A crise política desencadeada pelas recentes eleições presidenciais na Venezuela está expondo graficamente o papel traiçoeiro e submisso ao imperialismo dos governos burgueses da Maré Rosa latino-americana e das organizações da pseudoesquerda em sua órbita.
Convocadas pelo regime de Nicolás Maduro após negociações a portas fechadas com Washington, as eleições venezuelanas ocorreram sob o pano de fundo da busca declarada do imperialismo americano pelo domínio dos recursos estratégicos da América Latina, que incluem as reservas críticas de petróleo da Venezuela. Ao mesmo tempo, os EUA lutam para minar a influência regional de seus competidores globais, especialmente China e Rússia, que apoiam o governo Maduro.
Desde que Maduro declarou-se reeleito no final de julho, os Estados Unidos e seus aliados contestaram os resultados oficiais e colocaram pressão crescente sobre o regime em Caracas. As manobras imperialistas buscam encurralar o governo chavista para arrancar as mais profundas concessões ou, se possível, instalar diretamente um regime fantoche através de um golpe apoiado na oposição fascistoide e nos militares venezuelanos.
É extremamente revelador que, neste contexto, Washington tenha elegido o governo brasileiro de Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT) como principal mediador do impasse político na Venezuela.
O governo brasileiro emitiu duas notas conjuntas com os governos aliados de Gustavo Petro, da Colômbia, e André Manuel Lopez Obrador, do México, exigindo a publicação de atas eleitorais detalhadas por Caracas antes que seus resultados oficiais sejam reconhecidos. Na sequência, Lula desqualificou o parecer da Suprema Corte venezuelana e defendeu novas eleições no país. Os posicionamentos de Lula foram tomados entre ligações para Joe Biden, dos EUA, Emmanuel Macrón, da França, e Justin Trudeau, do Canadá, que aplaudiram publicamente a atuação do líder brasileiro.
O serviço sujo cumprido pelos governos da Maré Rosa ao imperialismo na América Latina têm um complemento decisivo nas políticas traiçoeiras da pseudoesquerda, destacadamente das organizações morenistas que compõem a Frente de Izquierda y de Trabajadores - Unidad (FIT-U) na Argentina e competem entre si pelos aparatos sindicais e do Estado neste e outros países.
Em resposta às eleições na Venezuela, a Unidade Internacional dos Trabalhadores (UIT-CI), a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-CI), a Fração Trotskista (FT-CI) e a Liga Internacional Socialista (LIS) – as fachadas internacionais das organizações morenistas rivais – publicaram declarações com conteúdo similar, exigindo: “Que se publiquem todas as atas” (FT); “Não à fraude. Exigimos respeito à vontade do povo expressa em seu voto” (UIT); “Não à fraude eleitoral!” (LIT); “Respeito à vontade popular” (LIS).
Como seus títulos indicam, esses documentos fazem coro às denúncias e exigências de Lula e seus aliados, diretamente ditadas pelo imperialismo americano. Todos sustentam a alegação de que o resultado das eleições – que os morenistas assumem terem sido inquestionavelmente ganhas pela direita fascistoide – são a expressão mais genuína da “vontade popular”.
O fato de que os termos dessas eleições foram estabelecidos entre Washington e o governo burguês de Maduro, desesperado por um acordo com o imperialismo, totalmente pelas costas da população, foi deliberadamente ignorado pelos morenistas.
Alegar que os resultados eleitora expressam, em qualquer grau, a vontade política dos trabalhadores da Venezuela é uma distorção cínica da realidade.
Mesmo abstraindo as condições gritantemente ilegítimas desse processo eleitoral, as políticas defendidas pelos morenistas chocam-se frontalmente com princípios marxistas. Ao identificar as eleições burguesas com a expressão da “vontade popular”, estão deliberadamente encobrindo o caráter de classe do Estado, ao mesmo tempo que não deixam dúvidas sobre a essência burguesa de sua própria política.
Seu respaldo à narrativa burguesa fraudulenta encampada pelos governos da Maré Rosa expõe os morenistas como parceiros mirins do imperialismo na América Latina. Mas a operação imperialista na Venezuela tem uma tarefa especialmente designada à pseudoesquerda: impedir a classe trabalhadora de chegar às conclusões revolucionárias necessárias diante do colapso da ordem burguesa na Venezuela, América Latina e mundialmente.
Entre as diferentes tendências morenistas, a política da chamada “Fração Trotskista” – que ardilosamente tenta se diferenciar de suas concorrentes e se vender como uma tendência genuinamente revolucionária – é um caso exemplar da forma de atuação da pseudoesquerda.
