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Perspectivas

30 anos do fim da URSS

Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2021

Em 26 de dezembro de 1991, o regime stalinista liderado por Mikhail Gorbachev dissolveu formalmente a União Soviética. O fim da URSS e a restauração do capitalismo foram os atos culminantes de 70 anos de traição da burocracia stalinista à revolução cuja herança tinha usurpado.

Líder soviético Mikhail Gorbachev (ao meio, lado direito) e presidente americano Ronald Reagan (ao meio, lado esq.) em aperto de mão em frente ao Hofdi no início de série de reuniões em 11 de outubro de 1986 em Reykjavik, Islândia. Os outros homens não foram identificados. [AP Photo/Ron Edmonds]

Nos 30 anos desse evento, a grande mídia e publicações acadêmicas insistiram que “Ninguém previu que isso poderia acontecer”. Em seu livro recentemente publicado, Collapse: The Fall of the Soviet Union, o professor Vladislav M. Zubok, da London School of Economics, escreveu: “Ninguém, incluindo os observadores mais sagazes, poderia prever que a União Soviética, que tinha sobrevivido ao ataque épico dos exércitos de Hitler, seria derrotada de dentro para fora, por suas crises e conflitos internos”.

As alegações de que a dissolução da União Soviética era imprevisível deixam de lado qualquer referência às análises dos últimos anos da União Soviética feitas pelo movimento trotskista, que não foi contaminado pela euforia vertiginosa da “Gorbymania” que dominou a mídia burguesa e a sovietologia acadêmica após a chegada de Gorbachev à liderança do Partido Comunista Soviético em 1985. O Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) advertiu repetidamente que as políticas da glasnost (abertura) e perestroika (reestruturação) de Gorbachev expressavam o impulso da burocracia stalinista para reintegrar a economia soviética ao mercado mundial através da restauração do capitalismo.

O World Socialist Web Site está publicando hoje uma extensa coleção de documentos históricos e declarações do CIQI, que traçou meticulosamente a lógica interna das políticas de Gorbachev e advertiu que a tendência iminente do stalinismo era a dissolução do Estado operário.

Em março de 1987, o CIQI escreveu em What is Happening in the USSR? Gorbachev and the Crisis of Stalinism: “A escassez de tecnologia e as contradições contínuas entre indústria e agricultura só podem ser resolvidas através do acesso ao mercado mundial. Existem apenas dois caminhos para a integração da União Soviética nesse mercado - o de Gorbachev que leva à restauração capitalista e o da revolução socialista mundial”.

Em agosto de 1987, falando por ocasião dos 47 anos do assassinato de Leon Trotsky por um agente da GPU stalinista, David North, secretário nacional da Workers League - a antecessora do Partido Socialista pela Igualdade (EUA) - explicou que ao mover-se para restaurar as relações de propriedade capitalista, Gorbachev “não representa o repúdio ao stalinismo, mas emerge inexoravelmente da putrefação da burocracia, que se prepara ativamente para renunciar e rejeitar aquelas conquistas sociais da Revolução de Outubro - o estabelecimento da propriedade estatal e o monopólio do comércio exterior - que antes não se atrevia a atacar.” (Trotskyism versus Stalinism)

Em 1989, North publicou Perestroika Versus Socialism: Stalinism and the Restoration of Capitalism in the USSR, que continha uma série de artigos publicados no Bulletin, o jornal da Workers League, entre março e maio daquele ano. North mostrou que a “abertura” da glasnost não foi uma restauração da democracia soviética para a classe trabalhadora, mas uma tentativa de “forjar uma aliança dos estratos mais privilegiados e politicamente articulados da sociedade soviética: desde a elite administrativa dentro dos setores mais prósperos da indústria estatal e das fazendas coletivas, até os tecnocratas, a intelligentsia e a pequena burguesia avarenta, cujo crescimento numérico e enriquecimento está entre os principais objetivos do regime stalinista”.

A perestroika, continuou, implicou na “implementação de políticas de livre mercado, na liquidação do monopólio do comércio exterior e na legalização da propriedade privada dos meios de produção”. Foi através destas medidas, argumentou North, que “a lógica contrarrevolucionária da teoria stalinista do ‘socialismo em um só país’ encontra sua expressão última no desenvolvimento de uma política externa destinada a minar a propriedade estatal soviética e reintroduzir o capitalismo dentro da própria URSS”.

A validade dessas concepções, que foram corroboradas pelos desenvolvimentos históricos, é uma poderosa confirmação da análise científica marxista do caráter de classe da União Soviética e do papel da burocracia stalinista desenvolvida por Leon Trotsky e elaborada pelo CIQI.

A classe trabalhadora russa, liderada pelo Partido Bolchevique e apoiada por uma ampla massa de camponeses, tomou o poder em outubro de 1917, sob a liderança de Vladimir Lenin e Leon Trotsky, e estabeleceu o primeiro Estado operário do mundo. Era uma forma social de transição, não mais capitalista, mas ainda não socialista.

