Não é preciso idealizar as convenções partidárias americanas de décadas passadas para reconhecer que a Convenção Nacional Republicana deste ano foi um espetáculo sem precedentes de reação e retrocesso político.
A tradição de convenções nacionais partidárias tem suas raízes no início do século XIX nos Estados Unidos, em um período de ampliação do direito de voto, quando o caráter de massa da política burguesa era um fenômeno histórico relativamente novo. Em seus primórdios democráticos, a convenção nacional serviu como um meio de lutar por programas políticos e apresentar indivíduos associados a esses programas. Na disputadíssima convenção republicana de 1860, realizada no pavilhão de “Wig Wam”, em Chicago, por exemplo, o partido adotou a plataforma de Solo Livre [uma referência à defesa em meados do século XIX da proibição da escravidão em territórios recém-adquiridos (Nota do Tradutor)] e indicou Abraham Lincoln como candidato à presidência.
Após a Guerra Civil, a classe capitalista consolidou seu domínio e passou a predominar o lado reacionário das convenções partidárias, afirmando que os Estados Unidos eram, nas palavras de Marx, “o país modelo da fraude democrática”. As negociatas corruptas dos chefes dos partidos em salões de convenções cheios de fumaça tornaram-se a norma. Entretanto, as convenções continuaram sendo arenas para a elaboração de plataformas partidárias, como foi o caso em 1896, quando o Partido Democrata nomeou William Jennings Bryan com base na plataforma de “prata livre” [uma referência à defesa de se usar também a prata junto com o ouro como moeda após o Congresso americano bani-la em 1873 (NT)] em sua convenção em Chicago.
As convenções continuaram desempenhando esse papel até meados do século XX e, às vezes, políticos burgueses de considerável capacidade foram promovidos por meio delas, incluindo figuras como Woodrow Wilson, Franklin Delano Roosevelt, Adlai Stevenson e John F. Kennedy. A burguesia enfrentou questões como os direitos civis por meio de lutas entre plataformas realizadas nas convenções de 1948, 1964 e 1968.
O desenvolvimento de formas mais claras de regime oligárquico na segunda metade do século XX fez com que, nas décadas de 1980 e 1990, todas as decisões politicamente significativas fossem tomadas em âmbito privado. Ao longo do último meio século, o crescimento maciço da desigualdade e da guerra imperialista em constante expansão se combinou com a dominação mais nua e crua de ambos os partidos pelo capital privado. A vida política tornou-se mais abertamente criminosa e violenta, o que tem se expressado nas várias tentativas de assassinato desde a década de 1960 até hoje. Esse processo de degeneração foi acelerado pela dissolução da União Soviética, e as convenções de ambos os partidos foram transformadas em nada mais do que anúncios infantis insípidos e encenados, cheios de chavões patrióticos insignificantes.
No entanto, a reunião dos republicanos desta semana em Milwaukee testemunhou um nível de putrefação política sem paralelo histórico. Voltada para o nível intelectual, político e moral mais baixo e degradado, a convenção foi uma celebração obscena da brutalidade, da violência e do retrocesso cultural. Quando alguma ideia política foi elaborada, ela consistiu em apelos fascistas para a deportação em massa de 15 milhões de imigrantes e delírios loucos sobre os perigos do comunismo e do socialismo.
A lista de oradores foi composta por conspiradores de direita, CEOs, evangélicos, artistas, personalidades fascistas e outras figuras insignificantes da política americana. Foram concedidos espaços de destaque a políticos e figuras da mídia mais publicamente identificados com a tentativa de golpe fascista de 6 de janeiro, incluindo Josh Hawley, Ted Cruz, Marjorie Taylor Greene, Matt Gaetz, Kari Lake, Charlie Kirk, Tucker Carlson e Kimberly Guilfoyle.
Para dar um caráter personalista ao evento, quatro membros da família Trump e vários de seus assessores pessoais mais próximos discursaram, inclusive o assessor econômico Peter Navarro, que chegou à convenção direto da prisão. O candidato a vice-presidente, J.D. Vance, promoveu a mentira de que o Partido Republicano é o partido do trabalhador, um absurdo a-histórico ao qual o presidente do Teamsters [um sindicato que abrange diversas categorias, como transporte e alimentação (NT)], Sean O’Brien, deu crédito durante seu próprio discurso no horário nobre.