A declaração assinada pelo grupo venezuelano da FT, Liga de Trabajadores por el Socialismo (Liga de Trabalhadores pelo Socialismo, LTS), e mantida em destaque por vários dias no La Izquierda Diário, é um exercício retórico de justificativa da passagem do poder aos fascistas venezuelanos sob comando dos EUA como um estágio necessário do desenvolvimento do movimento operário.
Declarando solidariedade total com os protestos que eclodiram no país contra a “grotesca tentativa de fraude das eleições”, a FT escreve:
É um quadro profundamente contraditório, porque as aspirações democráticas e sociais genuínas e legítimas do povo mobilizado envolvem não apenas a derrota do governo de fome e repressão do capitalismo selvagem de Maduro, mas também a tomada [do poder] por outro setor reacionário, liderado por um expoente da burguesia tradicional... subordinado em tudo aos interesses do imperialismo norte-americano.
Em outras palavras, a FT reconhece que as manifestações que apoia têm uma direção política definida, a burguesia pró-imperialista venezuelana.
Aprofundando a explicação do que consideram as “genuínas e legítimas aspirações” de tais protestos, a FT escreveu: “compreendemos plenamente a raiva expressa com a demanda de que se cumpra a vontade popular expressa pela maioria do povo em votos, que é a nossa também”.
Esta última frase (grifada por nós), que revelou com demasiada franqueza a atitude da FT, foi sorrateiramente removida alguns dias depois do artigo postado no La Izquierda Diário. Mas o objetivo político da FT permanece claro: que a oposição fascista assuma o poder supostamente legitimada pela “maioria do povo” nas urnas e, sobretudo, nas ruas.
A própria FT deixa claro que não tem nenhuma base factual para atestar a vitória eleitoral do candidato da direita, Edmundo Gonzalez. Ela tampouco é capaz de determinar a real composição social e abrangência dos protestos que apresenta como a genuína expressão do “povo” venezuelano e suas aspirações.
Como os demais grupos morenistas, a FT se vale cinicamente de manifestações desesperadas de setores empobrecidos para jogar a culpa de sua própria capitulação ao imperialismo no suposto atraso de consciência dos trabalhadores.
Com base em sua falsa caracterização desses protestos, os morenistas centraram suas críticas à oposição fascistoide na acusação de que ela não está perseguindo seus planos golpistas com suficiente agressividade.
Argumentando (como fez a FT) que González e sua mentora, a agente veterana da CIA, María Corina Machado, não “convocaram o aprofundamento da mobilização” e “se limitaram a convocar ‘assembleias populares de cidadãos’”, a UIT conclui: “[Gonzáles e Machado] fizeram o povo acreditar que somente por meio do voto o governo poderia ser derrotado, nunca alertaram sobre a fraude, hoje está claro que continuam com sua política vacilante que favorece as negociações”.
Em resposta à “política vacilante” dos fascistas, os morenistas defendem “dar continuidade ao protesto popular” (sem qualquer diferenciação dos fascistas) e que as “assembleias populares de cidadãos”, convocadas por González e Machado, “precisam ser convertidas em organismos permanentes”.
As políticas incrivelmente reacionárias defendidas por essas organizações hoje são uma continuação direta das traições cometidas pelo morenismo ao longo de toda sua história. Apesar de organizações como a FT, UIT, LIT e LIS se autointitularem “trotskistas”, sua origem e tradição política comum é o legado de sabotagem da Quarta Internacional pelos pablistas argentinos liderados por Nahuel Moreno.
No início dos anos 1960, Moreno rompeu definitivamente com o movimento trotskista para seguir um caminho de alianças oportunistas com o stalinismo, movimentos radicais pequeno-burgueses e nacionalistas burgueses pela América Latina.
Na Argentina, Moreno subordinou totalmente sua organização à direção peronista burguesa nos sindicatos e governo até o golpe militar de 1976. Após atuar para bloquear uma luta revolucionária dos trabalhadores contra o peronismo, ele aceitou passivamente o ascenso da ditadura patrocinada pela CIA, chamando-a de “a mais democrática da América Latina”.
Hoje, por trás de suas fachadas “internacionais”, os descendentes do morenismo mantém uma orientação política estritamente nacional que, no século da globalização, assume um caráter ultrarreacionário.
Entre os exemplos recentes mais sórdidos da política morenista está o apoio entusiástico da LIT, UIT e LIS ao golpe do “Euromaidan” de 2014 na Ucrânia, liderado pelos fascistas e patrocinado pelo imperialismo americano e europeu, que os morenistas chegaram a caracterizar como uma “revolução operária e popular”. A continuação dessa linha política foi a campanha frenética por essas mesmas tendências a favor do armamento massivo do regime Zelensky pela OTAN e o aprofundamento de suas guerra por procuração contra a Rússia.
