No domingo, ocorreu a primeira rodada das eleições presidenciais na Colômbia, que definiu um segundo turno marcado para 19 de junho. Ele será disputado entre o candidato da esquerda oficial burguesa, Gustavo Petro, e o fascistoide Rodolfo Hernandéz, que foi apelidado de “Trump colombiano”.
Em um país que nos últimos três anos foi palco de uma série explosiva de protestos e greves de massas contra os níveis brutais de desigualdade social e violência estatal, ambos os candidatos, que se apresentam como uma ruptura com o sistema político tradicional, assumem o desafio de reestabelecer a estabilidade do regime burguês colombiano em crise.
É a segunda vez que Petro, representando a aliança eleitoral pseudoesquerdista Pacto Histórico, chega ao segundo turno das eleições presidenciais. Em 2018, ele o disputou contra o atual presidente de extrema-direita, Iván Duque. Durante toda a campanha deste ano, ele apareceu consistentemente nas pesquisas como o candidato favorito e recebeu 40,3% dos votos no pleito de domingo. Hernandéz, por outro lado, que obteve 28% dos votos, surpreendeu ao conquistar o segundo lugar.
Até poucas semanas, o milionário e ex-prefeito da cidade Bucaramanga era considerado um político pouco conhecido nacionalmente. Agora, Hernandéz já aparece ligeiramente a frente de Petro nas pesquisas.
As comparações entre Hernandéz e Trump, ou seu aliado latino-americano, o presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro, são justificadas. Ele combina traços bufônicos a uma retórica ultrarreacionária – em 2016, clamou numa entrevista, “Sou seguidor de um grande pensador alemão. Seu nome é Adolf Hitler” – sobretudo baseada no combate à corrupção. Concorrendo pela recém-criada Liga de Governantes Anticorrupção, o próprio Hernandéz é investigado por corrupção em contratos durante sua administração de Bucaramanga.
O fato de essa figura grotesca ter subitamente se projetado como um dos principais concorrentes na disputa presidencial é um testemunho da degeneração do regime político colombiano. O candidato da direita tradicional, Federico Gutiérrez, que era até o último momento apontado pela imprensa como o “único capaz de disputar a vitória com Petro”, foi rejeitado (teve 23% dos votos) por carregar a maldita indicação do ex-presidente Álvaro Uribe e seu detestado discípulo, o atual presidente Duque.
As eleições atuais estão, ao mesmo tempo, sendo marcadas por crescentes ameaças de golpe e uma interferência sem precedentes dos militares na política colombiana.
O Ministério Público anunciou no final de abril que abrirá uma investigação contra o comandante do Exército, Eduardo Zapateiro, por intervir na campanha presidencial com uma série de tuítes em tom ameaçador contra Petro por ter criticado os militares. Zapateiro escreveu: “Nunca vi na televisão um general recebendo dinheiro sujo. Os colombianos viram você receber dinheiro em um saco de lixo”, fazendo referência a um escândalo de corrupção do qual Petro foi absolvido. Ele terminou os tuítes “exigindo respeito” do candidato pelo Exército. A manifestação de Zapateiro foi abertamente apoiada por Duque.
Outros militares pronunciaram-se abertamente contra Petro, levantando o fato de o candidato do Pacto Histórico ter pertencido ao movimento guerrilheiro castrista M-19. A AFP reportou que o coronel aposentado José Marulanda, presidente da Associação Colombiana de Oficiais Aposentados (ACORE), afirmou que um setor dos militares vê Petro com “certo receio e temor”. “Sentimos que ele tem um ressentimento muito claro contra os militares e a polícia, que foram os que mataram seus camaradas do M-19 em combate”, disse.
Ao lado desses atores locais, um papel determinante nos avanços contra a democracia no país é desempenhado por Washington, que tem na Colômbia seu principal ponto de apoio político e militar na América Latina. Em fevereiro, a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, após participar de diálogos de segurança com o alto-escalão do governo Duque em Bogotá, anunciou que “atores estrangeiros” estariam tentando subverter as eleições na Colômbia. Nuland anunciou que, em resposta, os militares e agentes de inteligência americanos trabalhariam junto de seus colegas colombianos para garantir eleições “livres e justas”.
Esses episódios são expressão de um processo universal de esfacelamento das formas democráticas de governo burguesas e avanço de ameaças ditatoriais fascistas. Crises semelhantes, envolvendo ameaças de golpe eleitoral e intervenção militar, pautaram as eleições presidenciais mais recentes em países latino-americanos como Peru e Bolívia e já dominam as futuras eleições presidenciais brasileiras que ocorrerão em outubro.
A crise da dominação capitalista na Colômbia é um caso exemplar. Com um duradouro regime político bipartidário estabelecido desde 1853, o país era considerado portador de uma estabilidade política excepcional na América Latina, não tendo passado por regimes militares durante o século XX, nem por governos nacionalistas burgueses da “Maré Rosa” nas últimas décadas. O uribismo, tendo se apresentado como uma alternativa política à crise dos partidos Conservador e Liberal, deu luz ao governo Duque, que deixará o poder após um mandato como uma das administrações presidenciais mais impopulares da história.
