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Pandemia gera onda de greves de rodoviários pelo Brasil

Respondendo a cortes brutais nos empregos e salários assim como às condições iminentemente inseguras nos locais de trabalho, uma onda de greves de motoristas e cobradores de ônibus atingiu os sistemas de transporte público de todo o Brasil ao longo do último ano.

Um relatório publicado na semana passada pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) deixou isso claro. Entre março de 2020 e abril de 2021, os trabalhadores realizaram 238 movimentos de greve, protestos e manifestações que interromperam a circulação de 88 sistemas de transporte pelo país. E uma vez que essas lutas continuaram em ritmo febril ao longo das últimas semanas, esse número certamente já é consideravelmente maior.

O intenso movimento grevista dos trabalhadores rodoviários no Brasil é parte de um processo internacional de ressurgimento da luta de classes que foi acelerado pela resposta catastrófica dos governos capitalistas à pandemia de COVID-19.

A pandemia teve um tremendo impacto sobre os sistemas de transporte. No Brasil, apesar de considerado um serviço público, o transporte por ônibus é administrado por empresas privadas orientadas ao lucro. Elas tiveram prejuízos substanciais que tentaram, tanto quanto possível, redirecionar para as costas das centenas de milhares de trabalhadores que empregam.

O relatório da NTU afirma que, desde o início da pandemia, cerca de 77 mil postos de trabalho foram cortados no setor. Os trabalhadores que conseguiram manter seus empregos sofreram fortes reduções salariais, implementadas oficialmente através da Lei nº 14.020/2020 aprovada no ano passado pelo governo Bolsonaro, e por atrasos nos pagamentos que se generalizaram pelas empresas.

Os ataques aos rodoviários durante a pandemia representaram a escalada de um processo avança ao longo de anos. As empresas de ônibus vêm há anos declarando que suas operações não são suficientemente lucrativas e, em resposta, aumentaram os preços das passagens, demitiram trabalhadores e buscaram extinguir a profissão de cobrador, intensificando a carga de trabalho sobre os motoristas.

A imensa revolta acumulada entre os trabalhadores contra as condições de existência cada vez mais intoleráveis sob o capitalismo veio à tona com a explosão das greves nos últimos 14 meses. Além de paralisar os sistemas de transporte, os trabalhadores rodoviários desdobraram suas lutas em protestos que tomaras as ruas de capitais de todo o Brasil.

Em Teresina, Piauí, motoristas e cobradores iniciaram uma greve em maio de 2020 contra a demissão de 400 colegas de trabalho e cortes nos salários e benefícios. Eles realizaram manifestações quase diariamente nas ruas e em frente ao Palácio da Cidade, erguendo cartazes feitos à mão com dizeres como: "Já não tenho o que comer hoje, imagine amanhã" e "Vidas dos rodoviários importam".

Apesar do sindicato ter encerrado a greve depois de 50 dias, os problemas enfrentados pelos trabalhadores não foram solucionados. Na última segunda-feira, rodoviários de três empresas de ônibus de Teresina realizaram sua sétima paralisação do trabalho desde o início de 2021, reivindicando salários não pagos.

Em Vitória, Espírito Santo, uma série de greves combativas estourou em diferentes empresas de ônibus da cidade ao longo de 2020. Os rodoviários realizaram várias manifestações e utilizaram os ônibus para bloquear o trânsito nas principais avenidas da cidade. Apesar de suas reivindicações serem essencialmente as mesmas, a unificação das lutas dos trabalhadores foi minada pelos sindicatos que negociaram o encerramento das greves com cada empresa.

Numa das greves mais longas e combativas em Vitória, na viação Tabuazeiro, os trabalhadores continuaram seu movimento desafiando as determinações da justiça e do sindicato. "Estamos agora na porta da empresa conversando com os trabalhadores para que cumpram a liminar [de impedimento da greve], mas eles não atendem ao pedido do sindicato”, declarou o presidente do sindicato dos motoristas.

As greves assumiram, crescentemente, um caráter político. No dia da votação do segundo turno das eleições municipais brasileiras, cerca de 2.500 rodoviários deflagraram uma greve no Rio de Janeiro exigindo o pagamento de seus salários atrasados. O protesto dos trabalhadores conectou-se ao repúdio generalizado ao sistema político capitalista nas urnas, que atingiu níveis recordes nas últimas eleições. No Rio, quase 50 por cento dos eleitores se recusaram a escolher entre dois candidatos odiados.

Esse processo de radicalização política da classe trabalhadora manifestou-se com especial clareza num episódio ocorrido em Maceió. Em setembro do ano passado, um grupo de rodoviários demitidos da empresa de ônibus Veleiro bloqueou uma das principais avenidas da cidade, reivindicando o pagamento de seus salários sete meses depois de terem sido mandados embora.

Um trabalhador entrevistado durante a manifestação por uma emissora de TV local declarou: "Isso vai acontecer com todos os trabalhadores, com a classe de trabalhadores. Isso é um absurdo, somos pais de família. Isso está acontecendo com o sistema, é o sistema que está permitindo tudo isso. Não é a Veleiro, se fosse só a Veleiro já tinha resolvido. O sistema não está resolvendo”.

O protesto foi respondido com uma repressão brutal pelo governo de Renan Filho do MDB. O Batalhão de Operações Especiais da polícia militar foi mobilizado para montar um cenário de guerra nas ruas de Maceió, atacando os trabalhadores com balas de borracha e bombas de gás enquanto entoava canções de batalha.