Para compreender a crise enfrentada pelos trabalhadores venezuelanos e, mais importante, apontar a uma saída política progressista é fundamental fazer um balanço crítico do chavismo e da Maré Rosa. Suas promessas de emancipar a América Latina e, até mesmo, representar uma nova via ao socialismo no século XXI conduziram, na realidade, a um novo período de intervenções imperialistas e recrudescimento dos Estados capitalistas que seus governos cultivaram.
Um balanço desse processo político e suas lições estratégicas estaria incompleto sem uma consideração do papel central dos próprios morenistas em semear ilusões no nacionalismo burguês falido da Maré Rosa. Para este fim, uma leitura dos escritos anteriores da própria “Fração Trotskista” é bastante esclarecedora.
Em um documento fundacional de sua organização (“Por um movimento por uma internacional da revolução socialista – Quarta Internacional”), publicado em 2013, a FT relembrou os zigue-zagues reacionários de seus colegas da LIT e UIT em relação ao regime chavista ao longo da década anterior.
A FT escreveu:
O grupo da UIT, na Venezuela, passou da subordinação ao chavismo durante anos, chamando a encher as urnas de votos para Chávez nas eleições presidenciais de 2006, para selar alianças com burocratas sindicais orgânicos dos partidos da direita; enquanto a LIT, quem também chamou a votar em Chávez nas mesmas eleições, confluiu no voto “No” com a oposição burguesa no referendo constitucional de 2007. Por trás destes vai e vens e zigue-zagues, sem ancoragem na mais firme independência de classe e anti-imperialismo, esta lógica da “teoria revolução democrática”, lógica que conduz a que nos casos de regimes com traços bonapartistas sui generis de esquerda, como o chavismo, essas correntes terminam se alinhando sob as supostas bandeiras da “democracia” levantadas pela direita sem denunciar que atrás das mesmas atua o imperialismo norte-americano.
Passados dez anos, não só a FT reproduz a política que reconhecera ser uma cobertura às maquinações do imperialismo, como insiste que a criação de um “polo independente de Maduro” com aqueles partidos que criticara deve ser a base para uma “saída independente, de classe e anticapitalista” à crise venezuelana.
Jamais o termo “independência de classe” foi tão abusado como pelas declarações da FT. Sua trajetória política, sistematicamente voltada a reabilitar as organizações e burocracias manchadas por seus crimes contra os trabalhadores, expõe, na verdade, seu total antagonismo aos interesses da classe trabalhadora. Ela é uma tendência que dá voz à classe média alta subordinada ao Estado capitalista e ao próprio imperialismo.
A luta pela independência política da classe trabalhadora venezuelana não passa por nenhum tipo de amálgama com as organizações traidoras da pseudoesquerda. Ao contrário, a experiência histórica – incluindo os episódios críticos das últimas décadas – aponta à necessidade estratégica da total independência programática e organizativa da classe trabalhadora em relação à pseudoesquerda pequeno-burguesa.
Fazendo um balanço crítico do regime burguês de Hugo Chavez na ocasião de sua morte, em 2013, o editor da seção sobre América Latina do World Socialist Web Site, Bill Van Auken, relembrou a sustentação dada pela pseudoesquerda internacional à retórica “socialista” fraudulenta de Chavez e seu chamado à construção de uma “Quinta Internacional”.
Como WSWS escreveu, a insistência dos pablistas de que a iniciativa de Chavez seria um canal de superação das “divergências” políticas sem a necessidade de “discutir o balanço histórico das diferentes correntes” expunha seu interesse em encobrir as traições históricas que eles se preparavam para repetir.
O artigo continua:
A representação do chavismo em tons socialistas pelas pseudoesquerdas de hoje não é somente uma questão de incapacidade de aprender essas lições históricas, mas sim de interesses de classe profundamente enraizados. Eles são atraídos pelo “socialismo do século XXI” de Chávez precisamente por sua hostilidade à concepção marxista de que uma transformação socialista só pode ser realizada por meio da luta independente e consciente da classe trabalhadora para pôr fim ao capitalismo e tomar o poder em suas próprias mãos.
Esses argumentos se aplicam inteiramente ao “polo” da pseudoesquerda defendido pela FT hoje.
Como Van Auken explicou, a mobilização da classe trabalhadora para estes objetivos revolucionários na Venezuela e ao redor da América Latina depende diretamente da “construção de novos partidos revolucionários independentes, seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional”.
A defesa assertiva dessa perspectiva política provocou, na época, reações raivosas dos defensores da pseudoesquerda, que a atacaram como um suposto “delírio sectário” do CIQI. Mas a evolução política da última década confirmou poderosamente suas bases científicas.
Os inúmeros trabalhadores e jovens ao redor da América Latina que estão sendo radicalizados pelos acontecimentos explosivos dos anos recentes, caracterizados pelo CIQI como “a década da revolução socialista”, precisam tirar as conclusões políticas e assumir a tarefa de construir este partido.