Estamos republicando este importante relatório preparado por Bill Van Auken para a reunião ampliada do Comitê Editorial Internacional do World Socialist Web Site, realizada em Sidney, na Austrália, entre 22 e 27 de janeiro de 2006. Ele foi escrito no início da chamada “Maré Rosa”, quando uma série de governos nacionalistas burgueses estavam chegando ao poder na América Latina. Hoje, com a volta ao poder de vários governos supostamente de esquerda na região, este documento ganha uma importância renovada.
A América Latina é formada por mais de 20 países independentes, que se estendem da Patagônia ao Rio Bravo. Compreende-se, portanto, que não procuraremos aqui percorrer as condições políticas e sociais de cada um desses países. Preferimos, muito mais, ressaltar algumas das questões mais importantes da região a partir dos seguintes pontos: a elaboração de nossas perspectivas internacionais e do desenvolvimento do trabalho do Comitê Internacional da Quarta Internacional e do WSWS na América Latina.
A nossa meta para este ano deve ser aumentar e aprofundar a nossa cobertura da América Latina. De forma a aumentar a nossa repercussão na região, ganhando os melhores elementos para a luta e nos constituindo como uma real alternativa às políticas falidas dos nacionalismos pequeno-burgueses e dos seus defensores stalinistas e revisionistas.
Como se sabe, a América Latina há muito tempo é uma região instável, onde repetidamente aconteceram grandes levantes de massas, mas também grandes e trágicas traições, que entregaram as massas a direções oportunistas e a brutais ditaduras militares. A principal tendência internacional revisionista, a tendência pablista, que rompeu com o trotskismo ortodoxo na década de 50, teve um papel decisivo nestas traições, particularmente nas décadas de 1960 e 1970.
Ainda hoje, a América Latina permanece sendo a região com a maior polarização social e instabilidade política do planeta. Desde 2000, ao menos 10 presidentes foram derrubados, em meio a crises, golpes, levantes de massas e uma invasão dos EUA.
Em uma tentativa inicial de compreender estas condições explosivas, vale a pena examinar duas questões interrelacionadas que preocupam não apenas Washington, mas também a mídia e seções dos dois principais partidos dos EUA.
A primeira é a evidente perda de influência de Washington na região, há muito tempo considerada o “quintal” dos EUA. A segunda questão é a chamada “virada à esquerda” na América Latina. Para a esquerda pequeno-burguesa e para os revisionistas, este fenômeno vem sendo entendido como um confronto decisivo com o imperialismo e mesmo como uma nova via para o socialismo.
Acreditamos que isso efetivamente não esteja ocorrendo. Não há dúvida, porém, que uma série de regimes que de alguma forma se identificam com a “esquerda” chegaram ao poder e que falam em oposição política e econômica aos EUA, e esses fatos possuem um profundo significado objetivo.
Nesse sentido, nos círculos dominantes dos EUA se manifesta uma crescente inquietação quanto a essa região. O último número da revista Foreign Affairs traz um artigo intitulado “Estará Washington perdendo a América Latina?”. O seu autor, Peter Hakim, é presidente do Inter-American Dialogue, uma grande entidade empresarial que promove a política de livre comércio de Washington para a região.
O autor condena tanto o governo Clinton quanto Bush pela negligência em relação à América Latina. Esses governos teriam permitido que “a política de Washington para a América Latina corresse sem rumo ou direção”, depois de um período “de encaminhamento político correto” para a região.
Na realidade, a redução da influência dos EUA na América Latina não é apenas uma questão de política externa incorreta ou resultado de decisões subjetivas deste ou daquele político. Essa redução está ligada, muito mais, a mudanças na economia mundial, assim como aos efeitos catastróficos das políticas conduzidas pelos EUA no período em que Hakim considera que a América Latina caminhava na “direção correta”.
As mudanças na economia mundial originadas na globalização, incluem o relativo declínio na posição do capitalismo americano em relação à Europa Ocidental e em relação à China.
A Doutrina Monroe – a política dos EUA de oposição a qualquer poder externo que estendesse a sua influência no hemisfério ocidental – efetivamente faliu. Por quase 200 anos, sucessivos governos dos EUA evocaram esta doutrina como justificativa para as intervenções dos EUA na região e, ao longo de todo o século XX, para impor ditaduras militares e suprimir o movimento revolucionário da classe trabalhadora. Na maior parte deste período, a doutrina foi apoiada pelos regimes nacionais burgueses, que se subordinavam, eles mesmos, ao imperialismo americano. Este consenso foi abalado pelas mudanças nas relações econômicas.