A convenção foi um festival de retrocesso cultural. O’Brien foi imediatamente precedido por uma “empresária” chamada Amber Rose, estrela de reality show autora de um livro intitulado How to Be a Bad Bitch [Com Ser uma Vadia Má, em tradução livre] e ex-namorada do rapper e admirador de Hitler, Kanye West.
Na última noite da convenção, o discurso principal de Trump foi precedido por um show de aberrações políticas. O músico fascista Kid Rock apresentou sua canção “American Bad Ass” [“Americano Durão”, em tradução livre] e foi seguido pelo lutador de luta livre Hulk Hogan, de 70 anos, que gritou, berrou e rasgou sua camisa.
O último orador antes de Trump foi o promotor do Ultimate Fighting Championship (UFC), Dana White, cuja fama é ter inventado a competição de “power slap”, na qual os indivíduos ficam um em frente ao outro e tentam dar o tapa mais forte possível no rosto do outro. Esse lixo tem sido sistematicamente promovido há décadas pela mídia corporativa e pelo establishment político em um esforço deliberado para baixar o nível cultural e enfraquecer a consciência política.
Nesse cenário, Trump surgiu ao som de “God Bless the U.S.A.” [“Deus Abençoe os E.U.A.”], de Lee Greenwood, e proferiu um discurso fascista semianalfabeto de 90 minutos, uma série sinuosa de ideias autocongratulatórias e malfeitas, montadas na hora. Ele apresentou o fracasso da tentativa de assassinato da semana passada como um ato de intervenção divina e tentou reivindicar o endosso do próprio Todo-Poderoso ao afirmar que estava falando na convenção “apenas pela graça de Deus”.
Após os apelos de Biden e dos democratas para que “baixasse a retórica” em nome da “unidade nacional”, o conteúdo político do discurso de Trump consistiu em um ataque hitleriano aos imigrantes com o objetivo de cultivar um clima de violência e de perseguição.
Trump afirmou que os imigrantes estão vindo para os Estados Unidos para estuprar, assassinar e até mesmo cometer atos de canibalismo contra cidadãos americanos. “Eles estão vindo das prisões. Eles estão vindo de cadeias. Eles estão vindo de instituições mentais e manicômios”, disse ele. “Alguém já viu ‘O Silêncio dos Inocentes?’ O falecido e grande Hannibal Lecter. Ele adoraria ter você para o jantar. Isso são manicômios. Eles estão esvaziando seus manicômios. E terroristas em números que nunca vimos antes. Coisas ruins vão acontecer.”
Trump apresentou os imigrantes como autores de crimes brutais e apelou para a delegação de guardas de fronteira e agentes do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) sentados na plateia, dizendo que “foi um prazer” realizar deportações brutais durante seu primeiro mandato. “O ICE atacava diretamente um bando desses assassinos. E você vê os punhos voando, tudo voando e eles os pegam. Eles os colocavam em um vagão de trem. Eles os levam de volta e os tiram de nosso país.”
A resposta da mídia corporativa foi tratar os eventos da convenção como se fossem normais, ou até mesmo aplaudir os republicanos por seu espetáculo. Nenhuma das personalidades da mídia teve o discernimento ou a coragem de denunciar a convenção como o espetáculo fascista que foi.
Pelo contrário, os democratas na mídia parecem impressionados com a apresentação grotesca de Trump. Van Jones, da CNN, disse sobre o discurso de Trump: “Os sonhos se tornam pesadelos e os pesadelos se tornam sonhos. Vocês estão vendo um pesadelo se tornar um sonho para Donald Trump”. O New York Times promoveu a ilusão de que uma versão “simpática” de Trump ainda poderia vir a enxergar a luz e atenuar sua retórica fascista, escrevendo que seu discurso principal “encerrou uma convenção que mostrou um partido extasiado com suas chances de vitória. Mas deixou em aberto qual Trump terminaria a campanha, quanto mais governar se vencer a eleição. O novo Trump ou o velho? O cara legal ou o anti-herói? Em termos de luta livre, o rosto ou o calcanhar?”
Apresentar Trump como um gênio político que colocou o Partido Republicano sob suas asas é igualmente absurdo. Trump é o produto podre da cultura política, econômica e social degradada do capitalismo americano em seu período de declínio prolongado. Ele se tornou possível graças a uma combinação tóxica de reality shows, cassinos, prostituição, luta livre e especulação imobiliária. O fato de ele conseguir tantos votos é, por si só, uma expressão do grau de degradação da opinião pública nos Estados Unidos.
