro e status, emocionados por estar do lado aparentemente vencedor da história, os vários especialistas míopes, artistas de terceira e quarta categoria e professores bem pagos e corrompidos há muito tempo, em muitos casos, “penduraram seus cérebros com seus chapéus no armário” (nas palavras de Bertolt Brecht) e ingressaram na orgia financeira.
Por interesse próprio, que reduziu consideravelmente sua perspectiva, e em seu estado de ilusão, nenhum deles poderia imaginar remotamente um cataclismo das dimensões da crise do coronavírus se desenvolvendo em um sistema que consideravam livre de contradições agudas e, por todas as intenções e propósitos, eterno.
Não se trata, é claro, de prever uma pandemia, mas os marxistas estão sempre cientes dos desastres, o que Rosa Luxemburgo chamou de “cadeia interminável de catástrofes e convulsões políticas e sociais” nas quais o imperialismo inevitavelmente mergulha a população, elevado a um nível universal pelo desenvolvimento de uma economia globalmente integrada.
Esforçando-se para alertar a classe trabalhadora e prepará-la para grandes choques e desafios, os marxistas são regularmente acusados por oportunistas e renegados de vários tipos de “catastrofistas” e “alarmistas”.
Luxemburgo uma vez explicou que o ponto de partida da teoria socialista para a transição para o socialismo foi sempre “uma crise geral e catastrófica”. O princípio central dessa perspectiva, escreveu ela, consistia “na afirmação de que o capitalismo, como resultado de suas próprias contradições internas, se move em direção a um ponto em que entrará em desequilíbrio, quando simplesmente se tornará impossível. Havia boas razões para conceber essa conjuntura na forma de uma crise comercial geral catastrófica. Mas isso é de importância secundária quando a ideia fundamental é considerada.”
Em questão de semanas, o capitalismo entrou em “desequilíbrio” e tornou-se “impossível” para as massas da humanidade.
Nesta nova situação, quem pode falar com a menor credibilidade de “privilégio branco” ou “privilégio masculino”? Embora a idade e a complicação das condições de saúde sejam fatores significativos para o desenvolvimento da doença, não há indicação de que o coronavírus castigue uma raça ou etnia em detrimento de outra. Homens e mulheres chineses, franceses e espanhóis, juntamente com italianos, iranianos, estadunidenses, alemães, coreanos e suecos, todos foram afetados. É quase inimaginável o que o vírus poderia fazer se invadisse cidades superpopulosas e com precárias condições de saúde na Índia, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Senegal, Quênia, México e muitos outros países.
Se a doença mata, como parece, mais homens do que mulheres, isso dificilmente é um argumento a favor do “privilégio feminino”. Sem dúvida, como sempre acontece na sociedade de classes, os pobres, os mais explorados e os oprimidos de todas as etnias e gêneros passarão pelo pior.
Obviamente, as vozes que promovem as políticas de raça e gênero não foram silenciadas.
Um artigo de 24 de março do USA Today, “As demissões pelo coronavírus atingem desproporcionalmente trabalhadores negros e latinos: ‘É quase como o dia do juízo final’”, tem o objetivo de criar divisões na classe trabalhadora e incentivar o egoísmo comunitário. O artigo destaca o caso de uma mãe solteira negra demitida de uma pequena gráfica em Maryland e diz que ela “está entre milhares de funcionários de pequenas empresas, restaurantes, hotéis, bares e empresas de manufatura que perderam o emprego nos últimos dias por causa da pandemia. Grupos de direitos civis temem que esses trabalhadores, muitos dos quais são negros, sejam lançados a uma situação cada vez mais difícil, lutando para pagar as contas e alimentar suas famílias.”
E o resto da população? Todos eles deveriam ir para o inferno? O USA Today cita o comentário de um representante do grupo de direitos civis National Urban League, que diz: “Sabemos que quando a economia entra em declínio, o peso maior sempre cai sobre as pessoas negras”. Todas as seções da classe trabalhadora sofrerão com a crise, e todas elas serão impulsionadas à luta.
Nos últimos anos, de fato, a parcela da população que sofreu o maior declínio considerando vários fatores foi a classe trabalhadora branca. Um estudo recente do Journal of the American Medical Association (JAMA), que detalha a queda sem precedentes na expectativa de vida nos Estados Unidos de 2015 a 2017, descobriu que o aumento da mortalidade impactou os trabalhadores em todos os grupos raciais e étnicos, com o maior número de mortes em excesso ocorrendo entre trabalhadores brancos. O número de mortes por overdose de opioides e suicídio entre homens brancos é particularmente alarmante.