Os rivais dos EUA ganham influência econômica
A União Europeia, ao longo desta última década, eclipsou o capitalismo dos EUA como a principal fonte de investimento estrangeiro direto e de comércio na América do Sul. Os EUA continuam a liderar, porém, o comércio na América Latina como um todo, graças aos seus laços com o México devido ao NAFTA, acordo comercial que existe desde 1993. Dois terços das exportações americanas na região vão para o México. A maior parte dos produtos consiste em peças que atravessam a fronteira, rumo às maquiladoras, fábricas montadas apenas para explorar a força de trabalho mexicana barata na produção de mercadorias para o próprio mercado americano.
Porém, maiores distúrbios surgem para a política de Washington: a China está exercendo um papel cada vez maior ao sul do Rio Grande. O presidente chinês Hu Jintao e o vice-presidente Zeng Qinghong fizeram duas viagens à América Latina em menos de dois anos, assinando contratos de comércio e fazendo acordos militares. A região vem se tornando uma fonte importante de matérias-primas para as indústrias chinesas. As importações chinesas de produtos da América Latina aumentaram seis vezes nestes seis últimos anos e espera-se que alcancem a marca de US$ 100 bilhões por ano até o fim desta década.
Para assegurar o acesso a recursos naturais já escassos, a China se comprometeu a investir US$ 100 bilhões na construção de estradas, portos e diversas obras de infraestrutura ao longo da próxima década. Pequim está promovendo uma série de grandes projetos, incluindo iniciativas que assegurem o acesso ao petróleo venezuelano e ao gás e minerais bolivianos.
O Congresso dos EUA já realizou duas audiências sobre o que é entendido como a ameaça chinesa à esfera de influência e dominação semicolonial americana. Em depoimento ao Congresso no ano passado, o Secretário Assistente para os Negócios do Hemisfério Ocidental, Roger Noriega, prometeu que o governo Bush estaria “atento quanto a qualquer indicação de que a colaboração econômica estivesse alimentando relações políticas contrárias a nossos objetivos chaves para a região”.
Em resumo, estas mudanças nas relações econômicas globais significam que o capitalismo americano não é o único a estar no jogo – e, em muitos casos, não ser o jogo mais lucrativo – ao menos no que se refere à América Latina. O crescimento das relações econômicas entre a América Latina e os rivais dos EUA deram aos governos da região um espaço de negociação que é até maior do que aquele criado pela Guerra Fria e pela concorrência entre Washington e Moscou. Este é um dos principais fundamentos materiais da chamada “virada à esquerda”. Em muitos casos, esta virada poderia ser melhor descrita como uma “guinada ao euro e ao yuan”.
Na própria região, o capitalismo americano enfrenta uma nova ameaça nascente: o Brasil. Com uma população de mais de 180 milhões e consideráveis recursos naturais, o país tornou-se a décima potência industrial do mundo e o quinto maior exportador de armas. O crescimento do Brasil tem levado a repetidos atritos comerciais com os EUA acerca de questões que vão dos direitos de propriedade intelectual às exportações agrícolas.
As implicações políticas destas mudanças se manifestaram, recentemente, na decisão da Casa Branca de negar licenças de exportação a um fabricante de aviões da Espanha, que enviaria aviões de tecnologia americana à Venezuela, em um acordo realizado entra Chávez e o Ministério da Defesa do governo espanhol. A Espanha, então, prometeu desafiar o bloqueio fazendo aviões com tecnologia europeia. Confrontos similares com a Espanha são esperados na negociação da venda de lanchas de patrulha. Da mesma maneira, confrontos aparecem com o Brasil, desta vez, acerca da venda de aviões militares que vêm sendo produzidos pela Embraer para a Venezuela.