A Revolução de Outubro foi o evento mais progressista da história humana, trazendo um tremendo avanço nas condições das massas soviéticas. O estabelecimento do primeiro Estado operário da história e a derrubada do capitalismo também deram um poderoso impulso às lutas da classe trabalhadora e das massas oprimidas em todas as partes do mundo. No entanto, ela foi envolta em contradições decorrentes do atraso histórico da Rússia e da devastação econômica causada por uma década de guerra mundial, levantes revolucionários e guerra civil. De maneira mais fundamental, o desenvolvimento do socialismo dependia da extensão da revolução além das fronteiras da União Soviética, para os centros avançados do capitalismo na Europa Ocidental.

Mas o fracasso e a traição das revoluções no início dos anos 1920, mais tragicamente na Alemanha em 1923, estenderam o isolamento da União Soviética e aprofundaram suas contradições. A inadequação da produção implicou necessariamente em desigualdade. Em seu magistral livro de 1936 sobre a natureza da União Soviética e o stalinismo, A Revolução Traída, Trotsky escreveu: “O Estado assume diretamente e desde o início um caráter dual: socialista, na medida em que defende a propriedade social nos meios de produção; burguês, na medida em que a distribuição dos bens da vida é feita com uma medida capitalista de valor e todas as consequências daí decorrentes”.

A burocracia supervisionando essa distribuição burguesa tornou-se uma casta privilegiada, cuja relação com a propriedade social era inteiramente parasitária. Joseph Stalin emergiu como o principal representante dessa camada social. O Estado operário degenerou sob o peso da burocracia, que orientava a política externa e o planejamento econômico da União Soviética por trás do que ela concebia como sendo seus interesses nacionais.

Stalin disfarçou as suas políticas na alegação de que estava construindo o “socialismo em um só país”, identificando os interesses da burocracia com o nacionalismo. No entanto, as suas políticas autárquicas minaram de forma cada vez mais aguda o imenso potencial contido dentro das relações sociais das quais a burocracia se alimentava.

Para isso, o stalinismo transformou internacionalmente os partidos comunistas no aparato da política externa da burocracia. Ele empregou uma estratégia contrarrevolucionária consciente de instruir os trabalhadores de todo o mundo a abraçar uma seção da classe capitalista como progressista, vestindo os interesses diplomáticos da burocracia como a primeira etapa de uma “revolução em duas etapas”.

O massacre do Partido Comunista na China em 1927 e, de maneira mais catastrófica, a ascensão ao poder de Hitler na Alemanha em 1933 enfraqueceram a classe trabalhadora soviética e fortaleceram a burocracia. A política externa do regime soviético foi determinada, cada vez mais, pela avaliação que Stalin fez dos interesses nacionais da burocracia. A defesa do privilégio burocrático levou o Kremlin a alianças com o imperialismo e os regimes burgueses. A formação de alianças da “Frente Popular”, envolvendo os partidos comunistas apoiados pelos soviéticos e os partidos burgueses em meados dos anos 1930, e a aliança de 1939 entre Stalin e Hitler estabeleceram o caráter contrarrevolucionário do stalinismo.

Trotsky lutou contra o crescimento do burocratismo desde as suas primeiras manifestações em 1923, opondo-se ao nacionalismo stalinista com a perspectiva da Revolução Permanente. Em 1933, quando as políticas de Stalin facilitaram a ascensão ao poder dos nazistas na Alemanha, Trotsky chegou à conclusão de que a burocracia não podia ser reformada e tinha que ser derrubada. Para esse fim, ele organizou a Quarta Internacional.

Em A Agonia Mortal do Capitalismo e as Tarefas da Quarta Internacional (O Programa de Transição), escrito na sua fundação em 1938, Trotsky argumentou: “o regime da URSS traz em si contradições ameaçadoras. Mas permanece um regime de ESTADO OPERÁRIO DEGENERADO. Tal é o diagnóstico social. O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo ou a classe trabalhadora destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direção ao socialismo.”

A perspectiva de Trotsky foi a continuação do programa da Revolução de Outubro, convocando a classe trabalhadora soviética a uma revolução política para derrubar a burocracia stalinista e a defender as relações de propriedade socialista e a revolução socialista mundial. Stalin respondeu com mentiras, expurgos, julgamentos farsescos e assassinatos em massa.

O historiador soviético Vadim Rogovin, em sua série de sete volumes Was There an Alternative?, documentou cuidadosamente os mecanismos de repressão que Stalin implantou para esmagar o trotskismo. Stalin executou sistematicamente centenas de milhares, uma geração inteira de revolucionários, no que Rogovin chamou de “genocídio político”. Essa sangrenta onda de assassinatos culminou com o assassinato do próprio Trotsky, no exílio no México, em 20 de agosto de 1940, pelo agente stalinista Ramón Mercader.