Uma declaração oficial da Veleiro, em repúdio ao protesto dos trabalhadores, demonstrou como a classe dominante percebe apavorada as implicações revolucionárias dessas lutas crescentes. A empresa afirmou: "Se todos os problemas tiverem que ser resolvidos desta forma, a sociedade viverá em anarquia".

Além das demandas econômicas, as lutas dos rodoviários foram impulsionadas pelas condições altamente inseguras nos transportes que provocaram índices explosivos de contaminações e mortes de motoristas e cobradores.

Rodoviários lideraram o ranking de contratos de trabalho encerrados por morte ao longo do último ano nacionalmente. Na cidade de São Paulo, a taxa de letalidade por COVID-19 entre motoristas e cobradores de ônibus é três vezes maior do que no restante da população. Até abril, de acordo com o sindicato, 131 rodoviários tinham morrido pela doença na cidade.

O estouro da segunda onda da COVID-19 no Brasil no início de 2021 alimentou a revolta massiva dos trabalhadores contra as condições mortais em seus locais de trabalho. Nos primeiros cinco meses deste ano, contaminações e mortes cresceram vertiginosamente, saltando de 195 mil mortes em 1º de janeiro a mais de 470 mil hoje.

Em 16 de abril, rodoviários de Salvador fecharam terminais de ônibus e bloquearam avenidas centrais da cidade com os carros após a notícia da morte de dois colegas de trabalho por COVID-19. Na mesma época, rodoviários de Vitória fizeram uma greve de um dia em protesto contra a retomada do transporte público, que fora encerrado por duas semanas para conter a disseminação do coronavírus. Outros protestos similares ocorreram em diferentes regiões do país.

Enquanto os rodoviários realizavam greves, outros setores da classe trabalhadora brasileira respondia de forma combativa aos riscos de contaminação no trabalho. Greves e protestos contra as condição mortíferas também irromperam nos sistemas de transporte ferroviário e metroviário, entre professores contra a reabertura insegura de escolas, e petroleiros por surtos de casos em refinarias e plataformas.

Isso evidencia que a onda de greves entre os trabalhadores rodoviários no último período representou um poderoso movimento da classe trabalhadora em defesa de interesses sociais abrangentes. Como então é possível que essas lutas tenham permanecido profundamente isoladas até hoje?

Como nos países de todo o mundo, a radicalização dos trabalhadores brasileiros está revelando a contradição absoluta entre os seus interesses e aqueles dos sindicatos corporativistas que advogam-se seus representantes oficiais.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres, que congrega mais de 300 sindicatos rodoviários, deixou isso incrivelmente claro numa carta aberta ao governo enviada no final de fevereiro. O sindicato exigiu que o Estado financiasse as companhias de transporte – a mesma reivindicação apresentada pela associação patronal – com o objetivo declarado de “mitigar o crescente movimento de greve geral” nas suas bases.

Nos meses seguintes à publicação dessa carta, que foram marcados pelo crescimento da revolta nas bases contra a situação cada vez mais catastrófica da pandemia, os sindicatos empregaram uma série de manobras criminosas com o propósito de sabotar o movimento dos trabalhadores em direção a uma greve geral.

Buscando desviar o crescente apelo entre os trabalhadores para a implementação de medidas científicas de combate à pandemia mortal, as centrais sindicais convocaram para 24 de março um movimento batizado de “lockdown da classe trabalhadora”. O evento foi uma fraude completa. Nem mesmo a paralisação inócua de um dia anunciada pelos sindicatos foi organizada nos locais de trabalho. Os burocratas se limitaram a realizar eles mesmos manifestações de fachada exigindo a aceleração das vacinações.

Com a mesma estratégia, os sindicatos do transporte público do estado de São Paulo convocaram uma paralisação geral para 20 de abril, também batizada de “lockdown dos transportes”. A convocação coincidiu com o maior pico de mortes por COVID-19 no Brasil, que ultrapassou a média de 3.000 mortes diárias. Somente no estado de São Paulo, foram registradas 1.389 mortes em um único dia do mês de abril.

A realização de uma greve dos transportes nestas condições teria um impacto colossal sore a circulação de pessoas e a taxa de transmissão do vírus, e apontaria um caminho para uma resposta independente da classe trabalhadora à pandemia de COVID-19. O movimento foi, no entanto, cancelado pelos sindicatos na véspera com base numa negociação teatral com o governo estadual, que determinou um calendário de vacinação que incluiu os trabalhadores dos transportes como categoria prioritária.

Essa traição grotesca foi usada como modelo por sindicatos locais em todo o país, que continuam a realizar uma série de paralisações teatrais para liberar a pressão vinda da base dos trabalhadores, que invariavelmente terminam com sua inclusão no calendário de vacinação local.

A revolta popular generalizada com a gestão criminosa da pandemia e da crise social pelo governo fascistoide de Bolsonaro veio à tona em manifestações massivas pelo Brasil no último sábado.

Ao isolar e trair os movimentos da classe trabalhadora, os sindicatos corporativistas estão cumprindo um papel fundamental na implementação da política homicida de imunidade de rebanho de Bolsonaro e da classe dominante. As direções políticas corrompidas por trás desses sindicatos, ligadas ao PT e seus aliados da pseudoesquerda, estão tentando desviar o crescente movimento contra Bolsonaro através de um acordo sujo dentro do Estado burguês.

A luta contra o desenvolvimento catastrófico da pandemia e a crise social crescente no Brasil só poderá avançar se a classe trabalhadora for mobilizada como uma força social independente.

Isso torna imperiosa a necessidade de romper definitivamente com os sindicatos e partidos representantes do capitalismo e estabelecer comitês de base que representem diretamente os interesses da classe trabalhadora e que avancem políticas socialistas.

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