Na semana passada, após uma reunião de Lula, Chávez e Kirchner, o Brasil respondeu aos EUA com a proposta do estabelecimento de uma indústria armamentista comum aos três países, sob o guarda-chuva do Mercosul. O plano quer estabelecer uma primeira vinculação entre as fábricas de armas criadas, anteriormente, pelos regimes ditatoriais da Argentina e do Brasil. Particularmente, aparece o plano de estabelecer uma fábrica da Embraer na Argentina. O objetivo é o de eventualmente produzir aviões militares e outros equipamentos para toda a região, competindo com os modelos mais caros dos fabricantes americanos, que tradicionalmente alimentam as necessidades armamentistas da América Latina, com um custo próximo de US$ 3,5 bilhões por ano.
As preparações militares dos EUA
Tudo isso representa um sério desafio aos interesses de Washington. Há pouca expectativa de que o imperialismo americano cederá calado ao controle do seu próprio “quintal”, abrindo mão do controle dos mercados e fontes estratégicas de matérias-primas. Para a manutenção da hegemonia econômica que teve outrora na América Latina, pode-se esperar a mesma resposta que tem em todas as regiões: o recorrente apelo ao militarismo.
Ao longo das últimas décadas, Washington tem construído uma rede de bases militares na região, ao passo que expande as operações do US SouthCom, comando militar regional que inclui mais funcionários lidando com a América Latina do que com todas as outras agências americanas combinadas.
O ano de 2002 assistiu à tentativa americana de golpe contra o governo Chávez. Esta tentativa, segundo alguns relatos, teria ocorrido com a participação direta de conselheiros militares americanos e mesmo o destacamento de navios e aviões espiões americanos. Em 2004, assistiu-se à deposição de Aristide no Haiti e à invasão da paupérrima ilha pelos fuzileiros navais dos EUA.
Washington tem desenvolvido planos para uma invasão que possa controlar a riqueza petrolífera da Venezuela, seguindo a mesmo esquema da invasão e ocupação do Iraque.
Existem constantes disputas de fronteira entre a Venezuela e a Colômbia, além de uma guerra civil contra as FARC na Colômbia que já dura quatro décadas. A Colômbia, durante este período, recebeu investimentos massivos americanos nas suas forças armadas – algo em torno de U$ 3 bilhões em recursos militares (supostamente para financiar a “guerra contra a droga”), e viu triplicar o exército do país para mais de 275.000 integrantes. Assim, provavelmente, a Colômbia seria um aliado americano numa das intervenções americanas planejadas contra o governo Chávez.
Disputas históricas também se intensificaram entre a Bolívia e o Chile sobre o acesso ao Pacífico e entre o Peru e o Chile. Cada uma destas disputas poderia, eventualmente, deflagrar um conflito na região, sobretudo, se pensarmos no envolvimento de forças externas americanas agindo por trás dos antagonismos existentes.
Nesse sentido, certamente, a maior responsabilidade do WSWS é expor e denunciar as ameaças do imperialismo americano. Esta defesa ativa da América Latina contra as agressões de Washington, porém, não nos permite fazer concessões ou depositar qualquer esperança no governo Chávez ou em qualquer outro regime nacionalista burguês.
Entender a origem destes regimes requer um exame do impacto das políticas implementadas sob o comando do governo americano e das instituições financeiras dominadas pelos Estados Unidos durante as décadas de 1980 e 1990 – as prescrições de “livre mercado” conhecidas como o “consenso de Washington”.
Essas políticas chamadas, então, de reformas econômicas, que foram vendidas com a promessa de promover o crescimento econômico, representaram uma ruptura total desses países com a política de substituição das importações e com programas de desenvolvimento nacionais, associados a regimes nacionalistas de períodos anteriores, e promoveram a violenta integração destas economias ao capitalismo globalizado.
As tarifas caíram pela metade comparadas às da década de 1970. Restrições aos investimentos internacionais foram suspensos na maior parte dos países.
Somente na década de 1990, mais de U$ 178 bilhões foram arrecadados com as privatizações de empresas estatais, acarretando a destruição de milhares de empregos. Isto contabiliza mais de 20 vezes o valor atingido com as privatizações na Rússia após o colapso da URSS.
O crescimento ilusório da economia, sobre estas bases, não se repetirá. Não se pode vender uma empresa estatal duas vezes.
Estas políticas produziram condições de empobrecimento e de polarização social que hoje ameaçam toda a ordem social. A CEPAL, comissão ligada à ONU, relatou recentemente que por volta de 213 milhões de pessoas, ou 40,6% da população total da região de 523 milhões, vivem na pobreza, com 88 milhões delas vivendo em condições de miséria absoluta.