Uma coluna estúpida e retrógrada de Solomon Jones no jornal Philadelphia Inquirer afirmava no título: “A pressa de fechar negócios em meio ao coronavírus cheira a privilégio branco”. Falando para empreendedores afro-americanos bem-sucedidos e aspirantes, Jones argumenta que “todo negócio de propriedade de uma pessoa negra é essencial”. Ainda segundo ele, “Enquanto os empresários e trabalhadores brancos também sofrerão perdas econômicas, a ação de nossos líderes como se todo mundo pudesse simplesmente resistir à tempestade e sair ileso reflete a suposição muito branca de uma rede de segurança – algo que as comunidades negras não têm”.
Para não ficar atrás, Helen Lewis, da revista Atlantic, informa a seus leitores que “O coronavírus é um desastre para o feminismo” e que “a independência das mulheres será uma vítima silenciosa da pandemia”. Cerca de 25.000 pessoas estão mortas e mais de meio milhão infectadas, mas Lewis parece preocupada principalmente que seu estilo de vida de classe média possa ser afetado negativamente. Rejeitando uma “abordagem de gênero neutro” para tais desastres e aceitando totalmente a incapacidade da sociedade de impedir a morte de um grande número de pessoas, Lewis continua: “Por mais severa que possam ser, novas epidemias são inevitáveis e a tentação de argumentar que o gênero é uma questão paralela, uma distração da crise real, deve ser combatida”.
Madeleine Simon, em seu “Mulheres e o fardo oculto do coronavírus”, publicado no site The Hill, afirma que “as mulheres carregam sobre os ombros o impacto da pandemia de COVID-19”. Simon escreve que as evidências sugerem que “mais homens do que mulheres estão morrendo do coronavírus, mas a COVID-19 também está tendo efeitos específicos nas mulheres”. Depois de apontar para o peso de cuidar das crianças, com cerca de 850 milhões delas fora da escola em todo o mundo, e de oferecer assistência médica, que sem dúvida caem desproporcionalmente na população feminina, a jornalista não conseguiu deixar de entregar o jogo.
As mulheres, ela escreve, “também são amplamente deixadas de fora das conversas sobre saúde global” e “sub-representadas nas esferas de tomada de decisão. … Seema Verma e Deborah Brix têm papéis proeminentes na Força-Tarefa de combate ao coronavírus dos EUA, mas apenas 10% dos representantes no grupo são mulheres”. As belas palavras sobre as mulheres trabalhadoras oprimidas pelas responsabilidades domésticas e tantas outras dão lugar às preocupações reais, com mais representação, um salário maior e mais poder para as profissionais já abastadas.
A reação de certos grupos pode ser mais egocêntrica do que nunca, mas essa não será a única reação.
A crise do coronavírus desencadeará outras forças, incluindo intelectuais e artísticas.
A doença está tendo um impacto físico no mundo artístico, como ocorre em outros campos. As tristes mortes do dramaturgo Terrence McNally, do ator Mark Blum, dos músicos Manu Dibango, Mike Longo, Freddy Rodriguez Sr. e Marcelo Peralta e o fato de muitos artistas e músicos terem contraído o vírus, como o próprio Plácido Domingo, Jackson Browne, Idris Elba, Rita Wilson e Tom Hanks, David Bryan, Ed O’Brien, Debi Mazar, Rachel Matthews, Olga Kurylenko, Kristofer Hivju, Daniel Dae Kim e tantos outros, indicam seu amplo alcance e poder potencialmente fatal.
O efeito econômico do atual confinamento também será devastador para muitos artistas, a grande maioria dos quais leva uma vida precária em seus melhores momentos – mas o resultado mais duradouro será ideológico e intelectual, e não monetário.
O contínuo e irreversível descrédito do capitalismo influenciará profundamente o desenvolvimento do cinema, da música, da pintura, da literatura e do teatro contemporâneos. Mais uma vez, a busca nua pelo lucro a qualquer custo provocará repulsa e horror entre os artistas, e sua barbárie subjacente será exposta a todos aqueles que têm olhos para ver.
Parece seguro prever que a atenção dos melhores artistas se concentrará na direção de examinar mais criticamente as contradições sociais e econômicas do sistema em que vivem, e que agora coloca em risco eles e todos os demais. Os artistas, junto com o resto da população, vão querer saber: Como isso foi possível? Quem é responsável? O que pode ser feito?
O resultado dessa crise deve ser um interesse renovado no realismo como uma abordagem estética, um compromisso mais sério e engajado com a vida e, em particular, com a vida e o destino de massas de pessoas, tudo isso ligado a uma oposição política cada vez mais aberta ao status quo.
Existe uma vasta pressão reprimida na sociedade, incluindo a pressão criativa reprimida. Muitos ficaram confusos, isolados, incapazes de encontrar sua voz ou seus pés, ou não foram permitidos – ou não tiveram confiança – que eles próprios e seus pensamentos e sentimentos mais profundos fossem conhecidos. Tudo não vai mudar da noite para o dia, mas a destruição dos preconceitos existentes, incluindo o anticomunismo e as ilusões no Partido Democrata, ocorrerá mesmo assim. Artistas e outros encontrarão o caminho, orientando-se para a reconstrução completa e radical da sociedade.