O impacto desses crimes sobre a vida cultural e intelectual da União Soviética, sobre o seu clima político e sobre sua vitalidade de espírito foi incalculavelmente devastador. A ferocidade do assassinato - um julgamento de cinco minutos, uma bala na nuca e a conta para os parentes mais próximos - tinha um caráter fascistoide. A burocracia procurou simultaneamente exterminar o germe da revolução e moer a cultura da classe trabalhadora soviética até o nível de seu próprio filistinismo.

Stalin morreu em 1953. Três anos mais tarde, Nikita Khrushchev proferiu um “discurso secreto” no 20º Congresso do PC Soviético denunciando alguns dos excessos de Stalin e o culto à personalidade. Uma tendência oportunista que havia rompido com o trotskismo, liderada por Michel Pablo e Ernest Mandel, saudou esses desenvolvimentos, alegando que o stalinismo poderia ser pressionado a evoluir em uma direção progressista. A des-stalinização tornaria desnecessário o trotskismo. Eles abandonaram a perspectiva da Revolução Permanente e qualquer orientação para a classe trabalhadora mundial, defendendo que a burocracia stalinista deveria ser empurrada “para a esquerda”.

A realidade repetidas vezes destruiu as ilusões cultivadas pelo pablismo. Após quatro meses de seu discurso secreto, Khrushchev enviou tanques para esmagar a Revolução Húngara.

O Comitê Internacional da Quarta Internacional foi fundado em 1953 com base na defesa de principio da Revolução Permanente, em oposição a essas traições pablistas, e desde então tem afiado as suas concepções sobre a natureza do stalinismo. O entendimento do CIQI sobre a Revolução Permanente foi aprofundado ainda mais na luta que travou no início dos anos 1980 contra as tendências pablistas no Workers Revolutionary Party (WRP), cuja liderança se adaptou ao nacionalismo burguês e à política oportunista.

Os capangas que eventualmente herdaram o manto de Stalin - Brezhnev, Andropov, Gorbachev e outros da mesma laia - não tinham a memória de Outubro de 1917. Eles carregavam o selo do aparato, eram marcados por sua falta de escrúpulos e falsidade, e presidiram um país politicamente lobotomizado pelo stalinismo. A restauração do capitalismo na União Soviética não teria sido possível se não fosse a desorientação política da classe trabalhadora, sistematicamente privada do conhecimento da própria história e, sobretudo, do trotskismo.

Em novembro de 1989, em um discurso no Arquivo Histórico de Moscou, David North havia advertido que as políticas de Gorbachev significavam a “restauração capitalista e um declínio horrível no nível cultural e social da União Soviética”. Nas costas da classe trabalhadora soviética, os apparatchiks de Gorbachev despojaram as conquistas da Revolução de Outubro, assegurando fortunas ao expor os trabalhadores às predações do capitalismo internacional. O resultado para a classe trabalhadora soviética foi uma catástrofe. Os níveis de bem-estar social, incluindo a expectativa média de vida, despencaram.

A restauração do capitalismo e a liquidação da União Soviética foram as traições finais levadas a cabo pela burocracia stalinista. Esses crimes confirmaram todos os alertas urgentes de Trotsky e da Quarta Internacional.

Quando a bandeira vermelha foi baixada em 26 de dezembro e o símbolo russo czarista erguido em seu lugar, a “Gorbymania” que havia dominado a mídia ocidental e grande parte da academia deu lugar ao triunfalismo burguês. Incapazes de prever a restauração do capitalismo, agora que ele havia se concretizado, ignoraram suas causas mais profundas. As potências capitalistas ocidentais celebraram a dissolução da URSS como o início de uma nova era de democracia capitalista, liberdade e progresso.

O CIQI, baseado na análise e na oposição do movimento trotskista à traição stalinista à Revolução Russa, entendeu que o fim da União Soviética não traria consigo um período de desenvolvimento capitalista pacífico. Todas as contradições do capitalismo mundial que deram origem à Revolução Russa não só persistiram, como emergiram de forma cada vez mais explosiva. Os problemas centrais enfrentados pela classe trabalhadora no século XX teriam que ser resolvidos no século XXI.

Com base nessa perspectiva, as seções do CIQI formaram os Partidos Socialistas pela Igualdade a partir de 1995. Em 1998, o CIQI lançou o World Socialist Web Site, que é hoje, sem dúvida, a voz de autoridade do socialismo internacional.

As últimas três décadas foram caracterizadas por uma guerra sem fim, o crescimento da desigualdade social para níveis historicamente sem precedentes, uma série de crises econômicas, a putrefação da democracia burguesa e a ascensão do fascismo. Nos últimos dois anos, uma pandemia devastadora levou, devido às políticas criminosas dos oligarcas capitalistas, à morte de milhões de pessoas e está alimentando um crescente clima de raiva e oposição na classe trabalhadora internacional.

A perspectiva elaborada pelo CIQI antes, durante e após a dissolução da União Soviética foi confirmada. É essa perspectiva, enraizada em toda a herança do movimento trotskista e marxista, que é a base necessária para a construção dentro da classe trabalhadora de uma liderança política que ponha fim ao capitalismo e efetive, em escala mundial, o programa encarnado na Revolução Russa.

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