De acordo com estudo de 2003 do Banco Mundial, os 10% mais ricos da região recebem 48% da renda total, enquanto os 10% mais pobres recebem apenas 1,6%.
Conforme afirma o estudo: “A desigualdade na América Latina é extensiva: o país na região com a menor taxa de desigualdade de renda é ainda mais desigual do que qualquer país da OCDE ou dos países do leste europeu”.
“A desigualdade latino-americana é também generalizada, caracterizando todos os aspectos da vida, incluindo o acesso à educação, saúde e serviços públicos; acesso à terra e outros bens; ao funcionamento de crédito e ao mercado formal de trabalho; e ao exercício de voz e influência política”, acrescenta o mesmo estudo do Banco Mundial.
A Venezuela apresenta um dos exemplos mais extremos desse processo, embora índices similares poderiam ser citados para a Argentina, Uruguai e um grande número de outros países. Para a Venezuela, o último período foi caracterizado por uma enorme inflação, que chegou a atingir 100% em 1996. Entre 1988 e 1997, o país assistiu a uma queda de 15% no número de empregos na indústria.
Ao final da década de 1990, os salários haviam caído 40% em relação ao nível que tinham na década de 1980. O poder de compra do salário mínimo em 1994 caiu para 2/3 comparado àquele em 1978.
O gasto social per capita na Venezuela também foi reduzido drasticamente, cerca de 40% durante o mesmo período. Este incluiu cortes reais de 40% nos gastos com educação, 70% com habitação e desenvolvimento urbano e 37% com assistência-saúde. Entre 1984 e 1995 o quadro da pobreza aproximadamente dobrou, abrangendo 2/3 da população.
Nesse período ocorreu um grande aumento da miséria social acompanhado por uma dramática ampliação da disparidade entre a riqueza e a pobreza. Segundo o mesmo estudo, por exemplo, “uma porção da elite e da classe média alta venezuelana enriqueceu muito através de acordos com as transnacionais”.
A maior parte dos sindicatos, filiados ao partido Ação Democrática (AD), foi completamente desacreditada devido à sua colaboração com o governo na destruição sistemática de ganhos passados. Houve também um nítido declínio no número de filiados aos sindicatos, uma vez que os trabalhadores perderam seus empregos, foram arrastados ao chamado setor informal de vendedores de rua, trabalhos esporádicos, etc. Este setor informal passou agora a constituir mais da metade da população. A parcela da força de trabalho pertencente aos sindicatos caiu pela metade, de 26,4% para 13,5% entre 1988 e 1995.
Assim, os sindicatos deixaram de ser identificados com a oposição ou associados a protestos sociais. Os protestos sociais, por outro lado, tomaram uma forma explosiva e espontânea, expressa de maneira mais forte no chamado “Levante de Caracazo” de 1989, no qual aproximadamente 1.500 pessoas foram mortas pelas forças armadas durante protestos contra um programa de ajustes estruturais recomendados pelo FMI, e adotados pelo então presidente Carlos Andres Peres da AD.
Estes modelos de desenvolvimento, repetidos de várias formas por toda a região, constituíram os antecedentes sociais e econômicos imediatos do que está agora sendo chamado de “ a virada à esquerda latino-americana”, isto é, a recente eleição de Evo Morales na Bolívia, os governos de Tabaré Vasquez no Uruguai, Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e, evidentemente, Chávez na Venezuela.
Mais desenvolvimentos políticos similares estão no horizonte. No Peru, Ollanta Humala, ex-militar que chegou a tentar um golpe, aliado de Chávez, que é descrito pelo Wall Street Journal como a “ala-esquerda contra os acordos de livre comércio e livre-mercado”, é agora o primeiro colocado na corrida presidencial das eleições no país marcadas para abril. Lembremos ainda, no mesmo sentido, a situação no México. Andres Manuel Lopez Obrador, candidato do PRD, aparece entre os favoritos nas eleições mexicanas marcadas para julho, e na Nicarágua, o líder Sandinista Daniel Ortega tem grandes chances de retornar ao poder.
Embora esses governos sejam formados por elementos políticos diversos, todos compartilham as denúncias populistas de “neoliberalismo”, a retórica antiamericana e apelos à insatisfação popular sobre a desigualdade social. Esta retórica, porém, é combinada com a defesa da propriedade privada e a ampla aceitação à receita econômica das instituições financeiras internacionais.