Não pode haver maior condenação do Partido Democrata do que sua própria cumplicidade no processo de elevar e abrir caminho para a ascensão de Trump e seu possível retorno à presidência. Os democratas tiveram quatro anos para apresentar um programa, mas, em vez disso, concentraram-se inteiramente na promoção de seus objetivos imprudentes de política externa imperialista. Ao assumir o poder em 2021, Biden proclamou que “precisamos de um Partido Republicano forte” a fim de obter apoio bipartidário para a guerra contra a Rússia na Ucrânia e para o genocídio de Israel contra o povo palestino em Gaza. O governo adotou as políticas de Trump sobre imigração, fechando a fronteira sul e proibindo o asilo com o argumento de Trump de que isso é necessário para evitar “crimes”.
A resposta do Partido Democrata à convenção republicana se manteve relativamente silenciosa enquanto os democratas tentam resolver a crise de liderança em sua chapa. Até agora, as críticas têm se concentrado principalmente nas preocupações com o destino da guerra liderada pelos EUA contra a Rússia na Ucrânia, caso Trump vença a eleição.
Figuras proeminentes como Nancy Pelosi e Chuck Schumer parecem estar se movendo para tirar a candidatura de Biden da chapa, dada sua clara incapacidade mental de desafiar Trump. Mas é notável que as figuras políticas associadas à pseudoesquerda e aos Socialistas Democráticos da América (DSA) sejam os defensores mais inflexíveis de Biden.
Em um vídeo publicado nas redes sociais na quinta-feira, Alexandria Ocasio-Cortez alertou seus apoiadores contra a remoção de Biden: “Não estou aqui para usar o medo para dissuadir as pessoas de sua posição, mas é preciso que se entenda o que está em jogo, certo?” Bernie Sanders deu uma entrevista à New Yorker na qual disse: “Você tem razão - às vezes ele não consegue juntar três frases. Isso é verdade. Mas a realidade do momento é que, na minha opinião, ele é o melhor candidato que os democratas têm por uma série de razões, e tentar, de uma forma sem precedentes, tirá-lo da chapa faria muito mais mal do que bem.”
O que Ocasio-Cortez e Sanders querem dizer é que retirar Biden da chapa representa o risco de que o processo de indicação possa, apesar dos melhores esforços dos democratas, servir para evitar a discussão de questões que o Partido Democrata não quer confrontar: o agravamento da crise econômica enfrentada pela classe trabalhadora e, acima de tudo, a oposição à guerra do governo americano na Ucrânia e ao genocídio em Gaza.
Sua principal preocupação é impedir que a oposição social encontre algum espaço dentro do sistema bipartidário e que se escolha um candidato capaz de levar a cabo as guerras no exterior. Para isso, os DSA e seus cúmplices se agarram com afinco ao cadáver trêmulo de Joe Biden, fingindo que podem neutralizar a sua rigidez mórbida e a o dos democratas com massagens reformistas.
Conclusões políticas devem ser tiradas do espetáculo fascista em Milwaukee e do perigo da ditadura fascista. A democracia está em seu leito de morte. Se a eleição for parar nos tribunais, não há dúvida de que a Suprema Corte irá aprovar os esforços de Trump para fraudar ou roubar a eleição. Os democratas, com medo de mobilizar a população, não farão nada para impedi-lo.
Joseph Kishore, candidato a presidente pelo Partido Socialista pela Igualdade, declarou ontem no X:
A orgia da reação fascista na convenção republicana é a expressão política da extrema desigualdade social, da guerra sem fim, do genocídio em Gaza apoiado pelos EUA e da resposta da classe dominante à pandemia que matou milhões de pessoas. Como disse Trotsky, ‘a sociedade capitalista está vomitando a barbárie não digerida’.
Se Trump representa em sua forma mais pura a sujeira política de um novo fascismo americano, Biden representa a senilidade do liberalismo americano e o colapso de qualquer pretensão de compromisso com a reforma social e a defesa dos direitos democráticos.
O destino da democracia está totalmente vinculado ao desenvolvimento da luta de classes. Isso exige uma luta para revitalizar as grandes tradições do socialismo na classe trabalhadora americana e internacional.
Essa é a questão essencial colocada para a classe trabalhadora na eleição presidencial de 2024.
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