Os dois fatores fundamentais por trás dessa crise política são, de um lado, a crise do sistema capitalista mundial, que está tendo impacto devastador sobre as economias latino-americanas exportadoras de matérias-primas, e, de outro, o acirramento da luta de classes a um novo patamar histórico.
A Colômbia foi definida pelo Banco Mundial como “um dos países mais desiguais do mundo”. É o segundo mais desigual da América Latina e Caribe, atrás apenas do Brasil, e o mais desigual entre os membros da OCDE. A desastrosa resposta pró-capitalista do governo Duque à pandemia de COVID-19 aprofundou as condições sociais já extremas, levando outros 3,6 milhões de colombianos à pobreza.
Essa grave crise social impulsionou repetidas paralisações nacionais desde 2019, que levaram centenas de milhares de trabalhadores e jovens colombianos revoltados às ruas e foram precariamente mantidas sob controle pelas centrais sindicais e associações de agricultores em colaboração com o governo de direita. O emprego da violência assassina do Estado contra manifestantes e a população em geral, que Duque promoveu em continuidade com as políticas de seu mentor, Uribe, intensificou a revolta popular e estourou em outra série de protestos massivos.
Ao mesmo tempo que o crescimento eleitoral de Petro está diretamente ligado à crescente oposição social e rejeição ao regime político capitalista, um possível governo do Pacto Histórico será incapaz de responder às questões candentes para a classe trabalhadora colombiana. A derrota de Petro nas eleições de 2018 deveu-se em grande medida a sua identificação com as impopulares políticas de austeridade do governo de Juan Manuel Santos, apoiado por Petro.
Resumindo as razões para sua atual projeção política, Petro declarou em uma entrevista à The Economist: “E se agora tenho uma maioria ... é porque entrou em colapso o modelo econômico e político no qual o uribismo esteve baseado, que basicamente, do ponto de vista econômico, era o petróleo, carvão e cocaína; e do político, era a destruição das FARC como a grande bandeira unitária – e as FARC desapareceram.”
Apesar de reconhecer o esgotamento dessas bases econômicas e políticas, Petro não tem alternativas a oferecer além de um combate ao déficit fiscal do Estado – o que implicará necessariamente em mais políticas de austeridade – e promessas pouco tangíveis de reativação do setor industrial nacional em oposição à base essencialmente extrativista da economia hoje. Buscando se apresentar como um representante fiel dos interesses nacionalistas da burguesia colombiana, ele se esforça para dispersar qualquer associação com um programa de enfrentamento aos interesses do lucro capitalista.
Na mesma entrevista à Economist, ele afirmou que “a caricatura que tem sido feita de nossa proposta é que vamos expropriar empresas como se quiséssemos iniciar um sistema econômico soviético. Jamais sugeri isso, nem mesmo quando eu era um insurgente”. Ele esclarece que seu movimento, o M-19, foi um defensor da ideia que deu base à constituição de 1991 de “uma economia social de mercado – como dizem os alemães – com direitos universais, mas com respeito à propriedade privada e à livre iniciativa empresarial”. Em outras palavras, ele assume sua relação umbilical com o regime político capitalista que está sendo massivamente rejeitado pela classe trabalhadora colombiana.
Sendo incapaz de apelar com esse reacionário programa ao descontentamento generalizado da juventude e dos trabalhadores, a tarefa de dar ares de radicalidade à campanha do Pacto Histórico ficou a cargo de sua candidata a vice-presidente, Francia Márquez. Uma mulher negra, advinda dos setores mais empobrecidos da sociedade colombiana e uma ativista das políticas ambientais e identitárias, Márquez promete representar uma renovação da política colombiana. Em uma ocasião durante a campanha, ela confrontou Petro publicamente por sua oposição reacionária à legalização do aborto.
No entanto, apesar das frases de impacto pseudoesquerdistas contra o racismo estrutural e o patriarcado, Márquez não defende um rompimento com o sistema capitalista, nem possui qualquer ligação remota com o movimento socialista. Ela foi adequadamente comparada por uma especialista em política colombiana da Hampshire College, Roosbelinda Cárdenas, à congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez e à bancada pseudoesquerdista do Partido Democrata, o Squad. “Como as radicais mulheres de cor que ousaram aparecer no Congresso dos EUA ‘como iguais’, a própria presença de Francia Márquez nas eleições presidenciais colombianas faz balançar o status quo”, Cárdenas declarou ao The Nation. Ao invés de “balançar o status quo”, uma vez no poder, Ocasio-Cortez dedicou-se a denunciar qualquer oposição de esquerda ao governo democrata de Joe Biden como “má fé”, e a defender o armamento massivo da Ucrânia pelo imperialismo americano para sua guerra por procuração contra a Rússia.
Caso assuma o poder, o destino do governo do Pacto Histórico será o mesmo de seus colegas pseudoesquerdistas nos demais países latino-americanos: implementar políticas antissociais e reprimir o movimento da classe trabalhadora em nome da manutenção da unidade nacional da burguesia, enquanto abre o caminho para o ascenso do fascismo, que assombrará permanentemente sua administração política instável.
Publicado originalmente em 1º de junho de 2022