Claramente, nenhum desses regimes oferece uma perspectiva para a classe trabalhadora. Em muitos casos, eles ecoam uma política de tempos passados do nacionalismo esquerdista e do populismo militarista associado a figuras como Juan Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil. Entretanto, enquanto aqueles movimentos se basearam em certo degrau no crescimento dos sindicatos, estes novos populistas emergiram, pelo menos em alguns países, da desintegração dos antigos movimentos nacionais de trabalhadores, sobretudo em países como a Venezuela e a Bolívia.
O governo Chávez na Venezuela
Quais são as características do governo Chávez na Venezuela? Suas origens políticas estão no movimento conspirador de jovens oficiais, que surgiu em oposição à corrupção do velho sistema político venezuelano e profundamente descontente com o uso de militares para suprimir o levante de Caracazo de 1989. Chávez projetou-se no cenário nacional com a tentativa frustrada de golpe de 1992 contra o governo da Ação Democrática do então presidente Carlos Andres Perez.
Libertado logo após um breve período na prisão, Chávez formou alianças com vários setores da esquerda venezuelana e foi eleito com amplo apoio da população em 1998.
As bases ideológicas do movimento “chavista” são evidentemente ecléticas, comuns ao populismo burguês. Ele próprio citou como inspiração para a sua carreira política o movimento encabeçado pelo General Omar Torrijos no Panamá e o “revolucionário” governo militar liderado pelo General Juan Velasquez Alvarado no Peru, ocorrido no final dos anos 1960 e início da década de 1970.
Entre seus primeiros conselheiros políticos estão um dos primeiros e mais antigos líderes do Partido Comunista Venezuelano e um argentino auto-exilado e semifascista que defende o antissemitismo e as virtudes da autoridade militar.
Aqueles que descrevem o governo Chávez como “socialista” cometem uma distorção grosseira. Seu governo não é nem mesmo a erupção de qualquer movimento independente da classe trabalhadora. Além disso, grande parte da economia venezuelana, hoje, está nas mãos do capital privado e internacional. Isto em maior grau do que no apogeu da Ação Democrática trinta anos atrás. A distribuição de terras no país continua entre as mais desiguais da América Latina.
Em um recente artigo, Ramon Mayorga, o representante venezuelano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), caracterizou a colaboração entre os bancos privados venezuelanos e o governo Chávez como “altamente lucrativa”. “Os bancos estão ganhando toneladas de dinheiro”, declarou Mayorga. O aumento na lucratividade do sistema bancário, a partir de altas taxas de juros alcançou, no último ano, 30%, talvez uma das maiores do mundo. O patrimônio dos bancos triplicou desde que Chávez chegou ao poder.
Como jamais ocorrera anteriormente, a parte mais importante da economia da Venezuela está exatamente sob o controle do capital financeiro, enquanto apenas uma parcela dos rendimentos do petróleo é aplicada em programas assistenciais para os pobres, como programas de alfabetização, saúde e distribuição de alimentos, assim como a criação de cooperativas.
O governo venezuelano continua a estampar as origens militares do movimento chavista, incluindo em seu alto escalão inúmeros oficiais, muitos aposentados e alguns da ativa.
Há uma longa história na América Latina dessas tendências militares de “esquerda” e das adaptações oportunistas feitas pelos stalinistas, revisionistas e nacionalistas de esquerda. Frequentemente, esses grupos veem essa forma como um atalho para o poder, bloqueando a mobilização das massas ou da vanguarda proletária mais politizada.
As experiências com Velasco Alvarado no Peru, J.J. Torres na Bolívia, Torrijos no Panamá sempre acabaram traindo o proletariado. Em praticamente todos esses casos, esses regimes foram a antecipação de regimes de direita – ou, no caso do Panamá, de uma invasão americana sem qualquer tipo de resistência.
A característica reacionária dessa tendência militarista pode ser vista, talvez, mais claramente, no apoio de Chávez ao candidato à presidência do Peru Ollanta Humala, um ex-oficial nacionalista que, como Chávez, iniciou na política com uma tentativa frustrada de golpe militar – neste caso, em 2000, contra o corrupto e reacionário governo de Alberto Fujimori, que entrou em colapso poucos meses depois.
Agora, sendo um dos favorito para vencer as eleições de abril, Humala lidera um partido chamado Movimiento Etnocaceristas. O nome deriva, por um lado, do um presidente peruano do século XIX, Andrés Avelino Cáceres, que foi herói da Guerra do Pacífico, contra o Chile. Por outro lado, o “etno” do nome deriva do movimento que promove uma espécie de nacionalismo indígena.
Entre os antecedentes políticos de Humala aparece o movimento fundado por seu pai, que defende que apenas a população indígena seja considerada cidadã, excluindo brancos, asiáticos e negros. Vale a pena registrar que repórteres que estiveram na vila em que a família de Humala reside descobriram que a população local considera a família Humala branca, já que são conhecidos latifundiários.
Humala está promovendo uma virulenta plataforma anti-chilena, propondo a expulsão das empresas chilenas. Da mesma forma, vem pedindo pela anistia dos militares peruanos acusados de massacres, assassinatos e torturas durante a guerra suja contra os grupos guerrilheiros Sendero Luminoso e MRTA nas décadas de 1980 e 1990, e, nesse sentido, propõe que os recentes processos sobre esses crimes hediondos sejam arquivados.
Ao mesmo tempo, esses diversos regimes latino-americanos de “esquerda”, em geral, incluem entre seus dirigentes antigos guerrilheiros cúmplices do stalinismo dos anos 1960 e 1970. Por exemplo, o vice-presidente boliviano Álvaro Garcia Liñera e José Dirceu, um importante dirigente do Partido dos Trabalhadores brasileiro, que recentemente teve seu mandato de deputado cassado devido ao escândalo da compra massiva de votos e suborno.
Oportunistas pablistas preparam novas traições
Na América Latina, os revisionistas pablistas, nos anos 1950, adaptaram-se ao peronismo e a movimentos similares. Depois, nas décadas de 1960 e 1970, passaram a ver nos movimentos guerrilheiros uma nova via para o socialismo. Hoje, na mesma linha oportunista, os grupos pablistas estão construindo na América Latina movimentos similares ao de Chávez com o mesmo objetivo.
Uma palavra que aparece repetidamente nas descrições – e também nas auto-caracterizações – desses governos latino-americanos associados com uma “virada à esquerda” é a palavra “governabilidade”. Os antigos partidos tradicionais estão absolutamente desacreditados, não apenas na Venezuela, mas em todo a região. “Fora todos” é o slogan que predominou nas manifestações na Argentina há cinco anos, e vem sendo repetido em um país após o outro.
Partidos e indivíduos identificados com a esquerda tem chegado ao poder como uma forma de restabelecer o regime capitalista. Essa tendência surgiu, primeiramente, e de forma mais relevante, no Brasil, com o crescimento e ascensão do Partido dos Trabalhadores como um instrumento político do regime burguês. A classe dirigente brasileira utilizou de um movimento “esquerdista” com essas características para se preservar no poder, já que todos os principais partidos e políticos tradicionais estavam comprometidos ou com o regime militar ou envolvidos em esquemas de corrupção e uma reação social de massas aparecia como perigosa.
Assim, se os revisionistas pablistas desempenharam, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, um papel crucial na traição do desenvolvimento revolucionário na América Latina, hoje repetem o mesmo caminho. Hoje, esses setores têm uma política de continuidade com as posições daquele período. Naquela época, vincularam-se primeiramente a movimentos nacionalistas, começando com o peronismo na Argentina e o MNR na Bolívia. Mais tarde, adaptaram-se ao castrismo e aos movimentos guerrilheiros que dominaram até a década de 1970. Agora, como naquelas décadas, rejeitam a necessidade de um movimento revolucionário da classe trabalhadora consciente e independente. Hoje, porém, tornaram-se defensores diretos da burguesia e instrumentos claros do Estado burguês.
Um exemplo dessas atitudes é a reação à eleição de Morales manifestada por um grupo boliviano denominado POR-Combate, vinculado aos pablistas. Recentemente, o grupo distribuiu resolução em que lamentava o fato de que a Central Obrera Boliviana (COB) permaneceu crítica a respeito de Morales e justificadamente cética em relação a uma real nacionalização das fontes energéticas bolivianas.
Segundo o POR, “É necessário para os reformistas e revolucionários, para os nacionalistas e para os socialistas, que se analise e se discuta conjuntamente, antes de mais nada, sobre o papel que o proletariado deve representar e quais as alianças que pode estabelecer, e depois seguir a partir desta estratégia para a tomada do poder e para construção do socialismo.” O grupo ainda declara. “Além disso, tudo não passa de erros e coisas irrelevantes. Hoje, as forças do MAS e da COB estão infelizmente muito distantes dos objetivos apresentados por este documento e esta tática.”
O POR ainda lamenta o fracasso da COB em se integrar plenamente no regime nacionalista burguês de Morales, cujo governo se iniciou com uma turnê mundial para assegurar ao capital estrangeiro que poderá contar com Morales na defesa da propriedade privada e do lucro. A perspectiva – de que os socialistas revolucionários devem procurar a aprovação dos reformistas nacionalistas, isto é, dos representantes da burguesia, acerca do “papel que o proletariado deve representar e que alianças deve estabelecer” – é uma clara proposta de subordinação dos trabalhadores bolivianos ao capitalismo, pavimentando o caminho para outra traição e derrota.
No entanto, levando em consideração a insignificante influência dos pablistas na Bolívia, há nessas posições um elemento da célebre afirmação “a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa”. Sem sombra de dúvida, tais afirmações repetem as grandes traições empreendidas pela tendência revisionista no anos de 1960 e 1970, desde o Sri Lanka, passando pelo Chile até a Argentina.
Entre os mais vergonhosos aduladores do governo Chávez está Alan Woods, líder do grupo centrista britânico formado por Ted Grant. Num recente depoimento respondendo a críticas que o acusavam de relações oportunistas com o governo venezuelano, Woods escreveu: “Se os marxistas venezuelanos não querem ser condenados ao completo isolamento e impotência, eles devem trabalhar para estabelecer conexões com o movimento bolivariano, para empurrá-lo para a esquerda e tentar ganhá-lo para as políticas e o programa do marxismo.”
E continuava: “As massas na Venezuela seguem seus líderes e têm fé neles. Elas ainda não estão convencidas das ideias dos marxistas.”
A linguagem repete, quase literalmente, as justificativas dadas pelos líderes do Socialist Workers Party (SWP) dos EUA, no início dos anos 1960, em relação à sua própria adaptação oportunista ao castrismo. Opor uma perspectiva marxista, baseada na independência política da classe trabalhadora, ao castrismo – alertavam eles – significaria colocar em risco a atuação de todos os partidos da Quarta Internacional, tornando-os irremediavelmente isolados na América Latina.
Essa perspectiva de veneração do castrismo e do guevarismo significou o abandono de qualquer luta para a construção de partidos revolucionários na classe trabalhadora e conduziu à destruição física dos quadros trotskistas, além de derrotas catastróficas para a classe trabalhadora latino-americana. A perspectiva apontada por esses pablistas tardios em relação à Venezuela não é diferente.
A falência dessa perspectiva é descrita numa resolução de 2004 publicada pelo grupo de Grant e Woods intitulado “Revolução venezuelana em perigo”. O texto apresenta a seguinte avaliação sobre a atual conjuntura da Venezuela de Chávez:
... o sistema judiciário ainda está firmemente em mãos reacionárias. Isso foi mostrado claramente quando a Suprema Corte de Justiça decretou que não houvera qualquer golpe em abril de 2002, mas apenas um “vácuo de poder”...
A oligarquia venezuelana e companhias multinacionais ainda tem forte controle sobre a mídia de massas, as indústrias privadas e o sistema bancário. Eles usam a posse sobre esses setores-chave da sociedade para sabotar a vontade da maioria e tramar outro golpe reacionário...
Apesar da sabotagem do petróleo ter sido derrotada pela ação direta dos trabalhadores petrolíferos, que assumiram o controle (juntamente com as comunidades locais e a guarda nacional) sobre essa indústria, as mesmas estruturas burocráticas ainda são amplamente utilizadas na companhia estatal do petróleo, a PDVSA...
Apesar de muitos oficiais reacionários do exército terem deixado o exército quando este se declarou rebelado, muitos ainda estão ativos em seu interior, e a tradicional estrutura burguesa do exército permanece largamente intacta...
Os ministérios e o aparato estatal em geral estão cheios de reacionários que constantemente sabotam o processo revolucionário. Essas instituições capitalistas devem ser eliminadas e substituídas pela eleição popular de todos os servidores públicos...
Os problemas da revolução venezuelana são descritos em detalhes nessa declaração, porém o texto deixa de explicar qual é precisamente o caráter dessa “revolução”, que deixa os principais postos do Estado e da economia nas mãos de seus opositores reacionários. Esse retrato da situação oferece uma confirmação irrefutável da absoluta necessidade política de se construir um partido revolucionário da classe trabalhadora, independente e em oposição ao governo Chávez.
Há ainda a situação específica do Brasil, onde o papel oportunista dos pablistas é ainda mais evidente. No ano passado, o Secretariado Unificado pablista
publicou uma declaração chamada “Sobre a situação brasileira”, fazendo um balanço dos dois primeiros anos de governo do presidente petista Luís Inácio Lula da Silva
A declaração dizia que o governo petista havia fielmente aplicado as políticas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional, atacando as aposentadorias, os salários e os direitos trabalhistas dos brasileiros enquanto prepara medidas ainda mais reacionárias, como a privatização de universidades públicas.
Segundo a declaração, “A orientação geral desse governo faz ministérios mais à esquerda virarem na direção de políticas meramente paliativas ou reféns de políticas que não são as suas próprias”. E acrescenta: “Esses dois anos de experiência mostram claramente que a construção de um bloco sócio-político anti-neoliberal, anti-capitalista dos trabalhadores está em contradição com o apoio a participação no atual governo.”
Os pablistas enfrentam, porém, um fato desagradável: um dos seus principais dirigentes no Brasil, Miguel Rossetto, está justamente cumprindo seu papel com as “medidas paliativas” e como “refém” das políticas mais à direita do governo Lula ao continuar servindo como Ministro da Reforma Agrária. Embora as lideranças pablistas agora declarem que tinham reservas quanto à entrada de Rossetto no governo, admitem que “evitaram colocar a questão da participação no governo Lula em termos dogmáticos”.
Se os pablistas decidiram vir a público com suas lamentações, é porque o programa reacionário e a enorme corrupção do governo Lula trouxeram uma grande decepção a largas camadas da classe trabalhadora brasileira, como também a setores revisionistas e tendências radicais pequeno-burguesas onde os pablistas atuam. Lideranças de sua própria seção no Brasil (Democracia Socialista – DS) foram expulsas do PT e lançaram-se na criação de outro partido eleitoral de centro-esquerda – o PSOL, Partido do Socialismo e da Liberdade – como um novo intermediário entre a classe trabalhadora e o governo do PT.
Diante dessa situação em que a fração que lidera o seu grupo brasileiro, a DS, permanece dentro do governo Lula e do PT, partido que expulsou membros de sua organização (como Heloísa Helena), membros que por sua vez iniciaram a construção de um novo partido em oposição ao partido do governo, o Secretariado Unificado pablista aconselha que “se viva e se deixe viver”. Declara, nesse sentido, que seu objetivo é “promover o diálogo” entre os que expulsaram e os que foram expulsos.
Para seus próprios militantes brasileiros, agora colocados em oposição uns aos outros, o conselho pablista é o seguinte: “...mesmo se eles estão hoje implicados em diferentes escolhas e dinâmicas, devem fazer um esforço para não destruir as pontes e manter suas opções futuras em aberto.”
Não “destruir as pontes” e “manter suas opções em aberto” – não poderiam existir formulações mais evidentes de um ponto de vista essencialmente oportunista.
O fato de que a burguesia na América Latina tenha que utilizar tais elementos formalmente associados ao trotskismo para defender seu poder tem imensa significação histórica. Esses setores ditos “trotskistas” têm sido utilizados pelos regimes existentes como parte de uma estratégia da burguesia nacional para conter a explosão da luta de classes.
Nesse sentido, o que o verdadeiro Comitê Internacional da Quarta Internacional e o World Socialist Web Site realizam, nesse momento, combatendo todos esses revisionistas, é algo decisivo para a América Latina. Claramente, hoje, existem imensas possibilidades que se abrem para a construção do CIQI na América Latina, e precisamos desenvolver o trabalho do WSWS de acordo com essa perspectiva.
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